Por psicólogo Geofilho Ferreira Moraes
CRP-12/10.011 Data: 28 de maio de 2011
BASAGLIA, Franco. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 326 p.
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GIOVANNI JERVIS
CRISE DA PSIQUIATRIA E CONTRADIÇÕES INSTITUCIONAIS
O ESCOPO PRINCIPAL deste trabalho é o de avaliar alguns problemas que a equipe diretora de um hospital psiquiátrico enfrenta. Trata-se de problemas que podem ser examinados a partir de várias ordens de considerações. Em primeiro lugar, aqueles que surgem diretamente da experiência concreta de uma determinada equipe, que em nosso caso é representada pelo staff do Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorizia. Em segundo lugar, aqueles que se referem a um exame geral da posição de quem trabalha em uma instituição psiquiátrica qualquer, inserida numa realidade social determinada. Por fim, aquelas considerações ainda mais gerais que derivam do conhecimento da escolha dos próprios instrumentos de análise, em um contexto institucional.
Os problemas que nos propomos derivam diretamente de uma prática particular, a de um hospital psiquiátrico, e não podem ser generalizados imediatamente: sua origem e seu âmbito de verificação empírica permanecem setoriais, limitados ao campo de ação de um trabalho quotidiano que se desenvolve dentro de uma instituição. Sob outro aspecto, a mesma crítica que examina e modifica uma instituição por dentro, em vez disso se expande para a tomada de consciência e a tomada de posições que procuram ter um significado mesmo fora de seus confins. Além da “crítica do manicômio” certamente se abrem, dentro daquele quadro, perspectivas de análise e de experiência que ultrapassam os temas da “humanização” e da “modernização” da assistência psiquiátrica. Inevitavelmente surgem novos problemas que não são estritamente institucionais. Tais problemas se prendem, de um lado, a um exame mais atento das condições do manicômio, as <251>
quais se mostram ligadas à estrutura da sociedade, ao passo que, de outro lado, eles nos levam a uma série de aprofundamentos teóricos sobre o conjunto da psiquiatria e à crise de seus objetivos. A crise da instituição psiquiátrica nos reporta, enfim, não só a uma crítica geral das instituições em sentido restrito, mas tende a pôr em questão, com a psiquiatria, a validade da “separação técnica” como forma particular da divisão do trabalho e como institucionalização repressiva do poder.
É nossa convicção que a análise das instituições manicomiais e de sua crise fornece um ponto de vista e uma série de critérios operacionais particularmente fecundos para revelar, em uma série de aprofundamentos e exames, alguns dos enganos “culturais” que hoje parecem cada vez mais necessários para a manutenção do status quo da sociedade. Convém que nos conscientizemos, para finalizar este ponto, da presença de um duplo e simétrico perigo: o do empirismo e o das abstrações generalizantes e não examinadas. O perigo do empirismo provém da incapacidade de aplicar os instrumentos apropriados de análise teórica àquilo que é o ponto de partida de toda a crítica dos manicômios: a indignação pela desumanidade do manicômio tradicional. Com essa indignação há o risco de serem propostas reformas que são prisioneiras da própria estrutura que a engendrou. A proposta de reformar empiricamente o hospital psiquiátrico conduz a uma ideologia da criminalidade terapêutica, limitando-se apenas a adiar o problema fundamental. Por outro lado, o reformismo é a primeira resposta à atitude típica de desresponsabilização dos psiquiatras que dirigem os manicômios: talvez de boa fé, eles alegam que nada podem fazer para mudar verdadeiramente a instituição e atribuem a falta aos políticos e aos administradores que não fornecem as leis, os regulamentos e os financiamentos. Na realidade, as imagens dos manicômios (locais opressivos, velhos, superlotados, miséria de pessoas e de coisas, negligência e atraso técnico, violência encoberta ou manifesta, embrutecimento na inação) justificam plenamente a tentação do reformismo empírico: é necessário fazer qualquer coisa, imediatamente, para mudar ao menos um pouco uma situação gravíssima. Essa exigência é respeitada e é encorajada com tanto mais força quanto mais é verdadeiro e verificável que as estruturas de organização dos manicômios podem ser transformadas pelos médicos diretamente responsáveis, desde que eles o queiram. A indignação a que nos referimos <252>
deve levar à identificação do erro, e mesmo a culpabilidades bem individualizadas.¹
Portanto, se por um lado a idéia de uma responsabilidade e de uma culpa direta dos médicos do manicômio demonstra a possibilidade e a exigência de que “em todo caso se faça alguma coisa”, mesmo que no plano do simples reformismo empírico, por outro lado é bem verdade que tal reformismo constitui a pedra de toque das reais intenções de seus promotores. Efetivamente, ou o reformismo é dirigido no sentido de uma solução do problema do manicômio, ou então ele chegará ao seu limite, como contradição, objeto de crítica indispensável e ponto de partida de proposições mais radicais e coerentes. O perigo oposto ao empirismo é o de uma denúncia de caráter abstrato, de uma denúncia global, extremista e imprecisa. Esta pode também ter seu valor e nós pessoalmente achamos que esse é o caso, apesar das aparências, porquanto o risco de uma facção “enfurecida” poderá ser a melhor maneira de se opor às velhas críticas “científicas”, “objetivas” e “equilibradas” ao sistema social. Contudo, não se diz que uma denúncia deste gênero deve partir necessariamente do âmbito do manicômio. A propósito de certas técnicas de grupo utilizadas pelos hospitais psiquiátricos como instrumentos “modernos” numa estrutura institucional praticamente inalterada, falou-se, em Gorizia, de socioterapia como álibi institucional. Na realidade o assunto pode ser levado um pouco mais adiante, e se hoje se prefere falar de comunidade terapêutica em vez de manicômio, pode-se muito bem mencionar, permitindo-se uma crítica, a “comunidade de terapêutica como álibis institucionais”, e por fim, logicamente, da crise das “instituições como álibi”. O perigo dessas contestações sucessivas
Nota de rodapé
1. A experiência de Gorizia demonstra, pelo menos, que um manicômio dos mais tradicionais pode ser radicalmente transformado em suas estruturas sem qualquer auxílio de caráter legislativo, administrativo ou financeiro, e sem que as condições sociais e psicoambientais se diferenciem sensivelmente das da maioria das províncias italianas. (Pode-se acrescentar, incidentalmente, que sob este aspecto a diferença principal entre a situação de Gorizia e a do resto da Itália consiste provavelmente apenas na percentagem sobremodo elevada de problemas de alcoolismo, um aspecto que certamente não facilita o trabalho. Quanto às vantagens decorrentes da pequena extensão da província, é indubitável que estas são amplamente compensadas por outras desvantagens particulares, entre as quais, em primeiro lugar, a grave carência de recursos financeiros.) <253>
não está em seu aspecto extremista, mas em sua aceitabilidade sugestiva: elas são facilmente aceitas de modo abstrato e apreciadas também devido ao seu caráter anticonformista e “revolucionário”. Pelo mesmo motivo são freqüentemente aceitas com entusiasmo as considerações muito superficiais sobre o “mito da doença mental”, sem que se tornem claras as dificuldades e as contradições provocadas por uma destruição, embora necessária, da imagem tradicional (tanto “vulgar” como “científica”) da loucura.
Portanto, se impõe a necessidade de chegar a uma crítica radical de numerosos lugares-comuns e de álibis incessantemente renovados, isso não é possível a não ser em função de uma prática. Não é necessário que se trate de uma prática institucional: trata-se apenas de ver se uma prática institucional permite verificar suficientemente as tomadas de posição que, consideradas isoladamente, podem ser acusadas, de pleno direito, de extremismo abstrato. Neste contexto ainda é necessário acrescentar que, se por um lado o ensino de novas formas de contestação sempre está um passo à frente de cada experiência, por outro lado também é verdade que não se pode falar de contestações, a não ser partindo cada vez de uma contestação previamente verificada. Portanto, toda experiência concluída tende a ser validada pelo próprio sucesso e, assim, a constituir a sua própria ideologia: mas é da recusa dessa ideologia, isto é, de uma autocrítica, que tende a surgir a contestação ulterior. Neste ponto surge o problema da especificidade da organização psiquiátrica. A defesa tradicional da instituição psiquiátrica sempre parte do argumento da especificidade técnica: os doentes mentais devem ser tratados, pois não se pode negar que eles necessitam de tratamento; eles devem ser tratados de modo particular, porquanto existem dificuldades e limites técnicos (avaliáveis somente por pessoas competentes) que impedem terapias mais rápidas, mais eficazes e menos desagradáveis. Nesta perspectiva, sobre cuja falsidade será necessário que nos detenhamos por um instante, não existem relações diretas entre a forma de assistência psiquiátrica e a organização da sociedade. Esta última, desenvolvendo-se no sentido do progresso, poderá fornecer melhores medicamentes, um número maior de leitos, pessoal mais qualificado e locais mais acolhedores e mais bem organizados, mas a forma de assistência sempre será decidida pelos psiquiatras com base em seus conhecimentos. Antes de retomarmos este ponto convém assinalar a existência de um perigo inverso: o de estimar que a organização psiquiátrica de determinado país seja perfeitamente coerente com a estrutura <254>
social dominante. Cedendo a essa tentação poderá parecer demasiado fácil centrifugar o problema dos distúrbios mentais reduzindo-os às contradições sociais, e pensando que as organizações terapêutico-assistenciais obedecem diretamente à lógica do poder. Os riscos, a este propósito, são os de que se pense que o poder (para nos atermos a um plano mais concreto: o poder capitalista) constitui um sistema homogêneo, livre de contradições, identificável em seu objeto principal, o “capital”, e no plano racional por uma elite neocapitalista; e de pensar, paralelamente, que as organizações psiquiátricas se modificam e se estruturam sem contradições, segundo os esquemas políticos dominantes. Na realidade é necessário considerar a hipótese de que as organizações psiquiátricas estejam “atrasadas” ou “diferentes” em confronto com as exigências institucionais da sociedade em geral, isto é, que elas tenham em certa medida, apesar de tudo, sua própria história e sua especificidade. Só neste ponto será possível examinar o caráter “anacrônico” das estruturas institucionais e pesquisar na história e na análise do presente as relações entre os hospitais psiquiátricos, de um lado, e as teorizações psiquiátricas, as ideologias dominantes e as exigências mais imediatas da conservação da ordem social, de outro.
Coloquemos, por um instante, entre parênteses, o problema da doença mental, isto é, da “especificidade” (no sentido ao qual aludíamos) das formas de terapia que tornam necessárias as instituições psiquiátricas como tais. Nesta perspectiva é possível examinar a estrutura da assistência psiquiátrica como forma de controle repressivo. Retornemos à origem histórica dos hospitais psiquiátricos e àquela que atualmente justifica a sua existência, segundo a opinião comum, as leis estatais, e seu regulamento interno: a função constitutiva de tais instituições não é primariamente terapêutica, mas repressiva. Os manicômios ocupam-se em defender os cidadãos de alguns sujeitos cujo comportamento é desviado, uma vez que os médicos tenham estabelecido que tal desvio é devido a doença: os sujeitos “perigosos para si e para os outros ou que provoquem escândalo público” são segregados. Partindo dessa premissa, o problema pode ser inserido num contexto mais amplo e descrito segundo várias formulações.²
Nota de rodapé
2. Convém admitir que, no texto que se segue, a expressão “quadro institucional” é usada em sentido amplo, diferentemente do sentido que lhe vínhamos dando.
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“O quadro institucional é constituído das normas sociais. Estas podem ser violadas, e são sancionadas pela violência. Os motivos que induzem a pisotear as normas sociais derivam da satisfação antecipada de impulsos. Nós sempre interpretamos o mundo com os olhos de nossas necessidades, e essas interpretações se conservam no conteúdo semântico da linguagem quotidiana. Portanto, é fácil ver que o quadro institucional de uma sociedade preenche duas finalidades diferentes. De um lado consiste na organização da violência que pode reprimir a satisfação dos impulsos, e de outro é um sistema de tradições culturais que articulam o conjunto de nossas necessidades e pretendem satisfazer os impulsos. Esses valores culturais correspondem também às interpretações das necessidades que não se integram no sistema da autoconservação — conteúdos místicos, religiosos, utópicos, isto é, as consolações coletivas, bem como as fontes da filosofia e da crítica. Uma parte desse conteúdo é reorientada e usada para a legitimação do sistema de domínio”.³
O sistema de domínio compreende indubitavelmente os hospitais psiquiátricos. No que se refere aos “conteúdos” de que se fala, estes dizem respeito também à ideologia do doente mental e à ideologia da custódia. Sobre essa ideologia baseia-se a legitimação de todas as “organizações da violência” que se ocupam dos sujeitos cujo desvio é atribuído a distúrbios mentais. O papel dessas ideologias, entretanto, não se restringe a uma simples apologia ou cobertura a posteriori das infâmias dos manicômios, assim como as infâmias dos manicômios não são o único modo pelo qual se expressa a repressão organizada daquela “satisfação antecipada de impulsos” de que fala Habermas. A imagem cultural da loucura e de sua repressão não contém apenas a justificação global da psiquiatria como teorização especializada erigida em defesa do homem são, mas serve também para reorientar as necessidades de liberdade, definindo esta última como aquilo que é “licitamente são”, em contraposição à loucura, imagem de uma liberdade não tolerada. É muito difícil retraçar os componentes psicológicos do estereótipo cultural dominante da loucura, porquanto tal estereótipo já se apresenta institucionalizado nas atitudes que encorajam e sancionam Nota de rodapé 3. JÜRGEN HABERMAS, “Consequenze pratiche dei progresso tecnico-scientifico”, Cuaderni Piacentini, VI, n.° 32 (outubro de 1967), pp. 72-91 (p. 87). <256> o poder social (autoridade civil) e o poder médico. Por outro lado não há necessidade de temer que reconheçamos a existência de um terreno no qual entram em jogo dinâmicas psicológicas inteiramente particulares. A importância dessas dinâmicas psicológicas só pode ser esboçada, embora considerando que seria assaz difícil verificá-la acuradamente mediante uma pesquisa. Pode-se considerar em primeiro lugar o significado das prisões: a própria exclusão dos delinqüentes, nas prisões, é uma confirmação indireta da honestidade dos cidadãos que estão fora delas, e portanto constituem um instrumento de coesão (“separação”) social. Os presos nos cárceres são necessários para colocar uma barreira segura e não transponível (nas duas direções) entre a ordem e a desordem; é também perfeitamente claro quais são os atos que levam à segregação carcerária. Entretanto, no que diz respeito às sanções institucionais da loucura, portanto dos hospitais psiquiátricos, é fácil observar que ninguém saberia, com precisão, o que se deve fazer para evitá-los. E não é só isso: qualquer um de nós sente obscuramente que toda aprendizagem de um comportamento “são” é uma fastidiosa e sempre frágil conquista nos confrontos da desordem psíquica. Esta última está muito próxima, porém encoberta: sempre reprimida, mas atrás da porta. Eis que o manicômio se identifica com a própria necessidade de tornar clara e distinta a categoria dos comportamentos anormais. O fato de que, os “doidos” são discriminados e acabam dentro dos hospitais define os confins da normalidade e premia as imagens do comportamento “aceitável”. A aprendizagem da normalidade não é aqui a simples procura de um equilíbrio, mas a garantia recíproca dê pertencer a um mundo no qual todas as coisas devem ser controláveis e sensatas. Aquele que paga o devido preço para manter a sua saúde psíquica sabe, vagamente, que o próprio sacrifício é elevado demais para que não se constitua, de repente, num privilégio. Se nessa exclusão da loucura entram em jogo mecanismos de violência presentes no contexto social, isto significa que a atitude de exclusão contra o louco já está permeada de uma violência institucionalmente aprovada. Por outro lado, a própria violência da sociedade é controlada e sancionada: somente o psiquiatra, em seu manicômio, tem a liberdade de agir, sem qualquer controle social, e mesmo investido de uma vez por todas de um poder que a sociedade de bom grado lhe oferece. O sistema continua a tutelar as próprias vítimas (também nos cárceres), somente na medida em <257> que a sanção do desvio determina nos subordinados comportamentos tais, ainda envoltos na ética da violência e da produtividade. O doente mental, escória irracional da racionalidade social, é aniquilado porque é o único a escapar totalmente às regras do jogo. A psiquiatria institucional pode dirigir contra ele toda a violência da sociedade, principalmente porque a norma da sociedade expulsa de si, identificando-a no doente mental, a imagem “incompreensível” e “perigosa” da possibilidade de uma reviravolta que a tornaria algo completamente diferente e “desordenada”. O homem não se defende da tentação de recusar uma coerência que é também uma cumplicidade, projetando em tal indivíduo indefeso uma agressividade que ele não poderia voltar contra outros, e que, a todo instante, pode destruí-lo; para o indivíduo são a fatigante aceitação de um “princípio de realidade” socialmente determinado impõe que ele exteriorize essa tensão, objetivando-a. A “normalidade” de seu ser é assim confirmada por uma máscara inumana que ele aplica ao louco: recusando reconhecer-se neste último, ele aceita de bom grado a inumanidade de sua subordinação. A exclusão do louco é sancionada e justificada pela psiquiatria. Se existe uma “cultura” geral da saúde e da doença mental, não há qualquer dúvida de que o psiquiatra dela participa. De resto, ele não é o produto de uma instituição abstrata, mas sua função realça o papel e a ideologia geral do poder médico. Já discutimos em outro lugar, a propósito de um trecho conhecido de Talcott Parsons, o fato de que a ideologia técnica médica é ela própria, em grande parte, uma mistificação. O médico é um indivíduo dotado de um certo poder, e para usá-lo ele tem que aceitar o mito da onipotência que o paciente lhe confere; o psiquiatra, porém, diferentemente do clínico e do cirurgião, é investido de um poder muito maior, e não se vale de sua onipotência técnica para agir setorialmente sobre uma parte do corpo que pertence ao doente, mas age de modo global sobre o doente, que lhe pertence. É lícito, pois, duvidar que a psiquiatria possa definir claramente as particularidades que fazem com que um comportamento desviado seja de sua competência. Existe, entretanto, um problema preliminar: este diz respeito à presença, cientificamente demonstrada, de uma doença à base de um comportamento anormal, que serve para justificar uma extensão abusiva do conceito técnico de desvio e assim favorece projetos tecnocráticos de discriminação, repressão e reeducação dos comportamentos desviados. Poder-se-ia observar, logo, que aqueles psiquiatras que, como especialistas, <258> tendem a seqüestrar em seu universo psicobiológico problemas de competência social, são perigosos reacionários. Poderá acontecer que o sejam, e é fácil constatar, em todo caso, que esses servidores do poder, ocultando-se através de sua técnica incompreensível, procuram camuflar e transmitir, junto com aquisições científicas (ou sem elas), motivos ideológicos bem precisos ligados à defesa de valores e interesses historicamente definidos. Na realidade, o caráter revolucionário do uso do conceito de desvio, por parte dos psiquiatras, não implica de modo algum em escolha política e ideológica: a própria idéia de que determinado comportamento desviado possa receber uma definição técnica em termos médicos-psiquiátricos implica na possibilidade de que o desvio em geral seja definido segundo critérios que nada têm de comum com o relativismo sociológico, e que por conseguinte fogem à possibilidade de uma crítica política. Paralelamente, uma definição de certas formas de desvios psiquiátricos se refere, inevitavelmente, a modelos gerais de normalidade. Portanto o risco está tanto em uma extensão “abusiva” da definição técnico-psiquiátrica do desvio quanto no próprio fato de que a definição em si, mesmo que se aplique a uns poucos casos, tende imediatamente a assumir um caráter universal. A psiquiatria tradicional tinha sobre este ponto, até há poucos anos, uma linha de defesa aparentemente sólida. Sendo a psiquiatria de origem positivista, um comportamento é anormal (pelo menos na teoria) não por suas características fenomênicas, mas porque ele não é mais do que a manifestação externa, direta, de uma doença das funções superiores do sistema nervoso. Se é indiscutível que, um fígado afetado pela cirrose é anormal, deve ficar igualmente claro em que consiste o caráter mórbido da loucura e de todos os distúrbios mentais: uma desordem tem algumas características intrínsecas que a definem como tal; é a perda de funções, a desagregação, a morte, e não um desvio com relação a uma norma convencional. Na realidade o próprio conceito de doença em geral não era nada fácil de definir e a assimilação dos distúrbios mentais à doença orgânica acabava por se dar num plano empírico e aproximativo. Refazendo-se da medicina naturalista da Antiguidade clássica e abandonando as próprias premissas iluministas e “rurais” típicas do surgimento da psiquiatria moderna em fins do século XVIII e início do século XIX, a psiquiatria positivista conquistava as suas posições em fins do século passado, consolidando-as com a descoberta da etiologia sifilítica da paralisia progressiva. <259>
A existência dos treponemas nos cérebros dos paralíticos fornecia a base de uma “psicose modelo”, da qual provieram todas as outras interpretações de doenças no campo psiquiátrico, o que parecia prometer uma reconciliação entre a psiquiatria e a medicina geral.
Costuma-se pensar que esta visão “orgânica” das doenças mentais tenha sido superada pelas concepções “dinâmicas” introduzidas por Freud e seus sucessores, e que o velho modelo da doença mental como enfermidade do cérebro tenha sido superado pela constatação de que as neuroses, e provavelmente também as principais psicoses, não se desenvolviam sobre o substrato de qualquer lesão demonstrável. Esta concepção “moderna”, ainda parcial, é contestada por uma série de motivos. Em primeiro lugar, não é tão evidente que Freud tenha construído um modelo interpretativo dos distúrbios mentais substancialmente diferente do modelo mecanicista; mas reconhecendo a Freud o mérito de ter provocado a primeira e mais decisiva ruptura dos velhos esquemas, é perfeitamente defensável a teoria de que ele tenha introduzido um mecanismo de novo tipo, tanto determinista como a - histórico. Em segundo lugar, a hipótese de que em muitos comportamentos rotulados de “distúrbios mentais” haja uma efetiva “desordem” (qualquer que seja o significado deste termo) das funções nervosas superiores não pode ser descartada com demasiada facilidade, e de qualquer modo leva a problemas de extrema complexidade. Em terceiro lugar, enfim, é discutível se a psiquiatria positivista se fundamenta verdadeiramente, na prática, no modelo da doença tomado da medicina geral. Durante todo o século XIX e até hoje a psiquiatria continuou a definir o próprio campo de ação assinalando os limites externos de um sistema taxonômico fundamentado sobre o reagrupamento de distúrbios “típicos” do comportamento em sistemas e subsistemas nosográficos. Em outras palavras, o esforço de classificação, na impossibilidade de fazer da psiquiatria uma ciência, continuou, na prática, a fundar um sistema empírico baseado na descrição fenomênica dos comportamentos, bem como na reconstrução de disfunções inadmissíveis que não era possível desvendar. A crise da psiquiatria positivista surgiu, na realidade, de toda uma série de outros motivos, que talvez se reduzam a um só: a impossibilidade de incluir os distúrbios de comportamento entre os fenômenos objetivamente descritíveis em termos naturalistas. Não <260>
há dúvida que, em parte, se trata de uma falência empírica, de uma bancarrota geral: a psiquiatria, considerada quer como pertencente ao âmbito das disciplinas médicas, quer como ao das ciências do homem, cumpriu bem poucas de suas promessas. Sobre as causas da grande maioria dos distúrbios mentais, sabe-se pouco ou nada; como terapia, a situação não é muito melhor; e se é certo que os medicamentos têm um efeito pouco mais que sintomático, duvida-se, ainda, do significado da psiquiatria. No plano teórico, a falência da psiquiatria “médica” conduziu a uma série de outras tentativas de síntese: e esta é toda a história da psiquiatria contemporânea, de Freud aos nossos dias. Para compreender quanto a situação mudou, basta ler os velhos escritos de Kraepelin, ou Babinski, e compará-los com os autores “modernos”: com Suilivan, com Binswanger, com Laing. O que impressiona, nos clínicos do fim do século XIX, é o extraordinário respeito pelos fatos. A doença mental, então, estava presente tanto nos gestos afetados do esquizofrênico como no córtex do demente: para o sábio que os observa, trata-se de estímulos sensoriais de igual valor, de objetos a recolher e a elaborar como dados de um sistema. Assim, o doente mental já é um sistema a ser descoberto, totalmente fechado em si mesmo, dotado de suas próprias leis ainda em parte ignoradas, separado do observador, que de modo algum participa do seu universo. O próprio conceito de comportamento parece volatilizar-se continuamente perante as categorias interpretativas do psiquiatra: o doente mental é uma entidade isolada que apenas funciona (e mal), e não se comporta. Mas para que isto seja assim, o psiquiatra deve negar as próprias categorias e qualquer relação entre sujeito e objeto, demonstrando que o doente, pura objetividade, não está assim porque ele próprio o objetiva, mas porque pertence ao mundo dos fatos dos quais se ocupa a ciência. A esse mundo de objetos não é possível aplicar qualquer categoria interpretativa, pela boa razão de que os fatos se reconstituem por si, segundo suas próprias categorias, ao passo que o sábio os recolhe em número suficiente e com uma perfeita neutralidade.
Hoje sabemos que a ciência moderna se move em perspectivas bem diferentes. Os fatos já não falam por si, o observador está presente na pesquisa e não fora dela, com suas intervenções práticas, suas categorias de interpretação, sua ideologia. O naturalismo empírico e a metafísica imanente do positivismo foram superados e definitivamente enterrados. Para a psiquiatria essa abolição foi, de um lado, particularmente radical, e de outro lado, parcial e ineficaz. <261>
No plano teórico foram reunidas as condições necessárias para a abolição do empirismo médico e do positivismo objetivante. Isso ocorreu principalmente em duas etapas: primeiro, com a desmistificação da separação tradicional entre “são” e “doente”, por Freud, no campo da psicopatologia; depois, com a descoberta do caráter “humano” (com toda a ambigüidade que o termo comporta) das dinâmicas psicológicas tradicionalmente consideradas “doentes”, pelos psiquiatras existencialistas. A destruição das justificativas manicomiais da loucura, de que trata a presente obra, provou não só a impossibilidade de considerar o doente mental segundo critérios especiais, diferentes dos que vinham sendo usados para o indivíduo são, mas também demonstrou que o problema “científico” do “distúrbio” não existe, a não ser na medida em que o comportamento de certas pessoas é artificialmente reconduzido a uma alteração funcional do sistema nervoso. Entretanto o erro não consiste tanto em supor a possibilidade de tal deterioração funcional, quanto em identificá-la com o comportamento “alterado”: este último não pode ser corretamente compreendido a não ser quando inserido na dinâmica das relações interpessoais e sociais que lhe deram uma imagem. Mesmo no caso em que é possível colocar em relação mútua o “distúrbio” do comportamento e uma lesão (“doença”) cerebral, essa lesão não é mais que um ponto intermediário em uma série de eventos precedentes que concorreram para causá-la, e em uma cadeia de acontecimentos ulteriores que determinaram o modo de reagir do indivíduo à sua inferioridade. O que não é mais possível sustentar é o caráter “natural” da doença e a possibilidade de uma relação direta de causa e efeito entre a mais ou menos hipotética disfunção cerebral e o modo como o “doente” consegue (ou não consegue) viver em sociedade. Na maioria dos casos, entretanto, a hipótese de uma lesão cerebral parece infundada, artificiosa e irrelevante, porquanto o distúrbio interpessoal só adquire sentido no âmbito daquela dinâmica social que progressivamente lhe deu forma, criando o seu doente, e subtraindo-lhe gradativamente a possibilidade de manter relações sociais. Nessa perspectiva, mesmo o exame do doente por parte do psiquiatra tende a perder seu caráter tradicional e se estabelece no quadro de uma relação interpessoal que não é mais aquela relação dicotômica “psiquiatra-paciente”, mas se transforma num confronto de dificuldades recíprocas devidas a um contexto social que cria papéis diversa- mente definidos. Esses papéis definem a psiquiatria. A diferença principal entre o psiquiatra e o doente que está à sua frente não
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consiste no desequilíbrio entre saúde e doença, mas num desequilíbrio de poder. Uma das duas pessoas tem um poder maior, talvez um poder absoluto, que lhe permite definir o papel da outra segundo sua própria terminologia. Voltaremos a tratar deste ponto.
No plano prático, ao contrário, a psiquiatria fica largamente ancorada ao empirismo médico, do qual ela não deixou de derivar os valores. Ainda hoje a maioria dos professores universitários, com os mesmos gestos de seus professores do século XIX, conduzem o doente mental ao anfiteatro e o “demonstram” aos estudantes, como se exibissem um fígado cirrótico sobre a mesa de anatomia: os movimentos, as palavras do enfermo, continuam sendo “fatos”, não atos situados num contexto. Desta maneira a objetivação prática da loucura reflete com exatidão a gestão do doente mental pelas instituições psiquiátricas. Já falamos das contradições entre a psiquiatria antipositivista moderna e a prática psiquiátrica como disciplina médica e como tratamento institucional. Na realidade existem relações entre esses dois pólos aparentemente opostos e vale a pena examiná-las. Após Sullivan, a psiquiatria moderna, em sua parte mais ativa e mais lúcida, tomou consciência do fato de que o distúrbio mental, longe de ser um problema individual, dentro do corpo objetivado do doente, só pode ser corretamente apreciado em seu aspecto interindividual. Entretanto os critérios aplicados ao exame desses problemas sempre derivam fundamentalmente da psicologia e da psicanálise: em vez de estudar como os problemas sociais e políticos influem nas dinâmicas de grupo e as determinam em sua realidade histórica, tem-se preferido estender o exame psicológico e psiquiátrico até o domínio social, subtraindo este último à crítica política. Deste modo foram dadas as condições para realizar o velho sonho do iluminismo, de reconduzir a um controle racional todos os comportamentos, desviados, mais uma vez imputados a distúrbios psicológicos, a descarrilamentos passionais. Os psiquiatras receberam do poder mandatos os mais amplos, e a doença mental foi reinterpretada como disfunção psicológica de todas as relações sociais. A psiquiatria assim se entregou de mãos e pés atados aos guardiões da ordem social, responsáveis pela definição de normas, desvios e sanções, segundo o seu próprio critério. Uma parte da psiquiatria moderna tomou consciência da existência desse problema e constatou que agia e teorizava em função <263>
de valores sociais não definíveis em termos psiquiátricos, mas aptos, pelo contrário, a definir a natureza da psiquiatria. Um setor no qual essa consciência tomou forma de modo mais preciso é o do desequilíbrio do poder e da diferença de papéis e valores que determinam no plano concreto o encontro médico-paciente. A psiquiatria social e a psiquiatria interpessoal examinaram tanto o contexto social sócio-cultural no qual o paciente é definido como tal quanto a relação “terapêutica” como sistema de interação psicológica: a própria psiquiatria, enquanto prática psiquiátrica, tornou-se objeto da psiquiatria. Também aqui, entretanto, o psiquiatra apenas elevou o nível de sua pesquisa: ao considerar a si mesmo, em sua relação com o paciente, como objeto da própria disciplina, ele confirmou a validade substancial desta última. O psiquiatra continuou aceitando o mandato social, por reconhecer seu caráter convencional: ele tem admitido, por exemplo, que o jovem delinqüente ou anti-social possa ser considerado mais ou menos doente, segundo as normas sociais; que a neurose é um problema coletivo; que a mãe de um esquizofrênico pode estar, em certo sentido, mais doente do que o filho; que a terapia individual não tem significado maior (e talvez tenha significado menor) do que tinha a terapia de grupos familiares ou grupos de trabalho; ele consentiu em conceder aos próprios opositores que a psiquiatria tende a integrar o indivíduo em função das exigências do poder; aceitou, enfim, a idéia de que tinha tanta necessidade de ser tratado quanto seu paciente. O que ele não conseguiu aceitar foi colocar em causa sua própria natureza de concessionário do poder e sua própria subordinação às normas que esse poder estabelece. Continua dono da situação.
Mesmo quando, como dizíamos acima, a relação psiquiatra- paciente é vivida como “crise”, o paciente continua sendo examinado à luz de uma nova teoria que, tendo renunciado em apelar à psiquiatria tradicional, não pôde no entanto renegar a si mesma nem à sua pretensão científica, nem às normas e aos valores que reivindica para si. A psiquiatria, portanto, reuniu todas as condições para sua destruição mas não soube tirar as conseqüências. Os hospitais psiquiátricos continuam testemunhando essa falência: as bases teóricas da psiquiatra se dissolveram e a psiquiatria continua a existir como puro poder. Aqui convém precisar que, com toda probabilidade, o poder coercitivo da psiquiatria de fato não tenderá a diminuir com o passar dos anos, nem a se dissolver na “livre” relação do paciente rico que alimenta a ilusão de escolher a própria terapia, escolhendo <264>
o próprio terapeuta e a própria clínica: a psiquiatria industrial, por um lado (em seu aspecto de reeducação para a produtividade e para o consumo), e a psiquiatria institucional, por outro, provavelmente estão destinadas a alargarem juntas o próprio campo de ação. Assim como o especialista em psiquiatria, juntamente com o psicólogo, o psicanalista e o sociólogo, serve para reeducar o cidadão para o consumo ou para a adesão ao poder, independentemente da presença, nele, daquilo que continuamos a chamar de “distúrbio mental”, também as instituições psiquiátricas se modificam internamente (o processo já está em curso) para governar com segurança aqueles exclusos que não são imediatamente reintegráveis: os associais e os anti-sociais que as megalópoles industriais hoje tendem a produzir e a afastar do jogo da produtividade competitiva, em número que cresce de ano para ano. A quantidade crescente de asilos para “inadaptados” ou “vagabundos” indica-nos a direção obrigatória de uma repressão psiquiátrica mais extensa nos anos futuros; a psiquiatria moderna já forjou os instrumentos teóricos necessários para suas novas tarefas.
A reforma institucional provém apenas em parte da crise da psiquiatria moderna. Os exemplos de manicômios “abertos” do século XIX demonstram não só que é possível liberalizar um hospital psiquiátrico sem o auxilio dos sedativos hoje em uso, mas também que sempre existe um terreno empírico no qual não é tão difícil iniciar a ruptura do círculo vicioso dos manicômios. Se a violência institucional desaparece, desaparece também a violência do doente mental, e, este muda de aspecto: perde suas características descritas nos velhos, tratados, desaparece como “catatônico”, “agitado”, “dilacerador’, “perigoso”, para enfim mostrar-se sob sua verdadeira luz, sob seu aspecto de pessoa psicologicamente violentada antes e depois de seu internamento. O doente mental perde suas características “incompreensíveis” à medida que consegue inserir sua própria enfermidade num contexto em que são respeitadas a existência e as razões. Porém os problemas surgem a partir deste ponto e é o enfermo quem os apresenta ao médico. A crise da psiquiatria moderna oferece-nos hoje os meios para verdadeiramente compreendermos o que se passa num contexto institucional liberalizado, e nos permite deixar para bem mais adiante a destruição da instituição. Uma vez aberta porta, o processo continua e tende a tornar-se irreversível, mas vem acompanhado de novas contradições. <265>
As contradições internas da instituição resumem-se na dificuldade de abolir a subordinação do enfermo, superando o perigo do paternalismo. As contradições externas dizem respeito ao fato de que o espaço do manicômio não é destruído, porquanto a sociedade lhe envia seus excluídos, submetendo-os a uma legislação bem precisa. O recuperado não encontra trabalho, ou encontra a mesma dinâmica de violência familiar e social que o haviam levado ao manicômio; o doente descobre que pode ser livre dentro da instituição, mas que não pode sair quando quer sem desencadear mecanismos de repressão definidos.
A progressiva destruição interna da organização do manicômio tende a criar um espaço vital onde o uso de instrumentos de autogoverno parece prometer a solução de todos os problemas de convivência; mas é a sociedade externa que impõe limites intransponíveis, e que ainda intervém continuamente para impedir que o hospital renovado seja uma ilha fora do mundo. À medida que os problemas internos não são “resolvidos” por providências do tipo “democrático”, “comunitário” ou “progressista”, mas sobretudo discutidos e sempre recolocados, eles inevitavelmente acabam na confrontação direta com problemas mais reais, que não dizem respeito às disfunções marginais de um comunitarismo auto-satisfeito, mas ao aspecto impessoal e burocrático da violência social. Num hospital psiquiátrico provincial não se correm os riscos típicos das comunidades terapêuticas privadas, onde a própria pré-seleção dos pacientes segundo o nível social e as formas mórbidas constitui a base para uma proteção dourada contra o choque da sociedade externa: aqui, ao contrário, as disposições legais sobre manicômios, as imposições burocráticas e, sobretudo, a “pobreza”, a falta de recursos, a impotência dos hospitalizados, são um dado real que impede toda mistificação. Se mencionamos rapidamente este aspecto do hospital psiquiátrico em via de transformação, fizemo-lo para melhor definir as características daquele personagem ambíguo que, frente ao enfermo, aparece tanto como parte da realidade interna quanto como mandatário da sociedade externa: o que trata do doente, médico ou enfermeiro. Aqui deixaremos de lado os enfermeiros, embora eles nos ofereçam ocasião para uma digressão de grande importância; mas uma vista d’olhos na sua situação poderá ajudar-nos a definir melhor a ambigüidade particular em que se encontra o médico. Mesmo nos <266>
hospitais psiquiátricos mais tradicionais, o enfermeiro, além do caráter “arbitrário” de seu poder sobre o enfermo, ainda estabelece com ele uma relação direta que o médico não chega a estabelecer. Motivos de afinidade cultural e a própria proximidade, durante muitas horas por dia, favorecem o contato, que conserva seu caráter de relação pessoal, mesmo quando subordinado a mecanismos abertamente sádicos, como era freqüente nos velhos manicômios. O caráter que distingue este tipo de relação é a falta de mediações racionais, de ideologias expressas de forma objetiva, de diafragmas científicos.
Entre o médico e o enfermo, ao contrário, há quase sempre uma mediação. Aqui não nos referimos à situação dos manicômios clássicos, onde não se poderia falar de uma “relação médico-paciente”, porquanto tal relação inexiste, mas da situação nas instituições em transformação, onde a tentativa do médico de renunciar ao próprio poder se choca com o caráter irrenunciável de uma superioridade de sapiência, que é privilégio cultural e de classe. As reflexões do médico sobre sua relação com o paciente, de que este livro é exemplo, são a última expressão de um privilégio que sempre tende a se refletir na imagem intelectual que o médico privadamente faz de si mesmo e do enfermo, mediante o auxílio de conhecimentos e de instrumentos teóricos de que o enfermo não dispõe. Sobre esse desequilíbrio fundamental articulam-se todas as dificuldades mais concretas que tornam ambíguo o papel psiquiátrico. No hospital psiquiátrico em transformação a equipe dirigente experimenta o próprio mal-estar como uma divisão entre a adesão a papéis e valores tradicionais e uma tensão antiinstitucional privada de novos papéis e de valores claramente definidos. A equipe sempre é responsável pelo “bom andamento” do hospital nos confrontos com a opinião pública e com as autoridades legais, e sabe que sua liberdade de ação é limitada pela tolerância social, pela boa disposição de um procurador da República, pelo próprio fato de que ela encarna, frente ao mundo exterior, um poder técnico e uma imagem de prestígio social que parcialmente a põe a salvo da violência daqueles que prescrevem que o hospital deve ser fechado e os enfermos confinados em lugar seguro. Não obstante, a equipe tende á renunciar ao mandato institucional, e não se trata de uma renúncia de pouca monta. O mandato social impõe não a destruição da instituição, mas sim a sua manutenção; <267>
não a renúncia àquele tecnicismo psiquiátrico que dá validade à repressão, mas sim a sua utilização; não a crítica ao papel opressivo ou integrante da psiquiatria, mas sim a validação da “seriedade” dessa disciplina para justificar a opressão e a integração; não o favorecimento do poder de contestação dos exclusos e dos oprimidos, mas sim a defesa dos privilégios daqueles que excluem e oprimem; não a criação de uma estrutura horizontal nos hospitais, mas sim o espelhamento, de forma absoluta, da hierarquização da sociedade externa; não a submissão a uma crítica permanente da técnica de manipulação das consciências, mas sim o fornecimento, à sociedade, de estruturas assistenciais “modernas” que sejam funcionais e não ultrapassem os limites impostos pela lei e pelas convenções culturais.
A denúncia dos manicômios hoje se reveste de uma forma científica, ou pelo menos se articula segundo uma crítica claramente teorizada. Por outro lado, essa teorização, se ela indica aquilo que não se deve fazer, nada prescreve de preciso: se a psiquiatria moderna está unida em se negar a si própria, ela não diz ao psiquiatra como ele deve agir para renunciar ao próprio mandato. A única indicação diz respeito à exigência de que médico e paciente se confrontem e assumam novos papéis, esquecendo que um é médico e o outro é doente; mas o desequilíbrio nos papéis efetivamente existe, e o paciente é um recluso na instituição, assim como o médico continua a viver segundo os valores da liberdade, da inteligência que raciocina, da própria responsabilidade social. Em outras palavras, a realidade institucional “liberalizada” mais uma vez reapresenta a psiquiatria como problema. As dificuldades se situam ao nível do paciente, que não consegue recuperar a própria separação, contestando-a; e ao nível do médico, a quem a tentativa de renunciar à própria superioridade e seus privilégios coloca em conflito com ele mesmo. Mas a maior contradição refere - se ao médico, que, diferentemente do paciente, não tem que conquistar a sua liberdade para sobreviver e se repropor ao mundo, mas tem que renunciar a uma universo cultural classista onde ele goza de privilégios. O médico permanece, pois, tenazmente aferrado a essa situação social, à maneira de pensar da sua classe, às presunções da sua formação científica, à ideologia do produtivismo, à propriedade (inclusive a propriedade intelectual), à supremacia individual. Não lhe é fácil libertar-se de tudo isso, nem mesmo dar o primeiro passo: não bastam uma escolha voluntária, <268>
uma diligência benevolente e neuroticamente reparadora, ou uma mais ou menos ingênua aprendizagem comunitária.
Toda a dinâmica antimanicomial se complica pelo fato de não se desenrolar no terreno de uma reivindicação de poder (no sentido político) por parte do paciente, mas no mundo ainda fechado de uma instituição que não tem outro objetivo senão o de conservar sua própria existência. O paciente vive num mundo de separação. Como excluído, é o bode expiatório da organização coercitiva da exploração na sociedade externa, mas não é diretamente o explorado. Ele é a escória e a vítima extrema da violência social, mas, expulso pela violência produtiva e confinado à violência institucional, não consegue opor-se ao mundo político da produtividade, porque este último o excluiu do universo de seus eventuais inter-locutores. A relação que existe entre a exploração e a exclusão está turvada, e o internado que procura se reapropriar da sua exclusão e a ela se opõe não tem à sua disposição os instrumentos adequados para contestar a exploração que ela provocou. O enfermo num hospital psiquiátrico não pode comparar-se com o produtor de bens e de serviços, mesmo inserido num sistema que dele pretende a “livre” alienação de sua força de trabalho: alienado como pessoa na instituição, ele é inútil ao sistema na medida em que sua presença institucional, o internamento forçado, agora concorre apenas indiretamente para a estabilidade social. O segundo obstáculo à dinâmica antimanicomial é a presença persistente da inteligência médica. O exemplo mais típico é o do psiquiatra que aconselha o paciente (entenda-se, para seu bem) a tomar um, remédio que o ajudará a dormir quando ele está cansado, a controlar-se melhor quando está agitado, a desintoxicar-se quando bebe. O paciente (agora, mas não sempre) está sendo tratado. Em certos casos ele pode tratar-se a si mesmo tomando um sonífero quando não pode dormir, ou é confiado aos cuidados de outros internados: mas a destruição do papel institucional do médico encontra aqui um de seus limites mais dificilmente transponíveis. Mesmo que o médico tire seu jaleco branco, concorde em discutir com o doente, ou é por este questionado, ele de fato continua a utilizar a própria superioridade: a autoridade que o doente lhe atribui, antes mesmo que ele a imponha pela violência, permite-lhe impor a própria terapia. Além disso, a renúncia ao poder médico, mesmo que se efetive, poderá perpetuar sob outras formas a subordinação do paciente. <269> A proposta da destruição, por dentro, das instituições manicomiais jamais nasce, na prática, dos hospitalizados, mas do pessoal encarregado do tratamento e dos responsáveis pela organização. Estes últimos utilizam o poder que lhes advém do mandato social para criar condições que permitam ao enfermo a contestação do poder institucional: entretanto eles não deixam de ser os representantes do poder, e, como tais, continuam por muito tempo sendo os agentes da liberalização do doente, antes que este possa assumi-la com toda autonomia. O papel antiinstitucional do médico assemelha-se ao de um pedagogo “ativo” que educa para a liberdade, com a esperança de que seus alunos algum dia venham a contestar seu próprio papel pedagógico. No campo da instituição, entretanto, a liberdade não existe de fato, nem pode ser mascarada sob a forma de liberdade interior na ausência de uma liberdade objetiva. A isto se poderia retorquir que a liberdade também não existe no mundo exterior, e que o ambiente institucional tem pelo menos o mérito de tornar manifesta uma ausência geral de liberdade, ao que é necessário replicar que o mundo exterior oferece a cada um a ocasião de unir a própria rebelião contra o mundo da produtividade e a uma atividade política revolucionária. Tais possibilidades, no âmbito de um hospital psiquiátrico, parecem remotas e veladas. Assim, a consciência da exclusão é freqüentemente experimentada pelo doente como injustiça acidental, como delimitação imperfeita das fronteiras de uma norma cujo conceito ele dificilmente chegará a criticar. O psiquiatra, de sua parte, já perdeu a ilusão da própria objetividade e sabe que não pode distanciar de si o doente, objetivando-o na pesquisa; porém, se tende facilmente a enobrecer o conceito do desvio, subtraindo a este último o corolário automático da sanção, ele não consegue, a não ser com muita dificuldade, propor um universo prático em que a noção tradicional do desvio seja colocada em causa. Por conseguinte impõe-se uma ação revolucionária, mesmo se está perfeitamente claro que o hospital psiquiátrico, por mais antiinstitucional que seja, não favorece especialmente esse tipo de ação. A destruição do hospital psiquiátrico é um empreendimento político, pois a psiquiatria tradicional, dissolvendo-se, deixou psiquiatras e pacientes em confronto direto com os problemas da violência social: contudo, não existem as características típicas de um empreendimento revolucionário. <270>
Isto explica algumas das limitações para a tomada de consciência pelos hospitalizados. Para estes é compreensível que os valores do restabelecimento continuem sendo considerados mais segundo as definições conformistas da sociedade externa, isto é, em função de uma tentativa de integração, do que segundo os valores bem mais difíceis de elaborar (e também mais penosos de sustentai no plano psicológico) de uma contestação à ordem social.
Também para a equipe de tratamento, na medida em que não tem que forjar um novo tipo de consciência antipsiquiátrica, é evidente o risco de continuar agindo exclusivamente no âmbito das contradições de seu velho mandato. A digressão parece encerrar-se com uma constatação de impotência. Contudo, no momento em que foram delineados com suficiente clareza os limites práticos de uma ação antiinstitucional a partir dos hospitais psiquiátricos, é ainda necessário propor uma nova reviravolta e reconhecer que mais uma vez é possível negar a especificidade da psiquiatria. Para o doente essa reviravolta é possível, ao menos em forma embrionária, na medida em que a ação antiinstitucional já contém em si a recusa do princípio da autoridade; para a equipe de tratamento, a experiência tem sentido desde que ela registre não tanto a incongruência da psiquiatria, mas a formulação de um protesto que tenha um significado e um alcance mais geral. Outros poderão retomar o protesto, mas esse já existe em sua escolha inicial. O fato de que, de várias partes do país, alguns psiquiatras se reuniram em Gorizia para um trabalho antiinstitucional, não é devido ao acaso, nem à inevitável consolidação, em torno de uma “escola”, dos desequilíbrios existentes na psiquiatria italiana, mas sim a uma série de análises e de opções políticas preliminares. Neste sentido, a denúncia da psiquiatria tradicional nos manicômios como sistema de poder persegue substancialmente dois objetivos: por um lado, fornecer uma série de estruturas críticas adequadas para destruir, entre outras, a “verdade evidente por si” sobre a qual se baseia a ideologia de nosso viver quotidiano; por outro, chamar a atenção para um mundo — o mundo institucional — onde a violência da exploração do homem pelo homem se funde na necessidade de anular os banidos, de supervisionar e tornar inofensivos os excluídos. Os hospitais psiquiátricos podem nos ensinar muitas coisas sobre uma sociedade na qual o oprimido é cada vez mais afastado da percepção das causas e dos mecanismos <271>
da opressão. No momento em que a crítica política começa a levantar a potencialidade subversiva de todos aqueles que foram declarados “fora do jogo”, a veleidade da antipsiquiatria se propõe a indicar, numa experiência e numa teorização decisivamente antecipatórias, algumas das vias possíveis para uma sociedade totalmente diferente.
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domingo, 8 de junho de 2014
CRISE DA PSIQUIATRIA E CONTRADIÇÕES INSTITUCIONAIS
http://psicologogeofilho.no.comunidades.net/index.php?pagina=1769586659_37
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