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segunda-feira, 9 de março de 2015

NOTAS SOBRE “O NORMAL E O PATOLÓGICO” DE G. CANGUILHEM

http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/n00006.htm

NOTAS SOBRE “O NORMAL E O PATOLÓGICO” DE G. CANGUILHEM

  

Erik Fernando Miletta Martins
IEL - UNICAMP
marmieladov@gmail.com

 A segunda parte da tese de doutorado em medicina, “Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e o patológico”, de Georges Canguilhem (1904-1995) possui um título indagador: “Existem ciências do normal e do patológico?”. Sanar esta dúvida, ou melhor, problematizar e apontar algumas possíveis respostas é o objetivo deste capítulo inserido na tese, publicada em 1943, cujo objetivo básico é criticar as influências da tradição positivista[1] , fundamentada conceitualmente por Auguste Comte nas idéias de Broussais, na medicina de seu tempo. Dentro desta técnica sua influência foi dar base científica à idéia de que fenômenos patológicos são apenas variações de intensidade de seus “correlatos” fisiológicos ou normais. Para atingir seu intento, nesta parte do trabalho o autor tenta entender melhor como a medicina estabelece seu conceito de normal, e por conseqüência o de patológico; ele busca explicar se é somente dentro da própria medicina que se dá este processo, endógeno, ou se ele é exógeno e normativo, recebendo as noções de fatos e coeficientes funcionais da fisiologia. Expor como o autor entende e resolve esta questão, e, sempre que necessário, estabelecer paralelos dentro do campo da Afasiologia, é o objetivo do texto que segue.
É necessário antes de adentrar a questão de como a medicina estabelece seu conceito de normalidade, entender de forma apropriada o conceito de normalidade defendido pelo autor, que, criticando as idéias de Comte, não acreditava que a relação entre o normal e o patológico se dê através de variação quantitativa, da semântica do hipo/hiper, mas acredita que essa variação seja de ordem qualitativa, propondo o conceito de alteração que é necessariamente vinculado à noção de homogeneidade  e de continuidade. É de suma importância entender que este segundo conceito não propõe uma coincidência, ou mesmo uma oposição, entre o normal e o patológico: “ posso apenas intercalar entre extremos, sem reduzi-los um ao outro, todos os intermediários cuja disposição obtenho pela dicotomia de intervalos progressivamente reduzidos...” Canguilhem (1943,1995: 53), mas, indo de acordo com os trabalhos de Bernard, que, de fato, faz uma proposta de análise quantitativa [2] , o autor vai contra o conceito de média que regulava as leis da fisiologia [3] .É só a partir dessas considerações que podemos entender melhor o que o autor define por normal, que só pode ser entendido no plano individual da normatividade biológica que aceita as leis naturais em estado patológico dentro do funcionamento do próprio organismo e é obrigatoriamente relacionada com o meio: “...um ser vivo é normal num determinado meio na medida que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder às exigências do meio...” (Ibid:113). É dessa relação essencial da vida com o meio, relação natural, que ele explica a necessidade do normal na consciência humana, necessidade anterior à própria consciência por ser fruto da relação do ser com meio; “em germe, na vida”. A patologia então pode ser uma variação normativa da vida, mas não é regida pela mesma norma que a fisiologia, ou seja, ela deve ser relacionada à vida e não à saúde.
Estabelecido o conceito de normal defendido pelo autor, podemos adentrar à questão inicial: como a medicina estabelece o que é normal? Para responder essa questão devemos pensar no papel da observação clínica, que é, ou deveria ser, o lugar de intermédio entre o sujeito doente e o médico; momento crucial onde o papel do indivíduo no sujeito aparece, abrindo a possibilidade de se entender o normal para aquele indivíduo, ou, citando Canguilhem (Ibid: 144) “...determinado indivíduo pode se encontrar à “altura dos deveres resultantes do meio que lhe é próprio””. Dessa noção temos que pensar a terapêutica, lugar onde esse “normal” se deseja restabelecer, onde o indivíduo pode voltar a ser normativo, para que então possamos enxergar de onde parte a noção empírica, por conseguinte axiológica, da doença em medicina. Mas, como mostra a tese, a influência também vem da fisiologia “...ciência das situações e condições biológicas consideradas normais.” (Ibid: 188), cuja função é atribuir valores de “normal” às constantes; a quebra metodológica se deveria dar aqui a partir do instante em que Canguilhem, apoiado em Bernard, critica o conceito de média, parâmetro do normal na fisiologia tradicional. É assim que a medicina “atividade que tem raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar o meio e organizá-lo” (Ibid: 188), busca seu conceito de normal e de patológico, os processos são endógenos e exógenos e de preferência os mais prescritivos possíveis, pois o que interessa aos médicos “..é diagnosticar e curar.” (Ibid: 94)
Para corroborar essas idéias o autor inclusive se utiliza de fatos descritos na Afasiologia, citando problemas de linguagem na construção da critica que estabelece sobre a identificação destes; como saber de que o paciente sofre? Qual o problema do método na determinação estanque do quadro clínico? Aponta para problemas que nem sempre são de ordem médica, mas lingüísticos, como o da variedade das estruturas lingüísticas, por exemplo. Argumenta, trazendo a questão da alteração enquanto fenômeno para a Afasiologia, Novaes (1999: 34): “ permite que possamos nos referir às afasias sem o peso dos termos patológicos que impregnam as descrições.” Demonstrando que o papel de uma nosologia “precisa”, normativa e prescritiva, é de fato impossível, cada sujeito apresenta quadro único. O método patológico é deficiente, como é o caso da maioria das “baterias de teste” para diagnosticar afasia, que não levam em conta o antes do paciente, qual a sua relação com as palavras e o mundo que ele está enfrentando após o acidente; qual sua relação com o laboratório? Sendo este um outro meio, um lugar institucional? É de estresse? É de calma? Será que essas variantes não podem fazer diferença significativa na hora do diagnóstico? Testes que estão mais apoiados em teorias lingüísticas evitam os métodos tradicionais de análise, com propostas inovadoras de (re)integração social, responsável, dos sujeitos afásicos. Mas então sobra a pergunta: como ainda hoje sobrevive essa tradição? A resposta é uma conseqüência da normatividade biológica inerente, necessária ao homem, criando a necessidade de acabar com ansiedade gerada pela ignorância ao dar um nome ao problema que apresenta, e assim, uma possível cura. Pode-se aproveitar muito desta tese no campo da Afasiologia, pois sua contribuição a atinge os diversos aspectos, seja na profilaxia, na terapêutica, na clínica, na patologia, mas não é este o objetivo desta resenha.
É importante também colocar esta tese no ponto de vista epistemológico, pois é uma obra que tem objetivos ambiciosos e gera dúvidas neste campo; afinal o autor está propondo uma verdadeira ruptura com as idéias(ideais) de ciência de sua época, o positivismo, ou está só refletindo o fim dessa tendência? Sua crítica aos métodos e conceitos das ciências naturais aplicadas no campo médico, como se pôde perceber, são fundamentadas numa releitura de diversos coetâneos. Creio que possa haver influências diretas de um movimento de crítica surgido dentro do próprio positivismo comteano, uma vez que Canguilhem cita e nem sempre combate diretamente as considerações do pai dessa filosofia, mas sempre questiona seus métodos, sua semiologia, sua teoria, fato nada incomum na História das Ciências. Podem-se estabelecer diversas comparações a fatos semelhantes em outras ciências, como no caso da própria Lingüística, cujas tendências anti-estruturalistas surgiram do seio do Estruturalismo (basta remetermos a Jakobson e o Círculo de Moscou), ocorrência semelhante ao surgimento da semântica gerativa, que não deixa de ser uma ruptura, que partiu de dentro dessa corrente, o Gerativismo, “criada” por Noam Chomski. Adotar a postura de Canguilhem como uma ruptura, adotar o conceito de ruptura é adotar o PIC (programa de investigação científica) e toda a teoria de Imre Lakatos, é entender que o “progresso” da ciência, indo contra a maioria das posturas epistemológicas mecanicistas e dialéticas de continuidade, se dá pelo “devir da Razão científica” nas palavras de Althusser (Apud Canguilhem, 1943,1995: 275). A presença de rupturas e paradoxos, recuos e saltos dentro do sua própria história, é, portanto, comprometer-se com idéia que Canguilhem estava criticando internamente o positivismo, que, sendo ele homem de seu tempo, viveu as idéias de precisão e idealidade que foram marcas maiores desta corrente filosófica, adotou-as e questionou-as, tornando-se, digamos, um “positivista fraco”.               




BIBLIOGRAFIA
(1943,1995) CANGUILHEM,G. O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. – 4a. Ed.- Rio de Janeiro, Forense Universitária.
(2002) MORATO, E. M. “As afasias entre o normal e o patológico: da questão (neuro)lingüística à questão social” in O direito à fala: a questão do preconceito lingüístico, Orgs. Fábio Lopes Silva e Heronides Maurílio de Melo Moura, 2a.ed. rev. Florianópolis: Insular.
(1999) PINTO.R,C.N. A contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das categorias clínicas, Tese de Doutorado (UNICAMP-IEL), Campinas.   



[1] Deve-se ampliar essa interpretação toda vez que temos contato com essa obra, pois devemos entender que, como aponta Morato (2002: 63) “a questão que envolve o problema normal X patológico tem a ver com o que Foucault chamou de “vontade de verdade” de uma época...”, é necessário portanto inseri-la dentro da tradição filosófica de seu tempo, e entendê-la como um dos clássicos da literatura da História das Ciências e da Epistemologia como um todo ao apontar os problemas da tradição realista( os problemas do ideal, do generalista, do perfeito) e dada a sua contribuição no aprofundamento sempre insuficiente das questões ontológicas da ciência ao tentar mostrar os problemas que uma classificação taxonômica, estanque e inevitavelmente superficial, acarreta no diagnóstico, na maior parte das vezes impreciso, das patologias.
[2] Ao contrário de Comte e Broussais, Bernard questiona o conceito de média, tanto no plano individual quanto no plano social. A ressalva do autor com relação a este consiste na idéia que ele trabalha sem pensar na polaridade da vida, uma vez que esta não é indiferente às condições que lhe são impostas.
[3] Uma ressalva importante; o autor, em dado momento aponta que não crê que o homem médio seja um “homem impossível”, mas explica que a fisiologia não se pode extrair a norma a partir dessa teorização.

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