A loucura internada, institucionalizada, passaria a ser moldada pela
própria ação da institucionalização: – És um demente precoce! é o que
afirmava o alienismo. E, após alguns longos anos de institucionalização,
a demência nele se assentava. Em analogia à Stengers tratar-se-ia do
fenômeno da testemunha fidedigna: o efeito é produzido tanto pela teoria
quanto por sua ação prática.
Para Rotelli , “o mal obscuro da psiquiatria está em haver separado um
objeto fictício, a doença, da existência global e complexa dos utentes e
do corpo social. Sobre esta separação artificial se construiu um
conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos
(precisamente a instituição) todos referidos ã doença.” (Rotelli, 1990,
28).
Este tem sido um princípio importante no âmbito da Reforma Psiquiátrica, pois representa uma ruptura fundamental.
O resultado prático da psiquiatria clássica, ao considerar a loucura
doença, erro absoluto, distúrbio da razão, perda do juízo, incapacidade
civil, irresponsabilidade social e jurídica, foi criar para o louco um
lugar de exclusão, um lugar zero de trocas sociais (Rotelli, 1990), cuja
expressão mais radical é o manicômio.
Colocar a doença entre parênteses não significa a sua negação; a negação
de que exista algo que possa produzir dor, sofrimento, diferença ou
mal-estar. Significa a recusa à explicação psiquiátrica; à capacidade de
a psiquiatria dar conta do fenômeno com a simples nomeação abstrata de
doença. A doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia social e
política da exclusão, e a ruptura epistemológica com o saber naturalístico da psiquiatria.
Paulo Amarante - Reforma Psiquiatrica e Epistemologia
A psiquiatria colocou o sujeito entre parênteses para ocupar-se da
doença; para Basaglia a doença é que deveria ser colocada entre
parênteses para que pudéssemos ocupar-nos do sujeito em sua experiência.
Portanto, no bojo mais profundo do processo de Reforma Psiquiátrica
existe uma importante e contemporânea discussão, que é sobre as
ciências. A psiquiatria foi fundada num contexto epistemológico em que a
realidade era um dado natural, capaz de ser apreendido, mensurado,
descrito e revelado. Num contexto em que a ciência significava a
produção de um saber positivo, neutro e autônomo: a expressão da verdade! A partir de então a psiquiatria vem contribuindo de forma
importante, tanto no aspecto conceitual (com a construção de tantos
outros conceitos - degeneração, cretinismo, idiotia), quanto no aspecto
de suas práticas (pela invenção do manicômio, do tratamento moral, das
terapias de choque), para a consolidação de um imaginário social no qual
a diferença seja associada à anormalidade.
Por exemplo, se adotamos a noção de complexidade para lidar com o
conceito de doença, este deixa de ser um objeto naturalizado, reduzido a
uma alteração biológica ou de outra ordem simples, para tornar-se um
processo saúde/enfermidade.
Embora o conceito de alienação não significasse ausência abstrata da Razão,
mas somente contradição na Razão, como atentava Hegel, essa contradição
impossibilitaria a Razão Absoluta. Portanto, àquele em cuja Razão existisse tal
contradição seria um alienado, o que o tornaria incapaz de julgar, de
escolher; incapaz mesmo de ser livre e cidadão, pois a Liberdade e a
cidadania implicavam no direito e possibilidade à escolha.
Em conseqüência, em uma dimensão técnico-assistencial,
podemos argüir: qual o modelo assistencial decorrente de um conceito
que pressupõe tal contradição na Razão, tal falta de Juízo? Não seria o
seqüestro deste não-mais-sujeito ou ainda-não-sujeito? A resposta seria
óbvia: o manicômio, como expressão de um modelo que se calca na tutela,
na vigilância panóptica, no tratamento moral, na disciplina, na
imposição da ordem, na punição corretiva, no trabalho terapêutico, na
custódia e interdição. Enquanto alienado (alheio, ausente), ele estaria
incapaz até mesmo de decidir pelo seu tratamento, motivo este que
justificaria que fosse tomada tal decisão em seu lugar. O
tratamento, no caso, deveria ser realizado numa instituição fechada,
tanto porque o isolamento favoreceria a observação do “objeto em seu
estado puro” - sem as indesejáveis interferências da vida social -,
quanto porque o isolamento seria, em si, terapêutico, pois as mesmas
interferências que prejudicavam a observação, contribuiriam também para
as causas da loucura.. O asilo, este espaço cientificamente ordenado,
como insistiam Pinel e Esquirol seria, portanto, o lugar ideal para o
exercício do tratamento moral, da reeducação pedagógica, da vigilância e
da disciplina. Tratado, o alienado perderia esta condição miserável e,
somente então poderia ser considerado cidadão, homem livre, pleno de
direitos e deveres. Passamos assim à dimensão jurídico-política do
processo: rediscutir e redefinir as relações sociais e civis em termos
de cidadania, de direitos humanos e sociais. Numa dimensão cultural do
processo de Reforma Psiquiátrica, poderíamos resumir da seguinte
forma: o objetivo maior deste processo não é a transformação do modelo
assistencial (que, como vimos, é um elemento apenas de uma de suas dimensões), mas a transformação do lugar social da loucura, da diferença e da divergência.
Paulo Amarante - Reforma Psiquiatrica e epistemologia
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