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terça-feira, 13 de outubro de 2015

Reforma Psiquiatrica e Epistemologia

A loucura internada, institucionalizada, passaria a ser moldada pela própria ação da institucionalização: – És um demente precoce! é o que afirmava o alienismo. E, após alguns longos anos de institucionalização, a demência nele se assentava. Em analogia à Stengers tratar-se-ia do fenômeno da testemunha fidedigna: o efeito é produzido tanto pela teoria quanto por sua ação prática.

Para Rotelli , “o mal obscuro da psiquiatria está em haver separado um objeto fictício, a doença, da existência global e complexa dos utentes e do corpo social. Sobre esta separação artificial se construiu um conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos (precisamente a instituição) todos referidos ã doença.” (Rotelli, 1990,
28).
Este tem sido um princípio importante no âmbito da Reforma Psiquiátrica, pois representa uma ruptura fundamental.
O resultado prático da psiquiatria clássica, ao considerar a loucura doença, erro absoluto, distúrbio da razão, perda do juízo, incapacidade civil, irresponsabilidade social e jurídica, foi criar para o louco um lugar de exclusão, um lugar zero de trocas sociais (Rotelli, 1990), cuja expressão mais radical é o manicômio.

Colocar a doença entre parênteses não significa a sua negação; a negação de que exista algo que possa produzir dor, sofrimento, diferença ou mal-estar. Significa a recusa à explicação psiquiátrica; à capacidade de a psiquiatria dar conta do fenômeno com a simples nomeação abstrata de doença. A doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia social e política da exclusão, e a ruptura epistemológica com o saber naturalístico da psiquiatria.

Paulo Amarante - Reforma Psiquiatrica e Epistemologia

A psiquiatria colocou o sujeito entre parênteses para ocupar-se da doença; para Basaglia a doença é que deveria ser colocada entre parênteses para que pudéssemos ocupar-nos do sujeito em sua experiência.

Portanto, no bojo mais profundo do processo de Reforma Psiquiátrica existe uma importante e contemporânea discussão, que é sobre as ciências. A psiquiatria foi fundada num contexto epistemológico em que a realidade era um dado natural, capaz de ser apreendido, mensurado, descrito e revelado. Num contexto em que a ciência significava a produção de um saber positivo, neutro e autônomo: a expressão da verdade! A partir de então a psiquiatria vem contribuindo de forma importante, tanto no aspecto conceitual (com a construção de tantos outros conceitos - degeneração, cretinismo, idiotia), quanto no aspecto de suas práticas (pela invenção do manicômio, do tratamento moral, das terapias de choque), para a consolidação de um imaginário social no qual a diferença seja associada à anormalidade.

Por exemplo, se adotamos a noção de complexidade para lidar com o conceito de doença, este deixa de ser um objeto naturalizado, reduzido a uma alteração biológica ou de outra ordem simples, para tornar-se um processo saúde/enfermidade.

Embora o conceito de alienação não significasse ausência abstrata da Razão,
mas somente contradição na Razão, como atentava Hegel, essa contradição
impossibilitaria a Razão Absoluta. Portanto, àquele em cuja Razão existisse tal
contradição seria um alienado, o que o tornaria incapaz de julgar, de escolher; incapaz mesmo de ser livre e cidadão, pois a Liberdade e a cidadania implicavam no direito e possibilidade à escolha.
Em conseqüência, em uma dimensão técnico-assistencial, podemos argüir: qual o modelo assistencial decorrente de um conceito que pressupõe tal contradição na Razão, tal falta de Juízo? Não seria o seqüestro deste não-mais-sujeito ou ainda-não-sujeito? A resposta seria óbvia: o manicômio, como expressão de um modelo que se calca na tutela, na vigilância panóptica, no tratamento moral, na disciplina, na imposição da ordem, na punição corretiva, no trabalho terapêutico, na custódia e interdição. Enquanto alienado (alheio, ausente), ele estaria incapaz até mesmo de decidir pelo seu tratamento, motivo este que justificaria que fosse tomada tal decisão em seu lugar. O tratamento, no caso, deveria ser realizado numa instituição fechada, tanto porque o isolamento favoreceria a observação do “objeto em seu estado puro” - sem as indesejáveis interferências da vida social -, quanto porque o isolamento seria, em si, terapêutico, pois as mesmas interferências que prejudicavam a observação, contribuiriam também para as causas da loucura.. O asilo, este espaço cientificamente ordenado, como insistiam Pinel e Esquirol seria, portanto, o lugar ideal para o exercício do tratamento moral, da reeducação pedagógica, da vigilância e da disciplina. Tratado, o alienado perderia esta condição miserável e, somente então poderia ser considerado cidadão, homem livre, pleno de direitos e deveres. Passamos assim à dimensão jurídico-política do processo: rediscutir e redefinir as relações sociais e civis em termos de cidadania, de direitos humanos e sociais. Numa dimensão cultural do processo de Reforma Psiquiátrica, poderíamos resumir da seguinte forma: o objetivo maior deste processo não é a transformação do modelo assistencial (que, como vimos, é um elemento apenas de uma de suas dimensões), mas a transformação do lugar social da loucura, da diferença e da divergência. 

Paulo Amarante - Reforma Psiquiatrica e epistemologia

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