Menu

sábado, 30 de janeiro de 2016

Uma crítica do termo “neuroatípica”

http://psiquevulva.com/2016/01/15/uma-critica-a-utilizacao-do-termo-neuroatipica/

Texto por Ana Beys
De tempos em tempos surgem novas nomenclaturas que se popularizam nas redes sociais, nomenclaturas muitas vezes adotadas e incorporadas pelos movimentos sociais de uma forma que não parece ocorrer por elas serem mais completas ou expressarem a realidade de uma maneira melhor e sim porque tem bastante gente usando, então, “vamos usar também”! É o que me parece quando reproduzimos conceitos os quais muitas vezes não sabemos o que significam, de onde vêm e, o mais importante: se são úteis enquanto categoria de análise. Um dos mais recentes que tenho visto é o “neuroatípico”. Falando em termos de feminismo, tenho visto essa palavra sendo utilizada como a forma “correta” de se referir a mulheres com diagnósticos de doenças mentais ou sofrimento psíquico, quaisquer que eles sejam. É uma palavra que designa que o funcionamento psíquico – mais especificamente do sistema nervoso – é diferente do que seria normal ou esperado. Mas que comprovação existe, e há quem serve a ideia, de que o problema das pessoas, e especificamente das mulheres (as mais atingidas pela vasta maioria das doenças mentais e as maiores consumidoras de medicação psiquiátrica) reside em um funcionamento irregular do sistema nervoso?
Há muito tempo a psiquiatria vem impondo o modelo médico para área da Psicologia. Ou seja, existe uma coerção e um “lobby” se passando por científico para que se aceite a mente como qualquer outro órgão do corpo, que adoece e se cura da mesma forma. Que o problema de quem tem doenças mentais é um problema fisiológico. Porém, as muitas pesquisas, incluindo aí mesmo as diversas manipuladas por interesses capitais e ideológicos, não conseguem comprovar de fato que a chave do adoecimento mental encontra-se numa deficiência anatômica. A mente é muito mais complexa que, por exemplo, um rim. Tanto é que se criou uma ciência, a Psicologia, especificamente para estudar ela, que por fim é o estudo do funcionamento humano em suas diversas formas, incluindo a social. E empurrada por essa coerção médica e farmacológica, a Psicologia e as mulheres muito sofreram.
O lado social, componente central para a formação da personalidade e uma das causas das doenças mentais, é, com frequência, deixado de lado. Como feministas, como mulheres que acreditam que não tem nada de biológico no gênero, deveríamos também ser as primeiras a questionar se é a biologia a responsável pelas doenças mentais. Estudando a história da Psicologia e das mulheres, e olhando para distúrbios como a antiga histeria, anorexia e fobia social, fica claro como o desenvolvimento de distúrbios está intimamente conectado com as condições sociais, econômicas e culturais de cada período histórico. Por que pegamos para nós, então, a utilização da nomenclatura “neuroatípica”? É útil pensar, dentro do feminismo, que o problema é individual? Que ele reside no funcionamento errôneo do nosso sistema nervoso, do nosso cérebro? E qual seria o oposto, a forma “neurotípica” de funcionamento, o padrão, a normalidade? Quando uma mulher desenvolve depressão (…) por sofrer abusos verbais, físicos, emocionais, ela é neuroatípica? É a sua parte neurológica que não está funcionando bem e é, portanto, isso que deve ser nomeado ou ela está tendo uma resposta normal frente a condições, essas sim, problemáticas? Quando uma mulher sofre transtorno pós-traumático depois de sofrer violência obstétrica, de sofrer na prostituição, depois de um estupro, incesto, de apanhar do marido, ela é “neuroatípica”? Quando uma mulher desenvolve agorafobia (dificuldade de sair de casa) depois de sofrer, na rua, lesbofobia, racismo, assédios sexuais e morais, ela é neuroatípica? Se (…) admitimos que a geração de doenças mentais é multifatorial, por que nomear apenas a parte biológica, a qual (…) costuma ser o menor dos disparadores?
Não individualizemos o problema. Não coloquemos o problema como estando em nós. Ser mulher frequentemente se traduz em existir na dor. Em nascer, viver e morrer na dor, especialmente quando estão envolvidos outros marcadores como raça, classe e orientação sexual. E o que as mulheres fazem é resistir apesar do sofrimento que nos é imposto desde o nascimento por um sistema patriarcal, capitalista e branco-supremacista. Nossas reações às violências diárias e incessantes que nos ocorrem, nos mais diversos níveis, tem que ser destacadas pelo menos no feminismo, afinal, boa parte da Psicologia já faz o trabalho de manter a ideia da transposição do modelo médico para o funcionamento da mente. Por isso, acredito que a nomenclatura “neuroatípica” para se referir a mulheres em sofrimento mental não é útil nem expressa com precisão o que se passa. Nosso sofrimento não é menos real ou menos digno de estudo e de respeito por não ser biológico ou genético.

Nenhum comentário:

Postar um comentário