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sexta-feira, 13 de julho de 2018

Prevenção de psicose

Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 24 [ 3 ]: 741-763, 2014
755
O DSM-V como
dispositivo de segurança
| 1 Sandra Caponi |
Departamento de Sociologia,
Universidade Federal de Santa
Catarina. Florianópolis-SC,
Brasil. Endereço eletrônico:
sandracaponi@gmail.com

Antes da publicação do DSM-V, Frances dirigiu sua crítica, fundamentalmente,
a uma categoria que considerava particularmente frágil e problemática: Psychosis Risk Syndrome (síndrome de risco de psicose). Esta categoria será de fato excluída do DSM-V, porém, como afirma o próprio Frances, retornará com as mesmas fragilidades e os mesmos problemas, como uma categoria que se inscreve no grupo abrangente do Schizoprenia Spectrum, com uma nova denominação, Attenuated Psychosis Syndrome, uma nova sigla (APS). Assim, no texto recentemente publicado, “Psychosis risk syndrome is back to haunt us”, lemos que:

A única maneira de evitar os perigos do DSM-V é estar plenamente conscientes deles. Não faz absolutamente nenhum sentido fixar o rótulo enganoso e estigmatizante “Other Specified Schizophrenia Spectrum Disorder”’em alguém que, em configurações típicas, terá apenas cerca de 10% de chance de se tornar psicótico. E, certamente, não faz sentido seguir esse diagnóstico errado com tratamentos antipsicóticos sem comprovação e potencialmente muito prejudiciais (FRANCES, 2013b, p. 1).

O DSM5 poderia criar dezenas de milhões de novos mal identificados pacientes “falso positivos” exacerbando assim, em alto grau, os problemas causados por um já demasiado inclusivo DSM-IV. Haveria excessivos tratamentos massivos com medicações desnecessárias, de alto custo e frequentemente bastante prejudiciais (FRANCES, 2010, p. 2).

É possível afirmar que uma das estratégias indispensáveis para garantir a indefinida ampliação de diagnósticos e categorias psiquiátricas é a obsessão por identificar pequenas anomalias, angústias cotidianas, pequenos desvios de conduta como indicadores de uma patologia psiquiátrica grave por vir.

Os psiquiatras esperam identificar pacientes mais cedo e criar tratamentos efetivos para reduzir a cronicidade das patologias. Desafortunadamente, os membros do Grupo de Tarefas usualmente cometem o erro de esquecer que qualquer esforço por reduzir as taxas de falsos negativos deve elevar as taxas de falsos positivos de modo dramático e com fatais consequências. Se alguma vez será possível chegar à esperada vantagem da detecção precoce de casos, deveremos ter provas diagnósticas específicas e tratamentos seguros. Em contraste, as propostas do DSM-V, levam à uma perigosa combinação de iagnósticos não específicos, inadequados, e a tratamentos não aprovados e danosos (FRANCES, 2010, p. 6).

Em 2010 Frances afirmava, por referência à síndrome de risco de psicose, que a existência desse diagnóstico provocaria uma alarmante taxa de falsos positivos de 70 a 75%, levando milhares de adolescentes e jovens a receber, sem necessidade, a prescrição de antipsicóticos atípicos que causam efeitos colaterais sérios como aumento de peso, impotência sexual e redução da expectativa de vida. Após a edição do manual, esses mesmos problemas permanecem. Entende-se que o diagnóstico de Attenuated Psychosis Syndrome (APA, 2013, p. 785) não é mais que outro nome para o risco de psicoses. Poderíamos acrescentar também que o código (298.8) referido a Other Psychotic Disorders (APA, 2013, p. 87) poderia vir a substituir também a categoria Síndrome de risco de psicose. Frances afirma:

A prevenção da psicose seria uma ótima ideia se realmente fosse possível fazê-la, mas não há nenhuma razão para se pensar nisso. Ir além de nossa compreensão provavelmente afetará aqueles que esperávamos ajudar. O Risco de Psicose não deve ser usado como um diagnóstico clínico, pois estará quase sempre errado. A estrada para o inferno está pavimentada de boas intenções e de más consequências não intencionais. Primeiro, não causar dano. (FRANCES, 2013c, p. 1).

Saber antecipar os riscos, estar devidamente informado e agir de acordo às exigências impostas pelos últimos estudos epidemiológicos, psiquiátricos e médicos, se impõe como um dever moral a todos nós e de maneira idêntica. Se
o dispositivo de segurança pode articular-se com o modo liberal de governar, é porque este tipo de gestão biopolítica das populações se baseia na confiança absoluta, na difusão de informações que se apresentam como neutrais e objetivas, e que sutilmente somos levados a aceitar e a integrar a nossas vidas.

A múltiplas categorias diagnósticas que aparecem nos sucessivos DSM a partir do ano 1980 fazem parte desta lógica securitária que promete antecipar o risco de sofrer uma patologia mental grave no futuro.

O que Frances parece esquecer é que a mesma estratégia de antecipação de riscos que se aplica no caso do Attenuated Psychosis Syndrome possibilitou que o DSM-IV participasse ativamente do crescente processo de multiplicação de patologias mentais na infância (TDAH, dislexia, ansiedade, dentre outras). Em ambos os casos, opera-se uma mesma lógica securitária de identificação precoce de riscos que, supostamente, permitiria antecipar a emergência de patologias mentais irreversíveis, assim como permitiria prevenir atos de violência dirigidos aos outros ou a si mesmo, podendo chegar a limites como o homicídio ou o suicídio.
Acredito que, como afirmam Elisabeth Roudinesco (2013) ou Phylippe Pignarre (2006), dentre outros, é necessário abandonar o DSM como modelo hegemônico de diagnóstico no campo da psiquiatria. O manual necessariamente reduz os sofrimentos individuais a uma lista de sintomas ambíguos e pouco claros para um conjunto, cada vez maior, de patologias mentais. É preciso inventar estratégias que nos permitam compreender que os sofrimentos psíquicos só podem tornar-se inteligíveis no interior de uma história de vida. Somente a escuta atenta das narrativas de nossos ódios e amores, de nossos medos, conquistas e fracassos poderá nos auxiliar na difícil e infinita tarefa de construção e reconstrução de nossa subjetividade.

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