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quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Politica social de saúde (Dowbor)


Saúde, sem dúvida, custa. Mas é o produto que mais

desejamos. Ou seja, é um produto, e talvez o melhor de

todos. Não é uma atividade meio, é uma atividade fim.

No entanto, devemos distinguir o nível de saúde atingido

em termos de resultados e o processo que permite atingi-

-los. Como em qualquer processo produtivo, a setor deve

alcançar os melhores resultados com o mínimo de custos.

É o que se chama de produtividade da saúde. Nas últimas

décadas, o mundo ganhou uma sobrevida impressionante.

Antes, vivia-se tempo suficiente para criar os filhos. Hoje, as

pessoas vivem 80, 90 anos. O progresso é impressionante.

O Atlas Brasil 2013, na avaliação geral dos 5.565 muni-

cípios do país, mostra que, entre 1991 e 2010, o tempo

médio de expectativa de vida do brasileiro subiu nove anos,

passando de 65 para 74 anos. São resultados espetaculares. 13

As pessoas tendem a atribuir esses resultados aos pro-

dutos que vemos na publicidade, belos hospitais e novos

medicamentos. “Tomou Doril, a dor sumiu” e semelhantes.

Na realidade, o imenso avanço da humanidade em termos

de esperança de vida se deve essencialmente à vacina, ao sa-

bão, ao acesso à água tratada e ao saneamento básico. Mais

recentemente no Brasil, a redução da fome com os diversos

programas governamentais também operou milagres, o que

explica em grande parte os nove anos de vida que ganhamos.

Portanto, ainda que grande parte de mídia se preo-

cupe com o tratamento da doença, os grandes ganhos de

produtividade e de dias saudáveis se devem à saúde pre-

ventiva, ou seja, ao conjunto das medidas – muitas delas

fora do que consideramos normalmente setor de saúde –

que evitam que surjam as doenças. Prevenir é incompara-

velmente mais produtivo do que remediar.

A tensão gerada aqui, entre o conceito de serviços de

saúde e o conceito de indústria da doença, é evidente. O

sistema privado não tem interesse no sistema de prevenção

por duas razões: primeiro, porque são ações universalizadas

(como vacinas, água e saneamento etc.) que envolvem mui-

ta gente sem dinheiro para pagar e grandes esforços organi-

zacionais que resultam da capilaridade das ações universais.

A vacina tem de chegar a cada criança do país. Segundo,

porque, ao se reduzirem os problemas de saúde, reduz-se o

número de clientes. E o setor privado vive de clientes. Está

interessado em poucos que possam pagar bem. Necessida-

de e capacidade de pagamento são duas coisas diferentes.

A concentração dos recursos da saúde privada no sistema

curativo hospitalar e nas doenças degenerativas dos idosos é

um resultado direto dessa deformação.

No caso brasileiro, naturalmente, a característica bá-

sica é a desigualdade, o que faz com que se tenham gerado

dois universos de serviços de saúde: o público para a massa

de pobres e o privado para os ricos e a classe média. Na

medida em que o setor privado da saúde, com fins muito

lucrativos, tenta expandir o universo de cobertura paga, os

esforços de se generalizar o acesso a bons serviços públi-

cos e gratuitos de saúde passam a ser atacados. O fato de

a direita americana no congresso quase ter paralisado os

Estados Unidos na guerra contra a universalização desses

serviços dá uma ideia dos interesses envolvidos.

Na realidade, nos Estados Unidos a saúde representa

praticamente 20% do PIB, enquanto a indústria emprega

menos de 10% da mão de obra do país. O fato de esse se-

tor da saúde se agigantar, tornando-se o setor econômico

mais importante, ajuda a entender as articulações perver-

sas que são gerados. Os Estados Unidos gastam cerca de

US$ 7.500,00 por pessoa por ano em serviços de saúde,

e o Canadá quase exatamente a metade. No entanto, o

nível de saúde no Canadá, onde os serviços são públicos,

universais e gratuitos, é incomparavelmente superior. O

sistema americano, baseado no privado e no curativo, faz o

cidadão procurar os serviços quando o mal já aconteceu. E

os procura raramente, pois são caros. O resultado é muito

dinheiro e pouca saúde. Nas pesquisas de produtividade

dos gastos em saúde em países desenvolvidos, os Estados

Unidos aparecem em último lugar. 14

A base do raciocínio – usando de preferência o cérebro

e não o fígado, de onde os argumentos já vêm verdes e amar-

gos – é que saúde não é um produto como um chinelo, que

se produz em massa na China ou na Indonésia e se despacha

por contêiner. Uma sociedade saudável trabalha um con-

junto de frentes que incluem desde cuidados da primeira

infância até o ambiente escolar, as condições de habitação e

urbanismo, a qualidade de vida no trabalho, o controle de

agrotóxicos e semelhantes. A vida saudável resulta de um

conjunto complexo de fatores, todos densamente ligados

com a qualidade de vida em geral. Não é um produto pa-

dronizado que sai de uma máquina e resolve. Envolve, na

realidade, uma forma de organização social.

Quando pensamos em saúde, tendemos a pensar na

farmácia e no hospital, porque nos acostumamos a pensar

nela apenas quando a perdemos. E não há dúvida de que há

uma indústria da doença pronta para reforçar essa visão em

cada publicidade de um plano privado de saúde, de remé-

dios milagrosos e semelhantes. Mas, no básico, é importante

pensar que as políticas de saúde se agigantaram muito re-

centemente e constatar as diferentes formas de organização:

desde o out-of-pocket (saúde curativa paga no serviço pres-

tado) dos Estados Unidos até a medicina pública social e

universal da Inglaterra, do Canadá, dos países nórdicos e de

Cuba. No Brasil temos a convivência caótica do SUS com

os gigantes financeiros que controlam os seguros e planos de

saúde, passando por organizações sociais e sistemas coope-

rativos diversos.

É importante a visão de conjunto: temos um grande

acúmulo de experiência de gestão empresarial nos setores

produtivos tradicionais, como de automóveis, e também

na área de administração pública tradicional. Mas, no

desafio de assegurar um bom nível de saúde, que resulta

da convergência de numerosos atores, inclusive dos mo-

vimentos sociais, ainda estamos à procura de paradigmas

adequados de gestão. Os rumos mais significativos, o que

funciona efetivamente em diversos países que atingiram

excelência, apontam para sistemas dominantemente pre-

ventivos, com acesso universal e gratuito, baseados em

gestão pública mas fortemente descentralizados, com forte

capacidade de participação e controle por organizações da

sociedade civil.

Há uma dimensão ética aqui: a de que nenhum ser hu-

mano deve padecer e sofrer quando há formas simples de

resolver o problema. A indiferença é vergonhosa e injustifi-

cável. Em termos sociais e políticos, não há dúvida de que

uma das melhores formas de democratizar uma sociedade é

assegurar que todos tenham acesso à saúde, tanto preventi-

va como curativa, independentemente do nível de renda. É

uma forma essencial de redistribuição indireta de renda e de

se generalizar o bem-estar.

A falta de acesso a serviços básicos de qualidade, por

outro lado, gera um sistema quase de chantagem: as famílias

se sangram para pagar um plano privado de saúde, gastando

muito mais do que o custo dos serviços prestados, simples-

mente por insegurança, pela possível tragédia de um aciden-

te ou doença grave. Acabamos contratando um plano, e pa-

gando caro para ter um certo sentimento de tranquilidade, e

não pelos serviços de saúde efetivamente prestados. Quanto

mais inseguros, mais pagamos. A indústria da doença preci-

sa ser fortemente controlada, e um dos melhores caminhos

é a sistemática elevação da qualidade e acessibilidade dos

serviços públicos universais de saúde. 15



14. Avaliação de 2007 mostrou os Estados Unidos em último lugar entre países desenvolvidos

em eficiência de saúde: gastaram US$ 7.290,00 por pessoa. Em primeiro lugar ficou a Holanda,

apesar de gastar apenas US$ 3.837,00 (New Scientist, 26 jun.2010). Saúde privada, essencialmente

curativa e elitista, constitui um desperdício. O que não impede que os EUA sejam um destino

lógico para uma intervenção cirúrgica de ponta paga a preço de ouro.


Dowbor. O pão nosso de cada dia.

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