Seleção O conceito de Saúde Mental (Psiquiatria e Saúde Mental USP;1999)
"Dessa forma, o patológico
corresponde diretamente ao conceito de
doença, implicando o contrário vital do
sadio. As possibilidades do estado de saúde
são superiores às capacidades normais:
a saúde constitui uma certa capacidade de
ultrapassar as crises determinadas pelas
forças da patologia para instalar uma nova
ordem fisiológica.
A abordagem foucaultiana representa
uma vertente historiográfica da teoria
canguilhemiana da tensão normal-patológico,
indicando como, a partir da segunda
metade do século XIX, surgiram novos
padrões de normalidade no âmbito da medicina
geral e mental, bem como no âmbito
das nascentes ciências humanas – sociologia
e psicologia. Nesse contexto, buscavase
intervir sobre o indivíduo humano, seu
corpo, sua mente, e não apenas sobre o
ambiente físico, para com isso normalizálo
para a produção. O homem, tal como a
máquina, poderia ser programado, posto a
funcionar e consertado. Listar as possibilidades
normais de rendimento do homem,
suas capacidades, bem como os parâmetros
do funcionamento social normal passou a
ser tarefa da medicina mental, da psicologia
e das ciências sociais aplicadas. Nessa
perspectiva, os conceitos implícitos do jovem
Foucault (1954 [1976]; 1963) denunciam
a sua adesão a uma definição de saúde
como capacidade adaptativa (ou submissa)
aos poderes disciplinares de corpos e atos."
"Relembra Foucault (1963) que não por
acaso a palavra normal, derivada do nomos
grego e do norma latino (cujo significado é
lei), surgiu no século XVIII, significando
aquilo que não se inclina nem para a direita,
nem para a esquerda, e que se conserva
num justo meio-termo. Embora a temática
da normalidade fosse tratada desde a Grécia
antiga, esse termo só ressurgiu quando,
com o movimento da Revolução Francesa,
a burguesia funda uma nova ordem com a
pretensão de funcionar como norma para
toda a sociedade: a ordem econômica capitalista.
Com isso, a medicina adotou uma
nova postura normativa. Com a concomitante
industrialização e complexificação do
trabalho, tornou-se necessário o estabelecimento
de novas normas e padrões de
comportamento. O rendimento e a saúde
individual passaram a ser indispensáveis
ao bom funcionamento da nova engrenagem
social."
"Nessa altura do seu argumento,
Canguilhem refere-se à Higiene, que se inicia
como uma disciplina médica tradicional,
feita de normas e possuindo uma ambição
sociopolítico-médica de regulamentar
a vida dos indivíduos. A partir dela, a
saúde torna-se um objeto de cálculo e começa
a perder a sua dimensão de verdade
particular, privada, passando a receber uma
significação empírica como conjunto e efeito
de processos objetivos."
"Para Samaja (1997), o paradigma dos
Sistemas Complexos Adaptativos poderá
servir como base epistemológica para a
superação da antinomia biológico-social,
dadas as demandas conceituais já estabelecidas
pelos desenvolvimentos e usos práticos
da noção “saúde” nos discursos leigos
e técnicos da modernidade."
"Assumindo a saúde como um conceito
científico, é importante ressaltar uma
outra proposição de Canguilhem (1968)
segundo a qual os objetos conceituais não
possuem fronteiras epistemológicas e apresentam
uma relativa independência do sistema
teórico a que pertencem.
Em conseqüência,
o conceito não necessariamente
se limita ao interior de uma única ciência,
mas em geral segue distintas filiações conceituais
em ciências diferentes. Além disso,
pode nesse percurso ampliar suas relações
com saberes não-científicos e com
práticas sociais, políticas e ideológicas."
Nessa perspectiva,
a investigação epistemológica se constituiria
como uma certa “cartografia” dos sistemas
de representação de um dado objeto.
"Entretanto, esse modelo “comunitário”
da medicina mental traz pelo menos
dois perigos potenciais: a) uma tendência à
psiquiatrização da vida social – deslocando
o papel das redes de suporte social e os
dispositivos simbólicos de promoção da
“saúde cultural” (processo desde há muito
já analisado por diversos autores, conforme
Pinheiro e Almeida Filho, 1981); e b)
um incremento tecnológico e uma expansão
de cobertura – resultando em um comprometimento
cada vez mais profundo de
escassos recursos públicos, na medida em
que, conforme alertado pelos economistas
da saúde (Williams, 1985)"
"e daí a um
conceito ampliado de saúde mental como
expressão de saúde social. Este último pode
ser tomado em duas vertentes: por um lado,
como situação de “salubridade psicossocial”,
correspondendo ao contradomínio
do conceito epidemiológico de “morbidade
psiquiátrica”. Por outro lado, como complexo
integral e articulado de forças positivas
no sentido da constante superação dos
limites da normalidade."
"Objeto-modelo construído por meio de
práticas trans-setoriais, a saúde mental significa
um socius saudável; ela implica
emprego, satisfação no trabalho, vida cotidiana
significativa, participação social, lazer,
qualidade das redes sociais, eqüidade,
enfim, qualidade de vida. Por mais que se
decrete o fim das utopias e a crise dos valores,
não se pode escapar: o conceito de
saúde mental vincula-se a uma pauta
emancipatória do sujeito, de natureza
inapelavelmente política."
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