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terça-feira, 31 de março de 2015

Política e medicina

Política e medicina
“O cruzamento entre política e medicina pode ser analisado a partir de duas perspectivas: seja como incorporação da medicina na política, isto é, como absorção das funções da medicina pelo Estado – e então poderíamos falar de uma estatização da medicina e seja como um processo de formação da autoridade medical, mediante o qual o médico adquire, nas relações de poder que atravessam o tecido social, uma posição de destaque, uma autoridade política.
Em uma segunda forma de mobilização da palavra, mais típica de Foucault, o político se refere a toda relação de força presente entre grupos sociais e entre indivíduos em sociedade. Desse modo, em resposta a um interlocutor que lhe questiona a respeito de sua acepção de ‘político’, Foucault responde “que o conjunto das relações de força em uma da sociedade constitui o domínio da política, e que uma política é uma estratégia mais ou menos global que procura coordenar e finalizar essas relações de força. [...] Dizer que ‘tudo é político’ quer dizer essa onipresença das relações de força; mas é dar-se a tarefa ainda apenas esboçada de desembaraçar esse nó”. Estamos aqui diante de um uso particular da palavra ‘política’, em que ‘política’ significa toda organização estratégica, mais ou menos refletida e orientada para objetivos, de relações de força.
Para Foucault, o poder não se localiza em um único ponto, nem se polariza segundo uma única forma de tensão social. Sobretudo, o poder é absolutamente relacional e presente em toda a espessura do corpo social; “o poder é uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade”, não sendo, portanto, propriedade, essência ou privilégio de ninguém, de nenhuma classe.
Problematizar a medicina quer dizer analisá-la a partir das relações de poder. As relações estabelecidas entre seres humanos saudáveis, pacientes, médicos e instituições dos mais diversos tipos, que constituem o poder medical, formam uma trama que se intercala, que atravessa, que muitas vezes coincide com a trama de poderes que cobrem a sociedade. No poder medical, aparecem entrelaçadas as duas mobilizações da ‘política’. O poder medical possui dois vieses. Significa tanto o processo de sedimentação social da autoridade medical, como a estatização da medicina.
Preocupado com essas questões, Foucault ressalta três aspectos da crise atual: o risco medical, a sociedade da norma e o consumo da saúde.
O que está em jogo no risco medical, para Foucault, não é a eventual ignorância dos médicos, mas exatamente aquilo que deriva, ou que pode derivar, do saber medical. Foucault se interessa por aquilo que ele chama de “iatrogenia positiva” (iatrogénie positive), isto é, as doenças decorrentes de práticas medicais regulares, não de erros ou negligências dos médicos. Doenças e males cuja causa é justamente a eficácia da medicina científica, não a sua ineficácia. As atividades humanas, principalmente com o desenvolvimento do capitalismo industrial, têm conseqüências diretas e decisivas sobre a vida e a evolução das espécies vivas do planeta. O que interessa Foucault, nesse momento da conferência do Rio, quando isola o objeto para uma possível bio-história, não concerne os efeitos da atividade humana sobre o todo da vida biológica, mas se limita ao risco medical, resultante dos efeitos do progresso científico da medicina sobre a própria espécie humana.
A bio-história, para Foucault, seria o estudo dos efeitos da ação medical sobre a vida da espécie humana. Esses efeitos são tanto mais relevantes quanto mais abrangente se torna a ação medical.
É justamente a enorme abrangência da ação medical, a medicalização sem limites de nossas sociedades normalizadas, que constitui o segundo aspecto da crise atual da medicina. Podemos falar em um domínio próprio da ação medical? Em princípio, a medicina se limitaria às doenças e às solicitações do paciente doente, às suas dores, a seu mal-estar. A doença e a demanda do paciente deveriam constituir o domínio da medicina. Para Foucault, porém, “não há nenhuma dúvida, a medicina foi muito além”. Para além da solicitação do doente, é a medicina que se impõe a ele, em “ato de autoridade”. A medicina judiciária, os exames medicais no campo do trabalho, os check-ups aconselháveis ou obrigatórios são alguns exemplos do poder medical, cujas funções normalizadoras debordam a demanda do paciente. Para além da doença, a própria saúde se constitui como campo para a intervenção medical.
Definir as normas da saúde e dos comportamentos saudáveis e obrigar os indivíduos a agir em conivência com essas normas tornou-se, para além da simples função terapêutica, uma das grandes atribuições do poder medical. A sociedade passa a se regular, a se ordenar, a se condicionar, de acordo com normas físicas e mentais que são determinadas por processos medicais. Mais do que uma sociedade regida pela lei, para Foucault, a nossa sociedade é regida pela norma e pelos mecanismos, em grande parte medicais, que em seu seio distinguem o normal do anormal. A medicina, segundo Foucault, “começa a não ter domínio que lhe seja exterior”. A medicina atual, por assim dizer, está em todo lugar, tem sempre uma palavra a dizer. A medicina está presente não apenas no hospital, mas em todos os outros aparelhos disciplinares que compõem nossas sociedades e que, por princípio, não são, ou não eram, diretamente do domínio medical: a prisão, a escola, a empresa. Nossas sociedades são sociedades da norma, nas quais critérios não jurídicos, associados principalmente a performances de base fisiológica, estabelecem a repartição entre o normal e o anormal. No domínio medical, que praticamente coincide com todo o domínio do social, tais normas prescrevem comportamentos individuais e os métodos terapêuticos para que os indivíduos se mantenham dentro das normas. Nesse sistema, o poder medical é responsável, por um lado, por estipular as normas, e por outro, por aplicá-las aos indivíduos.
A terceira característica marcante da medicina moderna está relacionada ao fato de que a saúde tornou-se um objeto de consumo. No século XX, organiza-se um enorme mercado da saúde – medicamentos, terapias, centros de recondicionamento físico e mental tornaram-se mercadorias, como quaisquer outras. Mercado para o qual a medicina é o agente e o intermediário mais importante. Passa pelas mãos dos médicos, ou é dirigida por médicos, a aplicação dos volumosos recursos que os orçamentos dos Estado e das famílias dedicam à saúde.
Em um outro lugar, Foucault afirma: “o mundo está evoluindo na direção de um modelo hospitalar, e o governo adquire uma função terapêutica”. Se, por um lado, a função do governo é a de capacitar os indivíduos, pelo aprimoramento disciplinar das sociedades, e fazer deles os instrumentos do desenvolvimento econômico, por outro, o governo tem a função de corrigir os efeitos negativos causados, por esse mesmo desenvolvimento, sobre a vida e a saúde dos indivíduos."
Leon Farhi Neto: "BIOPOLÍTICA EM FOUCAULT". (Dissertação submetida ao corpo docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Mestrado em Ética e Filosofia Política Orientador: Prof. Dr. Selvino José Assmann). Florianópolis, 2007.

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