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terça-feira, 31 de março de 2015

Psicologia, Psiquiatria e ideologia

Psicologia, Psiquiatria e ideologia
Como regra, essas teorias fazem parte do discurso competente, na acepção de Chauí (2001b), ou seja, de um conhecimento que, por ser produzido em determinados lugares sociais e pelos únicos autorizados a falar sobre os fenômenos do mundo físico, social e psicológico, tornam-se hegemônicos e silenciam outras falas.
Para determinar os fatores que levam ao aparecimento da doença mental, o autor compara características da população doente e da população sadia:
Se a pessoa nasceu num grupo favorecido em uma sociedade estável, seus papéis sociais e as mudanças esperadas destes ao longo de sua vida irão proporcionar-lhe oportunidades adequadas para um saudável desenvolvimento da personalidade. Se, por outro lado, a pessoa pertence a um grupo desfavorecido ou sociedade instável, poderá encontrar seu progresso bloqueado e ser privada de desafios e oportunidade. Isso terá um efeito negativo em sua saúde mental. (p. 47, grifos nossos)
É importante ressaltar que, neste modelo, os fundamentos dos conceitos de prevenção, de saúde x doença mental estão na harmonia do sujeito visto como unidade biopsicossocial e, portanto, na adaptação da população aos modelos de produtividade e obediência, garantindo sua condição saudável.
Vale ressaltar que o compromisso ideológico-político das idéias psiquiátricas, representadas pelo texto de Caplan e pela noção de prevenção, não se refere à promoção da saúde mental de todos os indivíduos, mas somente daqueles que já possuírem condições favoráveis para que isto aconteça.
Em resumo, alguns indivíduos podem possuir características responsáveis por seu adoecimento. Além disso, saúde mental é adaptação dos indivíduos. Caberia ao psiquiatra a manipulação de algumas circunstâncias de vida da população para efetivar tal adaptação.
Certos indivíduos podem ter uma posição tão afortunada ou antecedentes tão privilegiados que, mesmo sem o nosso programa, não cairiam doentes. Outros indivíduos podem ser tão desfavorecidos por sua situação idiossincrática que nenhuma melhoria do quadro comunitário geral seria suficiente para impedir que eles adoeçam. (p. 44, grifos nossos)
Quanto mais rica for sua herança cultural, mais complexos serão os problemas que a pessoa terá provavelmente sido ensinada a dominar. Quanto mais estável for sua sociedade, mais provável é que esta a tenha dotado de instrumentos perceptivos, recursos para resolver problemas e todo um conjunto de valores que a guiem sempre que tenha de enfrentar as dificuldades da vida. Por outro lado, sociedades em transição &– e isto aplica-se a muitas em nossa era atual de rápida transformação tecnológica &– têm escassas probabilidades de desenvolver métodos bem-ensaiados para lidar com novos problemas com que um indivíduo se defronte, e este ver-se-á obrigado a confiar mais em seus próprios recursos. (p. 47)
As idéias psiquiátricas, de acordo com o autor, foram produzidas ao longo da história com compromissos político-ideológicos distantes da problemática da saúde mental. Isto pôde ser observado nos três momentos pelos quais passou a Psiquiatria no Brasil: o do discurso organicista, o preventivista e o psicoterápico.
No primeiro momento, situado na década de 30, buscou-se encontrar os elementos orgânicos constitutivos dos indivíduos como explicação para os transtornos mentais. Foi a época das noções de higiene psíquica e racial, na qual as práticas eugênicas triunfaram. Acreditava-se que existia uma natureza humana e a decifração das leis de hereditariedade permitiriam a regeneração dos doentes mentais.
A Psiquiatria preventivista, da década de 60 e, mais fortemente, da década de 70, trouxe como proposta a possibilidade de retirar os atendimentos dos consultórios privados e dos asilos para levá-los à comunidade. Seu objeto de estudo era a saúde mental e não a doença, seu objetivo era a prevenção da doença mental, o sujeito de tratamento passou a ser a coletividade e não mais os indivíduos, os profissionais não eram somente os psiquiatras, mas as equipes comunitárias, e o espaço de tratamento passou a ser a comunidade. Um novo conceito de personalidade também foi adotado; o indivíduo tornou-se a unidade biopsicossocial.
Já o discurso psicoterápico, está presente na atualidade, propondo o tratamento individualizado, de volta aos consultórios, agregando os conhecimentos da Psicologia, na multiplicidade de seus campos teórico-práticos.
Iniciemos pela prevenção. De acordo com Costa (1989b), a Psiquiatria preventiva deve ser compreendida também como um discurso ideológico porque veio atender às necessidades de prestígio para uma classe &– os psiquiatras &– que perdiam espaço para a Sociologia e para a Psicologia, entendendo a doença mental como uma doença do psiquismo e não do soma. Além disso, a prática destas ciências não se fundamentava exclusivamente nos métodos das ciências naturais, como a Psiquiatria, que foi perdendo o lugar de sua especificidade.
O modelo de atuação da Psiquiatria preventiva foi, então, adaptado, principalmente, da Sociologia. O próprio conceito de unidade biopsicossocial teve esta origem. Os indivíduos passaram a ser analisados a partir desta síntese que deveria se constituir de forma harmoniosa, determinando que a saúde estaria relacionada à adaptação das dimensões biológica, psicológica e social.
A idéia de prevenção da Psiquiatria preventiva é de inspiração nitidamente sociológica. Foi porque a Psiquiatria tomou emprestado à sociologia o critério adaptação-desadaptação, como meio de avaliação do comportamento normal e patológico, que a idéia de prevenção tornou-se possível. Todavia, para que o conceito sociológico se tornasse compatível com o conceito psicológico, também contido na noção de unidade biopsicossocial, este último teve que sofrer reduções e mutilações até se conformar completamente ao primeiro. (Costa, 1989b, p. 30, itálico original)
O texto de Caplan, assim, insere-se no auge do discurso preventivista, analisado criticamente por Costa (1989b). Mas, por que foi assinalado que é também representativo do discurso organicista, teoricamente, abandonado há muito tempo? Talvez, uma única citação do autor justifique esta indagação:
Vale assinalar que aquilo a que os epidemiologistas chamam “fatores do hospedeiro”, notadamente as qualidades dos membros de uma população que determinam sua vulnerabilidade ou resistência às tensões ambientais, são constituídos por dois grupos de atributos. O primeiro, que inclui atributos tais como idade, sexo, classe sócio-econômica e grupo étnico, não pode ser manipulado. O segundo grupo, incluindo atributos tais como a força do ego, a habilidade para a solução de problemas e a capacidade para tolerar a angústia e a frustração, é habitualmente fixo, mas pode ter sido modificado no passado, mediante uma alteração da experiência do indivíduo ou de seus pais. Fatores cromossômicos situam-se na fronteira entre esses dois grupos. Quando soubermos mais a seu respeito, talvez seja possível intervir eugenicamente para modificar padrões genéticos numa população e, assim, aperfeiçoar a dotação constitucional fundamental de seus membros. (pp. 41-42, grifos nossos)
Estes serão excluídos de qualquer possibilidade de saúde porque o conhecimento científico produzido pela Medicina e, especialmente pela Psiquiatria, coloca-os como doentes em potencial e, portanto, sem qualquer possibilidade de ser outra coisa, se não aquela determinada pelo médico. O autor vai além do organicismo, uma vez que a eugenia é uma proposta política, fascista, que tem no organicismo uma mera justificativa pseudocientífica.
Segundo Chauí (2001a), o discurso ideológico é uma representação imaginária do real, que ocorre por meio dos princípios de abstração e inversão, no qual as contradições não são explicitadas. Quais as lacunas existentes no texto em questão?
A princípio, observa-se que ele transmite a idéia de que os indivíduos são os únicos responsáveis por sua condição de saúde ou doença e nascem inseridos em uma determinada classe social, porque naturalmente deve ser assim, como afirma o autor, ao falar sobre as condições de vulnerabilidade às quais estão submetidos alguns indivíduos.
Assim, por uma rápida, imediata e simples observação, percebe-se que a população mais pobre, que possui menos recursos físicos, intelectuais e culturais (de acordo com padrões estabelecidos pela classe que domina) é a mais acometida por doenças, sejam mentais ou não. Logo, o raciocínio é imediato: estas pessoas têm mais chances de tornarem-se doentes; são doentes em potencial.
Ocorre uma inversão: o efeito é tomado como causa, o determinante como determinado, o resultado como o início do processo. Assim, se os indivíduos possuem características favoráveis ou desfavoráveis, é esta condição que determinará sua possibilidade de serem saudáveis. Mas, como estas “características” foram produzidas? São elas que determinam a doença ou foram determinadas pela forma de organização da sociedade? Por que sempre há populações doentes, desviantes, anormais? A resposta seria simplesmente que é natural ser assim? Ou, ao contrário, que é importante para o funcionamento da lógica do capital que alguns sejam os responsáveis por sua doença e nunca se curem?
O conhecimento produzido pela Medicina e pela Psicologia sobre a doença mental é tomado como o determinante do processo histórico, ao invés de ser compreendido como determinado por ele. Isto significa que o conhecimento aparece sem vínculo com o contexto histórico e político no qual foi produzido.
Poderíamos também refletir sobre outras questões dissimuladas no discurso sobre o doente. A miséria de cada indivíduo aparece como miséria de condição e não de posição, como se as pessoas fossem doentes por sua condição desfavorável e, portanto, pobre. Oculta-se que a miséria é de posição na hierarquia da sociedade de classes.
O que se observa é o dado aparente e imediato de que as pessoas que possuem a capacidade de resolver seus conflitos vivem em condições/sociedades favoráveis. Logo, aquelas que vivem em ambientes desfavoráveis não resolvem conflitos.
Todos os elementos constitutivos deste discurso ideológico ocultam as contradições presentes na sociedade de classes que produz e reproduz conflitos políticos e, portanto, de poder. As contradições são vistas como naturais e não como sociais. Estas podem ser observadas não só naquilo que denominamos de incoerências da própria articulação do discurso, mas também, e principalmente, no conflito inerente entre aquele que ocupa o lugar do saber e, assim, produz e organiza o conhecimento sobre aquele indivíduo analisado e julgado à luz da ciência.
A crise é compreendida, dessa forma, como fator negativo, que desagrega, desarmoniza, mesmo considerando que possa trazer o crescimento da personalidade dos indivíduos. Todavia, deve-se questionar em qual sentido o conceito de crise pode ser definido como ideológico.
Segundo Chauí (2001a), geralmente, nos discursos oficiais dominantes, crise é entendida como descontinuidade, ruptura, desarmonia entre o que é aceitável para uma sociedade e a forma como os indivíduos pensam e agem. Rompe-se o funcionamento adequado das coisas e das idéias. Há uma relação entre o termo crise e desvio, e estas noções determinam como o mundo dever ser. Se houve uma crise, deixou-se de agir e pensar da forma comum, usual.
Caplan argumenta, em concordância com os discursos oficiais, que a crise psicológica é uma quebra do padrão de funcionamento dos indivíduos e pode ser benéfica quando as pessoas possuem condições favoráveis para lidarem com o desequilíbrio, ou causar sérios prejuízos, e até distúrbios mentais, quando o sujeito não possuir características que o levem à resolução do conflito. Nos dois casos, o desejável é que a crise seja resolvida, tenha uma solução.
Para Chauí (2001a), conceber a crise nestes termos faz parte de um determinado modo de pensamento, no qual a idéia de contradição não pode estar presente. Quando os conflitos ou as crises aparecem, são as contradições da sociedade que se manifestam. A contradição é expressa tanto na luta de classes, sobre a qual a sociedade capitalista se constituiu, como, neste caso específico, é expressa pela distância entre a possibilidade de saúde de uns e de doença de outros e pela própria idéia oculta de que alguns devem ficar doentes para que o funcionamento do todo se mantenha inalterado, dentro do padrão estabelecido por quem define critérios de normalidade.
A crise é imaginada, então, como um movimento da irracionalidade que invade a racionalidade, gera desordem e caos e precisa ser conjurada para que a racionalidade anterior, ou outra nova, seja restaurada. A noção de crise permite representar a sociedade como invadida por contradições e, simultaneamente, tomá-las como um acidente, um desarranjo, pois a harmonia é pressuposta como sendo de direito, reduzindo a crise a uma desordem fatual, provocada por enganos, voluntários ou involuntários, dos agentes sociais, ou por mau funcionamento de certas partes do todo (...) Tal representação permite, assim, imaginar o acontecimento histórico como um desvio. (Chauí, 2001a, p. 37)
O perigo da explicitação das contradições, ou seja, se o conjunto dos indivíduos, se a coletividade “doente”, compreender que não é a portadora dos desvios, que não possui condições idiossincráticas prejudicadas ou desfavoráveis. A idéia de crise é tão combatida porque se ela for a manifestação das contradições da sociedade de classes, pode, de fato, haver o entendimento dos fatores que produzem as condições que oprimem muitos e favorecem poucos.
Não é por acaso que a noção de crise é privilegiada pelos discursos autoritários, reacionários, contra-revolucionários, pois neles essa noção funciona em dois registros diferentes, mas complementares. Por um lado, a noção de crise serve como explicação, isto é, como um saber para justificar teoricamente a emergência de um suposto irracional no coração da racionalidade: a “crise” serve para ocultar a crise verdadeira. Por outro lado, essa noção tem eficácia prática, pois é capaz de mobilizar os agentes sociais, acenando-lhes com o risco da perda da identidade coletiva, suscitando neles o medo de desagregação social e, portanto, o medo da revolução, oferecendo-lhes a oportunidade para restaurar uma ordem sem crise, graças à ação de alguns salvadores. (Chauí, 2001a, p. 37, itálico original)
Tratar a crise como algo negativo, desagregador, que acontece no e por causa do indivíduo é totalmente permitido em nossa sociedade para que o indivíduo seja contido. A crise é ruim para cada pessoa e é ela a responsável por sua condição crítica. Logo, o sujeito deve ser tratado e deve acreditar que ele é o seu pior agente patológico. O médico é sua possibilidade de cura. O doente deve ser submisso ao médico, mesmo porque, o “doutor” tem conhecimentos que ele não possui.
É o conhecimento científico a serviço da legitimação da impossibilidade de humanização dos indivíduos. É a justificativa dos motivos pelos quais a maioria das pessoas deve ocupar uma posição desprivilegiada na sociedade de classes. É preciso compreender, então, como a ciência se constitui no discurso capaz de determinar o lugar dos indivíduos na sociedade capitalista.
Todas as formas de relacionamento do homem com o contexto onde está inserido ocorrem por meio de vários discursos que orientam a maneira como ele deve agir pelo fato de ser um discurso competente (Chauí, 2001b).
Discurso competente significa que um conhecimento específico é legítimo e autorizado para falar sobre as coisas e sobre as pessoas. Desta maneira, não é o discurso do doente mental, mas sobre o doente mental, ou seja, não é o homem quem fala de si, mas alguém que fala sobre ele e, neste caso, o psiquiatra é autorizado a falar sobre os doentes mentais.
Nele, os interlocutores já foram identificados pela separação daqueles que são competentes para falar sobre e daqueles que devem ouvir o que os competentes têm a dizer a respeito de si. O que é dito deve servir como a explicação mais precisa sobre as condutas humanas, com a finalidade de prevenir que algumas pessoas escolhidas sofram de distúrbios mentais. Também deve determinar quem serão aquelas que inevitavelmente adoecerão.
A que serve, então o discurso competente? Para Chauí (2001b), ele é o responsável pelo projeto de dominação e de intimidação social e política que é organizado por uma determinada classe social para conter outra.
É necessário construir outros discursos competentes essencialmente críticos e que assumam um novo posicionamento político e, exatamente por isso, sejam éticos. A resistência se constrói e se consolida também pela reflexão dos conteúdos produzidos pela Psicologia e por outros campos do conhecimento sobre saúde mental, desvelando o caráter opressor e justificador das desigualdades neles contido.

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