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quarta-feira, 17 de junho de 2020

Biopolítica, biossegurança e cérebro (trechos)

A emergência do cérebro como dispositivo para a gestão dos riscos e da vida

Marcos Adegas de Azambuja e
Neuza Maria de Fátima Guareschi

http://www.mediafire.com/file/6nj0aqztj8d1v3m/Biopol%25C3%25ADtica_e_bioseguran%25C3%25A7a-_c%25C3%25A9rebro_como_dispositivo_de_gest%25C3%25A3o_da_vida_e_dos_riscos.pdf/file

No entanto, além de considerarmos o incremento da produção discursiva do cérebro no século XXI, gostaríamos de incluir outro aspecto na discussão, relativo à reflexão de que há um modo de condução do sujeito que está em jogo. Como veremos, são regimes de verdade que levariam à formação de um sujeito que conhece a si mesmo por procedimentos e técnicas de lógica cerebral, estabelecendo, assim, uma forma de governo de seu corpo, sua mente, sua moral. A pessoa trabalha seu cérebro por meio de uma complexa rede de conduta da vida. Com o cérebro no centro, todas as instâncias da vida têm um efeito neste órgão. A qualidade dele vai refletir na nossa qualidade de vida. O modo de viver é alterado em função de um cérebro com saúde (Azambuja, 2012).

Entender o cérebro como enunciado que atravessa e compõe diversos discursos – clínica, psicologia, medicina, psiquiatria, pedagogia, entre outros – nos parece insuficiente, justamente porque ele se torna um aliciador nas formas de existir. Não só um atrator, mas torna-se a própria manifestação da verdade sobre o sujeito contemporâneo. O dispositivo do cérebro exprime-se pelos novos modos que passamos a falar da vida e de nós mesmos, das novas formas de experiência e conduta, somente capazes de existir quando ocorre tal variação do cérebro como o ‘marcador’ das políticas de subjetivação. Passa-se a produzir uma nova existência, uma nova rede de significações e sentidos, de maneiras de se comportar, de pensar e governar o ser humano e o mundo. Surge um novo modo de organizar a sociedade, de tratar da economia, de constituir as leis, de discorrer sobre a vida e a morte, de cuidar da saúde e olhar para a doença.

O dispositivo do cérebro parece ser o grande agregador, o enlace e a força de mudança entre esses atravessamentos em nossa sociedade, tornando-se um alvo privilegiado tanto das biopolíticas, quanto das tecnologias específicas de modelagem subjetiva. Hoje o cérebro determina ‘o que você é’. Mesmo que se busquem no código genético as respostas sobre a vida, é no cérebro que encontramos a porta da revelação. O aclarar dos segredos de todas as determinações – nos corpos, nas almas e nas populações – estava muito mais ligado às técnicas analógicas do exame e da observação nas Ciências Humanas e Sociais. Porém, o cérebro encontra seus engates na era digital, na biomedicina, na biologia molecular, na aparelhagem teleinformática e toma conta da verdade e condução do sujeito. O que Foucault já indicava com a produção biopolítica parece se aguçar na atualidade: os avanços tecnocientíficos levam às possibilidades de se reprogramar e de se fabricar o novo. Trata-se, sem dúvida, de importantes redefinições em termos de normalidade, saúde e doença (Rose, 2007; Sibilia, 2002).

Na frenologia digital do cérebro dos dias de hoje, as imagens coloridas dos PET scan fazem as vezes do crânio e do tato no mapeamento dos processos mentais, respondendo quem somos nós. “essas imagens, na lógica cultural e visual, persuadem os observadores a igualar a pessoa com o cérebro, o cérebro com o scan e o scan com o diagnóstico” (Joseph Dumit, 2003, p. 36). Publicadas em diferentes fontes de acesso, essas imagens retratam tipos de cérebros, que se referem a tipos de pessoas, a diferentes categorias, principalmente levantando a questão de ser ou não normal. As relações genéticas e os exames do fluxo sanguíneos pelos PET scan reforçam os aspectos biológicos da doença mental, constituindo uma inversão do sujeito com a doença. Não é o sujeito que está doente, mas sim seu cérebro. Na relação que o paciente estabelece com a anormalidade neuroquímica visualizada na tela do computador, com os medicamentos que terá de tomar e a questão orgânica que enfrentará, o indivíduo alivia-se da responsabilidade de ter adquirido a doença por contingências de sua história de vida. Como um self farmacológico, o indivíduo monitora a doença no cérebro que é vivida por ele, mas também contra ele.

Dos muitos momentos históricos do século oitocentista apresentados por Francisco Ortega (2009) em seu artigo “Elementos para uma história da neuroascese”, fica marcado o entrelaçamento do plano moral e médico, como também o reaparecimento dessas práticas em nosso cotidiano nos livros de autoajuda, com suas propostas de reprogramações de pensamentos negativos para positivos, e na ginástica para o cérebro, denominada neuróbica. Apesar das diferenças nos processos contemporâneos de subjetivação, nesse caso é possível acompanhar certa continuidade histórica. “Trata-se de processo duplo: por um lado, a ciência produz fatos que definem objetivamente quem somos; por outro, os indivíduos formam seus próprios modelos de self a partir dos fatos científicos” (Ortega, 2009, p. 634).

Localização, performance e individuação cerebral: não somente a função original de identificar nos relevos do crânio as faculdades mentais, mas basicamente a invenção de um diagrama de moralização do sujeito. O mapeamento de determinadas formas de agir e pensar encontra ressonância com atividades cerebrais, levando à intervenção não somente em casos diagnosticados, mas também no espaço da pessoa comum. O que se come, a medicação que se toma, a qualidade do sono e do trabalho, os exercícios físicos, o lazer, as relações familiares, esse espaço infindável da micropolítica pode ser esquadrinhado e justificado pelo desempenho cerebral. É um rebatimento direto entre a atividade na vida e a atividade da vida cerebral. No entanto, se um tempo atrás se pensava em uma generalização dos processos cerebrais, atualmente, com os avanços nos estudos em neuroplasticidade, produz-se um discurso de um cérebro único para cada indivíduo. Dentro de uma lógica neoliberal, cada um deve cuidar de seu próprio cérebro em sua individualidade 3 .

São processos de subjetivação diferenciados que se inscrevem no modo de relação entre os indivíduos. O sujeito neuroquímico lida com seus comportamentos e sentimentos na ligação direta com o mundo orgânico dentro de sua cabeça. Intervém na sua conduta pela ingestão química e pelo monitoramento cerebral. O cérebro ganha adjetivos: infantil, jovem, adulto, idoso, violento, esquizo, etc. O cérebro contém modos de existir.

A variável ‘humano’ parece sempre ser o grande problema científico. Desfazer o eu humano para fabricar um eu científico e, nesse caso, um eu biodigital torna-se um dos tipos de produções das ciências do cérebro.

O cérebro é uma agência, diríamos com Deleuze e Guattari (1976). Ele não é um dado natural, mas uma agência que remete o indivíduo à educação, como nos exercícios neurocognitivos; à justiça, como nos casos de avaliações criminais; à saúde, como no uso de psicofármacos ou tratamento de transtornos mentais; à família, que cuida dos vínculos afetivos fortalecendo, assim, as redes neurais da criança. O cérebro é uma agência que conecta o indivíduo a corpos robóticos e digitais, conecta a outras máquinas. É uma agência em rede que faz as ligações da história do indivíduo e da coletividade, da história singular e da espécie.

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