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segunda-feira, 27 de junho de 2022

Modelo médico e valores

Definição (1) 

O modelo médico é um modelo de saúde que sugere que a doença é detectada e identificada através de um processo sistemático de observação, descrição e diferenciação, de acordo com procedimentos padrão aceitos, como exames médicos, testes ou um conjunto de descrições dos sintomas. Há três grandes críticas ao modelo que: (1) sustenta a falsa noção de dualismo na saúde, segundo a qual os problemas biológicos e psicológicos são tratados separadamente; (2) concentra-se muito na deficiência e limitações, em vez de nas habilidades e pontos fortes do indivíduo; e (3) encoraja o paternalismo dentro da medicina ao invés do empoderamento do paciente. 

(1) https://link.springer.com/referenceworkentry/10.1007%2F978-0-387-79948-3_2131

Esse modelo conceituava doença como desvio do funcionamento biológico normal devido a determinantes biológicos, descritos na linguagem das ciências biomédicas básicas, incluindo anatomia, fisiologia e biologia molecular.

Da mesma forma, na medicina, o cuidado ao paciente é frequentemente descrito como reducionista quando é orientado ou organizado em torno de partes do corpo em vez de tratar o paciente como um todo em seu contexto de vida.

Os filósofos da medicina podem dar uma visão sobre esses problemas investigando nosso conceito de doença, a natureza da doença crônica e comorbidade/multimorbidade, e estratégias explicativas em medicina. 

Por exemplo, dada a importância de fatores psicológicos e sociais na prevenção e manejo de doenças crônicas, vale a pena explorar se as doenças crônicas e sua patogênese são melhor compreendidas – e até melhor definidas – nos níveis psicológico e social, além de aos níveis biológicos.

Infelizmente, as inferências e suas suposições são mal articuladas na medicina e raramente reconhecidas.

(2) https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5415394/

Um desses desafios levantados por Fuller diz respeito à questão metafísica (o ser ou essência)/conceitual, O que é uma doença?, que é um debate central e de longa data na filosofia da medicina. A biomedicina e o novo modelo médico equiparam doença com disfunção orgânica, mas muitas vezes adotam uma compreensão pouco sofisticada e limitada de função/disfunção que não leva em conta as características avaliativas e contextuais inerentes a esses conceitos. 

Ao destacar quantos dos problemas da medicina são de fato problemas filosóficos decorrentes de um modelo médico historicamente contingente, Fuller apresenta um forte argumento sobre por que a medicina precisa de filosofia.

(3) https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5495644/

Diferenças axiológicas (pressupostos filosóficos: Axiologia é o estudo filosófico de valores. Inclui perguntas sobre a natureza e classificação de valores e sobre que tipos de coisas têm valor. )

Argumenta-se que SAÚDE e DOENÇA se relacionam com valores de maneiras diferentes. De acordo com muitos profissionais de saúde, a saúde é carregada de valor, enquanto a doença é neutra. Também pode-se argumentar que SAÚDE e DOENÇA são ambas carregadas de valores, mas que se relacionam a diferentes conjuntos de valores. Por exemplo, afirma-se que a doença se relaciona com valores biológicos, enquanto a saúde inclui valores morais, pois é o objetivo final do florescimento humano. Também se argumentou que a doença diz respeito a normas políticas, sociais, educacionais, estéticas e morais, enquanto a saúde diz respeito apenas a normas estéticas (e não morais). 39

De qualquer forma, a assimetria avaliativa (de atribuição de valores) entre os conceitos de saúde e doença tem sido relacionada a uma assimetria geral na ética. Há um maior “peso moral” ligado às noções negativas do que às positivas, como bom e ruim, saúde e doença, ou vida e morte. Parece ser mais fácil concordar com os aspectos negativos da vida do que com os positivos. Assim, as diferenças entre saúde e doença podem estar relacionadas a distinções éticas mais gerais.

(4) https://europepmc.org/article/MED/16245004

Indivíduos que estão doentes, de acordo com nosso entendimento comum, possuem atributos biológicos vistos como anormais em algum sentido.

Começando, entretanto, com o trabalho de Parsons nos anos 50, se tornou aparente que o processo nomeado como doente é muito mais complexo. Doença é uma categoria atribuída socialmente cujo sentido é dado de sociedade a sociedade por interpretação e avaliação sociais de características biológicas anormais.

Todas as formas de desvio tem o comum o fato de que são necessariamente construções sociais. Freidson argumenta que "A avaliação humana, então social, do que é normal, apropriado ou desejável é uma noção tão inerente como nas noções de moralidade". Nós devemos não perder de vista que todos os nossos entendimentos da realidade são construções socioculturais.

Não importa o quanto incomum, não natural ou mesmo indutor de morte um conjunto de características pode afligi-lo, o indivíduo não está "doente", e dessa maneira exibindo comportamento interpretado no modelo médico, até que um julgamento social seja feito. Entre outras coisas, esse julgamento social deve incluir uma avaliação negativa. Isso é verdade para qualquer classe de comportamento desviante não importa qual a sua origem.

Mesmo a doença orgânica no sentido mais estrito e tradicional como interpretado no modelo médico necessariamente contém uma avaliação negativa concedida socialmente. 

Nós identificamos quatro características que parecem ser essencial ao modelo médico de interpretação do desvio social. Um desvio deve ser colocado dentro do modelo médico se é visto como (a) não-voluntário e (b) orgânico, se (c) a classe relevante, de especialistas tecnicamente competentes são os médicos e se (d) está abaixo de algum padrão mínimo socialmente definido de aceitabilidade.

Uma das características atraentes do modelo médico é a remoção da culpabilidade. Muito recentemente, no entanto, a virtude da culpabilidade está sendo redescoberta, especialmente por grupos radicais de pacientes mentais, menores, radicais políticos e defensores de estilos de vida alternativos. Eles reconhecem que colocar um indivíduo no modelo médico é remover a culpa, mas remover a culpa é remover responsabilidade e remover responsabilidade é desafiar a dignidade do indivíduo e a validade dos valores que ele afirma estar agindo de acordo. Remover culpabilidade através da suposição de que o ato é não-voluntário portanto tem seu preço. Aqueles que colocam grande importância nos valores da diversidade, autonomia e liberdade individual e dignidade irão de acordo ser muito cuidadosos em atribuir um comportamento desviante ao modelo médico.

Há razões boas, funcionais e filosóficas, eu acredito, para continuar a afirmar que muitas dessas formas de desvio (adicção narcótica, alcoolismo, ou outros comportamentos erráticos) são realmente baseados em um elemento de escolha voluntária. Provavelmente o homem na rua está realmente não convencido de que o alcoolista, o "criminoso", estão realmente agindo a partir de algum impulso ou força determinante independente de controle voluntário.

Os sintomas do adicto em narcóticos, mesmo derivativamente, incluem um impacto econômico e político e um estilo de vida (estereótipo) que provavelmente são as maiores preocupações do público. Parece no entanto, que alguns adictos, mantidos em heroína de manutenção, sobrevivem e se comportam bem normalmente. William Halsted, um dos fundadores da escola de medicina de John Hopkins e um médico praticante, continuou a funcionar efetivamente por quase meio século como um adicto.

A classificação do uso da maconha pode se encaixar nesse nível de debate. Se é o caso que a maconha é relativamente não prejudicial para a saúde física de si e para os outros, é ainda possível argumentar que é errado usá-la - nas bases de que levaria a um estilo de vida que é incompatível com o sistema de valores daqueles que estão desaprovando. Por outro lado, propositores da legitimidade da maconha simplesmente responderiam argumentando que seu uso é consistente com um conjunto melhor de valores. Para o uso de drogas ou qualquer outro comportamento desviante ser considerado um problema médico, o comportamento precisa em primeiro lugar ser considerado mau.

A relação entre organicidade e não-voluntariedade é importante. Há uma associação bem clara entre a crença na organicidade e a não-voluntariedade. Se um comportamento está "na química", nós nos tornamos convencidos de que não está no controle da vontade.

Uma terceira característica do modelo médico é que o especialista tecnicamente competente é o médico (frequentemente apoiado por um quadro de assistentes e associados). Uma das importantes implicações ideológicas do papel de doente como Parsons afirma é que além de remover o doente do âmbito de atores responsáveis o coloca sob o controle do profissional médico.

Isso me parece tanto perigoso quanto injustificado sob a luz do treinamento e habilidades de tais profissionais. É chocante se dar conta que, usando as diferentes dimensões de determinantes causais, o psiquiatra é o único profissional na sociedade ocidental que recebe seu treinamento primário em uma dessas dimensões e ainda assim pratica primariamente em outra.

O papel de doente é socialmente desaprovado, embora legítimo.

Por um lado, em sua forma abstrata, a saúde existe como um ideal, uma norma no sentido de ser o tipo mais alto ou ideal. Em outro sentido, a saúde pode ser apenas uma condição do corpo julgada socialmente pelo sistema social com significado e valor de ser melhor que um padrão mínimo (uma média estatística ou moda estatística).

De fato, num país onde a escolha livre é valorizada, todos os procedimentos médicos são opcionais para o paciente (exceto em casos de incapacidade). 

(5) https://www.jstor.org/stable/3527466

Pinel

Em outro momento, entretanto, a figura do louco aparece como a de alguém desajustado, descontrolado e perigoso, capaz de cometer atos violentos e “insanos”. Foi essa ideia que deu origem à psiquiatria como ciência, no século XIX.

Ao estudar a mania intermitente, Pinel concluiria que é possível ter acesso ao alienado mental e reintegrá-lo à sociedade. “A partir de Pinel, a loucura pode ser tratada porque é possível ‘dialogar’ com o insensato” (Freitas, 2004, p. 88). A alienação seria um “episódio” na vida do sujeito, ainda que cíclico, do qual é possível sair através do tratamento. Dessa forma, tanto para Pinel quanto para seu aluno Jean-Étienne Esquirol, o asilo era o melhor meio de garantir a segurança pessoal dos loucos e sua família, ao libertá-los de influências externas. Lugar de vigilância e de trabalho como principal meio de cura. É o trabalho que dignifica o homem e transforma o alienado em um ser útil e dócil. Esse modelo pineliano, sustentado no tripé isolar/conhecer/tratar, onde o hospital representa o principal espaço do saber-poder médico, até hoje tem seus críticos e defensores. 

(6) https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/16690

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