Menu

terça-feira, 2 de maio de 2023

Silenciamento na linguística e reforma psiquiátrica

“O silêncio não são as palavras silenciadas que se guardam no segredo sem dizer. O silêncio guarda um outro sentido que o movimento das palavras não atinge”

M. Le Bot, 1984.

A citação acima se refere à formas de expressão linguísticas em que os significados precisos, claros e explícitos estão ocultos. De forma prática, dessilenciamento é transformar uma frase simples que não diz muita coisa em outra elaborada e precisa que expressa muito mais a intenção da pessoa de forma explícita.

Ter o que dizer é questão de entrar em contato com os discursos e experiências e se posicionar.

O texto a seguir descreve essa e outras formas de silenciamento discursivo. O silenciamento e dessilenciamento de usuários da saúde mental é um tema necessário para o movimento de usuários, a reforma psiquiátrica/luta antimanicomial e a saúde e direitos dos usuários.

Dissertação: O movimento de (des)silenciamento em aula de língua portuguesa na rede estadual

Autora: MARIA FELICIANA DA SILVA AMARAL

Silenciamento: definição possível

Orlandi (1992) distingue o silenciamento em duas formas – constitutivo e local. O constitutivo é o que indica a ocorrência de uma seleção, pois, para dizer uma palavra, é preciso não-dizer outras, já que uma apaga necessariamente a outra. O sujeito, ao produzir determinado enunciado, silencia outros sentidos possíveis, que por algum motivo são indesejados naquele momento. Com isso, o silêncio constitutivo existe nas fronteiras das formações discursivas, silenciando dizeres – e consequentemente sentidos dos indivíduos – que ultrapassem o que pode e deve ser dito.[...] se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o não‐dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer (ORLANDI, 1992/2007, p. 73‐74).

Pensando nessas escolhas e em seus apagamentos, os “xs” ditos representam a existência de uma fala, e os “ys”, um aparente silenciamento, pois existe uma enunciação decorrente de uma forma condicionada à expectativa presente na sala de aula [na relação com os técnicos, gestores e políticos].

Já o silenciamento local refere-se à censura, ao proibido de se dizer em determinada conjuntura. Caracteriza-se pelo impedimento da inserção do sujeito em determinadas formações discursivas, o que afeta sua identidade. Sobre isso, Orlandi (1992/2007, p. 81) diz que:

é a interdição manifesta da circulação do sujeito, pela decisão de um poder de palavra fortemente regulado. Ele só pode ocupar o “lugar” que lhe é destinado, para produzir os sentidos que não lhe são proibidos. A censura afeta, de imediato, a identidade do sujeito.

Neste sentido, teço a reflexão sobre o silenciamento na sala de aula como relacionado a um ambiente, ainda, detentor do silêncio político. Aí existem vozes de autoridade que têm o poder de administrar a produção dos sentidos e, portanto, a distribuição do conhecimento, determinando quais os sentidos podem ser conhecidos e quais devem permanecer em silêncio. Freire (1970 apud ZATTI, 2007) aponta o fracasso da educação apresentando a narração e a dissertação como características marcantes da educação bancária. "Narração ou dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes – ouvintes – os educandos" (FREIRE, 1970/1987, p. 65). Nessa contradição entre educador e educando, a narração não promove a educação: "narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto" (FREIRE, 1970/1987, p. 71).Essa educação apresenta sequelas da realidade de forma estática, sem levar em conta a experiência do educando. "Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante" (FREIRE, 1970/1987, p. 66). Por isso, Freire a chama de concepção bancária da educação (p. 67), em que resta ao educando apenas ser depósito, arquivar informações. Vale lembrar, que o ser depositante continua sendo mal formado e, sucessivamente, deposita aquilo que lhe foi transmitido, num ciclo cujo fim ainda não visualiza. A voz de autoridade sempre representará a classe dominante ou aquela que detém o poder, pois é ela que controla os meios de comunicação de massa e as instituições políticas que determinam o que se veicula, o que se aprende na escola e as regras de organização da sociedade. A fim de preservar o que compreende como ‘melhor’ ou ‘mais conveniente’, veicula seu modo de vida e, consequentemente, seu discurso como ideal. Isto leva à monofonia, uma vez que as vozes que representam a ideologia dominante (as autorizadas a atribuir/distribuir sentidos) produzem uma voz social homogênea, controlam os sentidos tidos como aqueles que podem ser repetidos.

De acordo com Orlandi (1989, p. 43-44), “essas vozes se representam em lugares sociais de legitimação e fixação dos sentidos e desempenham um papel decisivo na institucionalização da linguagem: a produção do sentimento de unicidade do sentido”.

Nessa visão bancária de educação, os sujeitos possuem papéis rigidamente definidos: o educador é aquele que sabe e possui o conhecimento enquanto o educando é sempre aquele que não sabe. Como nos fala Freire (1970, p. 64 apud ZATTI, 2007), "os grandes arquivados são os homens", na medida em que essa educação sem práxis nega a criatividade, não há conhecimento, nem tampouco transformação; não há saber, os homens não podem tornar-se autônomos. Eles preferem se silenciar, pois o dessilenciamento poderia causar danos. Por isso, ainda segundo Freire, nessa visão distorcida de educação, os homens são seres de adaptação e ajustamento.Assim como na censura, há a proibição de determinados dizeres visando ao apagamento de certos sentidos. Ao impedir que determinados sentidos circulem, proíbe-se também que o sujeito ocupe um dado posicionamento que escape à ideologia dominante. Orlandi (1992/2007, p. 76) afirma que a censura “não é um fato circunscrito à consciência daquele que fala, mas um fato discursivo que se produz nos limites das diferentes formações discursivas que estão em relação”. 

Ampliando a discussão, aponto para a existência de uma outra forma de silenciamento: o autossilenciamento. Sabendo-se que o silêncio faz parte da língua é preciso reconhecer que ela inclui o que não é dito. Mota e Souza (2007, p. 7) pontuam três desafios que o falante enfrenta para dizer – e aproveito, para ampliar a discussão – de forma a romper o silenciamento: ter o que dizer, querer dizer e poder dizer.

Dessa forma, para dizer algo, é preciso possuir conteúdo, vontade e liberdade e, muitas vezes, o aluno não se sente dominando um ou mais desses componentes, se isentando do direito de falar. Uma vez que a língua se relaciona com o que eu quero do outro, e na sala de aula existe uma exigência imposta, chamada de resposta certa, o aluno pode calar-se por achar que não entende do assunto tratado, ou com medo de se expor. Silenciar-se relaciona-se diretamente com esconder o ponto fraco, não demonstrar sua incapacidade em dominar o que está sendo discutido. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário