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terça-feira, 2 de maio de 2023

3 temas p/ usuários saúde mental SUS

Silenciamento na linguística e reforma psiquiátrica

“O silêncio não são as palavras silenciadas que se guardam no segredo sem dizer. O silêncio guarda um outro sentido que o movimento das palavras não atinge”

M. Le Bot, 1984.

A citação acima se refere à formas de expressão linguísticas em que os significados precisos, claros e explícitos estão ocultos. De forma prática, dessilenciamento é transformar uma frase simples que não diz muita coisa em outra elaborada e precisa que expressa muito mais a intenção da pessoa de forma explícita.

Ter o que dizer é questão de entrar em contato com os discursos e experiências e se posicionar.

O texto a seguir descreve essa e outras formas de silenciamento discursivo. O silenciamento e dessilenciamento de usuários da saúde mental é um tema necessário para o movimento de usuários, a reforma psiquiátrica/luta antimanicomial e a saúde e direitos dos usuários.

Dissertação: O movimento de (des)silenciamento em aula de língua portuguesa na rede estadual

Autora: MARIA FELICIANA DA SILVA AMARAL

Silenciamento: definição possível

Orlandi (1992) distingue o silenciamento em duas formas – constitutivo e local. O constitutivo é o que indica a ocorrência de uma seleção, pois, para dizer uma palavra, é preciso não-dizer outras, já que uma apaga necessariamente a outra. O sujeito, ao produzir determinado enunciado, silencia outros sentidos possíveis, que por algum motivo são indesejados naquele momento. Com isso, o silêncio constitutivo existe nas fronteiras das formações discursivas, silenciando dizeres – e consequentemente sentidos dos indivíduos – que ultrapassem o que pode e deve ser dito.[...] se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se descartar do dito. É o não‐dito necessariamente excluído. Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma “outra” formação discursiva, uma “outra” região de sentidos. O silêncio trabalha assim os limites das formações discursivas, determinando consequentemente os limites do dizer (ORLANDI, 1992/2007, p. 73‐74).

Pensando nessas escolhas e em seus apagamentos, os “xs” ditos representam a existência de uma fala, e os “ys”, um aparente silenciamento, pois existe uma enunciação decorrente de uma forma condicionada à expectativa presente na sala de aula [na relação com os técnicos, gestores e políticos].

Já o silenciamento local refere-se à censura, ao proibido de se dizer em determinada conjuntura. Caracteriza-se pelo impedimento da inserção do sujeito em determinadas formações discursivas, o que afeta sua identidade. Sobre isso, Orlandi (1992/2007, p. 81) diz que:

é a interdição manifesta da circulação do sujeito, pela decisão de um poder de palavra fortemente regulado. Ele só pode ocupar o “lugar” que lhe é destinado, para produzir os sentidos que não lhe são proibidos. A censura afeta, de imediato, a identidade do sujeito.

Neste sentido, teço a reflexão sobre o silenciamento na sala de aula como relacionado a um ambiente, ainda, detentor do silêncio político. Aí existem vozes de autoridade que têm o poder de administrar a produção dos sentidos e, portanto, a distribuição do conhecimento, determinando quais os sentidos podem ser conhecidos e quais devem permanecer em silêncio. Freire (1970 apud ZATTI, 2007) aponta o fracasso da educação apresentando a narração e a dissertação como características marcantes da educação bancária. "Narração ou dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes – ouvintes – os educandos" (FREIRE, 1970/1987, p. 65). Nessa contradição entre educador e educando, a narração não promove a educação: "narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto" (FREIRE, 1970/1987, p. 71).Essa educação apresenta sequelas da realidade de forma estática, sem levar em conta a experiência do educando. "Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante" (FREIRE, 1970/1987, p. 66). Por isso, Freire a chama de concepção bancária da educação (p. 67), em que resta ao educando apenas ser depósito, arquivar informações. Vale lembrar, que o ser depositante continua sendo mal formado e, sucessivamente, deposita aquilo que lhe foi transmitido, num ciclo cujo fim ainda não visualiza. A voz de autoridade sempre representará a classe dominante ou aquela que detém o poder, pois é ela que controla os meios de comunicação de massa e as instituições políticas que determinam o que se veicula, o que se aprende na escola e as regras de organização da sociedade. A fim de preservar o que compreende como ‘melhor’ ou ‘mais conveniente’, veicula seu modo de vida e, consequentemente, seu discurso como ideal. Isto leva à monofonia, uma vez que as vozes que representam a ideologia dominante (as autorizadas a atribuir/distribuir sentidos) produzem uma voz social homogênea, controlam os sentidos tidos como aqueles que podem ser repetidos.

De acordo com Orlandi (1989, p. 43-44), “essas vozes se representam em lugares sociais de legitimação e fixação dos sentidos e desempenham um papel decisivo na institucionalização da linguagem: a produção do sentimento de unicidade do sentido”.

Nessa visão bancária de educação, os sujeitos possuem papéis rigidamente definidos: o educador é aquele que sabe e possui o conhecimento enquanto o educando é sempre aquele que não sabe. Como nos fala Freire (1970, p. 64 apud ZATTI, 2007), "os grandes arquivados são os homens", na medida em que essa educação sem práxis nega a criatividade, não há conhecimento, nem tampouco transformação; não há saber, os homens não podem tornar-se autônomos. Eles preferem se silenciar, pois o dessilenciamento poderia causar danos. Por isso, ainda segundo Freire, nessa visão distorcida de educação, os homens são seres de adaptação e ajustamento.Assim como na censura, há a proibição de determinados dizeres visando ao apagamento de certos sentidos. Ao impedir que determinados sentidos circulem, proíbe-se também que o sujeito ocupe um dado posicionamento que escape à ideologia dominante. Orlandi (1992/2007, p. 76) afirma que a censura “não é um fato circunscrito à consciência daquele que fala, mas um fato discursivo que se produz nos limites das diferentes formações discursivas que estão em relação”. 

Ampliando a discussão, aponto para a existência de uma outra forma de silenciamento: o autossilenciamento. Sabendo-se que o silêncio faz parte da língua é preciso reconhecer que ela inclui o que não é dito. Mota e Souza (2007, p. 7) pontuam três desafios que o falante enfrenta para dizer – e aproveito, para ampliar a discussão – de forma a romper o silenciamento: ter o que dizer, querer dizer e poder dizer.

Dessa forma, para dizer algo, é preciso possuir conteúdo, vontade e liberdade e, muitas vezes, o aluno não se sente dominando um ou mais desses componentes, se isentando do direito de falar. Uma vez que a língua se relaciona com o que eu quero do outro, e na sala de aula existe uma exigência imposta, chamada de resposta certa, o aluno pode calar-se por achar que não entende do assunto tratado, ou com medo de se expor. Silenciar-se relaciona-se diretamente com esconder o ponto fraco, não demonstrar sua incapacidade em dominar o que está sendo discutido. 

Tecnocracia e democracia no SUS

Penso que pode ajudar a pensar a relação entre usuários, técnicos e gestores da saúde mental a noção da tecnocracia como oposta às práticas democráticas. Nas práticas democráticas todos são iguais para opinar. Na tecnocracia é preciso conhecimento técnico para opinar e os problemas sociais, políticos e econômicos são tomados apenas como questões técnicas. A tecnocracia é despolitizadora. Então penso que se as pessoas envolvidas na reforma psiquiátrica tiverem essa distinção em mente podem não se deixar levar e resistir às tendências sociais tecnocráticas que silenciam os usuários ao não conferir valor para a igualdade de condições para opinar e ter voz na democracia (democracia no SUS).

Mais detalhes sobre tecnocracia e democracia: 

https://www.youtube.com/playlist?list=PL7_YgCE1N-bI0zNU4ygrOMNHBRpuZcqJS

Interesse na sociologia

Cada campo de atuação (arte, ciência, política, etc.) tem autonomia em seus princípios e interesses que são irredutíveis ao campo econômico (economicismo). As pessoas bem sucedidas numa forma de jogo no campo de atuação se tornam presas a aquele jogo e as pessoas não envolvidas não vêem sentido num jogo (há relação com a atribuição de loucura). O poder tem fontes na política, na economia e nas atividades de interação que são campos autônomos. O interesse num campo de atuação ou jogo pode acontecer não pelo cálculo instrumental de fins econômicos mas por envolvimento numa forma jogo. Essas são as pessoas que "morreriam por algo que consideram importante num jogo".

Outro aspecto é o uso do conhecimento técnico e científico para dominação social, política e ideológica. Interesses particulares de pessoas ou grupos são tomados como interesses universais. O conhecimento técnico tomado como neutro esconde interesses ideológicos. A consciência de como a ciência e o conhecimento são usados para fins políticos poderia ser uma forma de libertação frente à dominação técnica.

Resumo: É POSSÍVEL UM ATO DESINTERESSADO?

Capítulo 5 - É POSSÍVEL UM ATO DESINTERESSADO? no livro Razões práticas: sobre a teoria da ação de Pierre Bordieu (sociólogo) 

Por que a palavra interesse é de certo modo interessante? Por que é importante questionar o interesse que os agentes podem ter em fazer o que fazem? De fato, a noção de interesse primeiro se colocou para mim como um instrumento de ruptura com uma visão encantada, e mistificadora, das condutas humanas. Lembrar que os jogos intelectuais também têm alvos, que esses alvos suscitam interesses – coisas que de certo modo todos sabem – é tentar estender a todas as condutas humanas, aí compreendidas as que se apresentam ou são vividas como desinteressadas, o modo de explicação e de compreensão de aplicação universal que define a visão científica, e arrancar o mundo intelectual do estatuto de exceção ou de extraterritorialidade que os intelectuais têm a tendência de lhe atribuir. 

Assim, a sociologia postula que há uma razão para os agentes fazerem o que fazem (no sentido em que falamos de razão de uma série), razão que se deve descobrir para transformar uma série de condutas aparentemente incoerentes, arbitrárias, em uma série coerente, em algo que se possa compreender a partir de um princípio único ou de um conjunto coerente de princípios. Nesse sentido, a sociologia postula que os agentes sociais não realizam atos gratuitos.

A palavra gratuito remete, em parte, à ideia de não motivado, de arbitrário: um ato gratuito é um ato do qual não podemos fazer sentido (o de Lafcadio, de Gide), um ato louco, absurdo, pouco importa, diante do qual a ciência social nada tem a dizer, diante do qual só pode se omitir. Esse primeiro sentido esconde outro, mais comum: o que é gratuito é o que é por nada, que não é pago, que não custa nada, que não é lucrativo. Encaixando esses dois sentidos, identifica-se a busca da razão de ser de uma conduta à explicação desta conduta pela busca de fins econômicos.

Investimento

A noção de interesse opõe-se à de desinteresse, mas também à de indiferença. Podemos estar interessados em um jogo (no sentido de não lhe ser indiferentes), sem ter interesse nele. O indiferente “não vê o que está em jogo”, para ele dá na mesma; ele está na posição do asno de Buridan, ele não percebe a diferença. É alguém que, não tendo os princípios de visão e de divisão necessários para estabelecer as diferenças, acha tudo igual, dá tudo na mesma. O que os estoicos chamavam de ataraxia é indiferença ou serenidade da alma, desprendimento, não desinteresse. Assim, a illusio é o oposto da ataraxia, é estar envolvido, é investir nos alvos que existem em certo jogo, por efeito da concorrência, e que apenas existem para as pessoas que, presas ao jogo, e tendo as disposições para reconhecer os alvos que aí estão em jogo, estão prontas a morrer pelos alvos que, inversamente, parecem desprovidos de interesse do ponto de vista daquele que não está preso a este jogo, e que o deixa indiferente. Podemos assim recorrer à palavra investimento, em seu duplo sentido, psicanalítico e econômico.

Entre pessoas que ocupam posições opostas em um campo, e que parecem radicalmente opostas em tudo, observa-se que há um acordo oculto e tácito a respeito do fato de que vale a pena lutar a respeito das coisas que estão em jogo no campo. O apolitismo primário, que não cessa de crescer, já que o campo político tende cada vez mais a fechar-se sobre si mesmo e a funcionar sem se referir à clientela (isto é, um pouco como um campo artístico), apoia-se sobre uma espécie de consciência confusa dessa cumplicidade profunda entre os adversários inseridos no mesmo campo: eles se enfrentam, mas estão de acordo pelo menos a respeito do objeto do desacordo. 

Uma das tarefas da sociologia é a de determinar como o mundo social constitui a libido biológica, pulsão indiferenciada, em libido social, específica. De fato, existem tantos tipos de libido quanto de campos: o trabalho de socialização da libido é, precisamente, o que transforma as pulsões em interesses específicos, interesses socialmente constituídos que apenas existem na relação com um espaço social no interior do qual certas coisas são importantes e outras são indiferentes, para os agentes socializados, constituídos de maneira a criar diferenças correspondentes às diferenças objetivas nesse espaço.

Contra o utilitarismo

Substituir uma relação prática de pré-ocupação, presença imediata de um por vir inscrito no presente, por uma consciência racional, calculista, que se coloca objetivos como tais, como possíveis, é abrir espaço para a questão do cinismo, que coloca como tais objetivos inconfessáveis. Ao passo que, se minha análise está correta, podemos, por exemplo, ajustar-nos às necessidades de um jogo, podemos fazer uma belíssima carreira acadêmica, sem nunca ter a necessidade de postular tal objetivo. Inspirados por um desejo de desmistificação, os pesquisadores frequentemente tendem a agir como se os agentes sempre tivessem tido como finalidade, no sentido de objetivo, o fim, no sentido de termo, de sua trajetória. Transformando o trajeto em projeto, agem como se o intelectual consagrado, cuja carreira eles pesquisam, tivesse tido em mente, desde o momento em que escolheu uma disciplina, um orientador de tese, um objeto de pesquisa, a ambição de tornar-se professor no Collège de France. Eles atribuem a conduta dos agentes em um campo (os dois monges que lutam pelo bastão do prior, ou os dois intelectuais que lutam para impor sua teoria da ação) à uma consciência calculista mais ou menos cínica.

Se o que digo é correto, vale também o reverso. Os agentes que lutam por objetivos definidos podem estar possuídos por esses objetivos. Podem estar prontos a morrer por esses objetivos, independentemente de qualquer consideração em relação aos lucros específicos, lucrativos, da carreira ou outros. Sua relação com o objetivo que lhes interessa não é de modo nenhum o cálculo consciente de utilidade que lhe oferece o utilitarismo, filosofia que preferimos atribuir às ações dos outros. Eles têm o sentido do jogo; nos jogos nos quais, por exemplo, é preciso mostrar “desinteresse”para ter êxito, eles podem realizar, de maneira espontaneamente desinteressada, ações que estejam de acordo com seus interesses. Existem situações inteiramente paradoxais que uma filosofia da consciência impede de compreender.

Trato agora da segunda redução, a que consiste em remeter tudo ao interesse lucrativo, a reduzir os objetivos da ação a finalidades econômicas. Em relação a esse ponto, a refutação é relativamente simples. De fato, o princípio do erro consiste no que chamamos tradicionalmente de economicismo, isto é, o fato de considerar que as leis de funcionamento de um campo social entre outros, o campo econômico, valem para todos os campos. Na fundamentação da teoria dos campos, temos a constatação (já encontrada em Spencer, em Durkheim, em Weber...) de que o mundo social é lugar de um processo de diferenciação progressiva. Observamos assim, Durkheim o relembrava constantemente, que na sua origem, em muitas sociedades antigas e ainda em muitas sociedades pré-capitalistas, os universos sociais que entre nós são diferenciados (como a religião, a arte, a ciência) são ainda indiferenciados, de modo que percebemos aí uma polissemia e uma multifuncionalidade (um termo que Durkheim emprega com frequência em Formas elementares da vida religiosa) de condutas humanas que podem ser interpretadas ao mesmo tempo como religiosas, econômicas, estéticas etc. 

A evolução das sociedades tende a fazer com que surjam universos (que chamo de campos) que têm leis próprias, são autônomos. As leis fundamentais são, com frequência, tautologias. A do campo econômico, elaborada pelos filósofos utilitaristas: negócios são negócios; a do campo artístico, explicitamente colocada pela escola que se diz da arte pela arte: a finalidade da arte é a arte, a arte não tem outro objetivo que não seja a arte...Temos assim universos sociais com uma lei fundamental, um nomos independente do de outros universos, que são auto-nomos, que avaliam o que se faz aí, as questões que aí estão em jogo, de acordo com princípios e critérios irredutíveis aos de outros universos. Estamos aqui nos antípodas do economicismo, que consiste em aplicar a todos os universos o nomoscaracterístico do campo econômico. O que implica esquecer que esse mesmo campo se construiu por meio de um processo de diferenciação que postulava que o econômico não é redutível às leis que regem a economia doméstica, à philia (aquilo que agrada), como dizia Aristóteles, e também o inverso.

Esse processo de diferenciação ou de autonomia resultou na constituição de universos que têm “leis fundamentais” (expressão emprestada de Kelsen) diferentes, irredutíveis, e que são o lugar de formas específicas de interesse. O que faz com que as pessoas corram e concorram no campo científico não é a mesma coisa que faz com que elas corram e concorram no campo econômico. O exemplo mais flagrante é o do campo artístico que se constitui no século XIX, atribuindo-se como lei fundamental o inverso da lei econômica. O processo, que se inicia na Renascença e que chega a seu termo na segunda metade do século XIX, com o que chamamos de arte pela arte, redundou em uma dissociação completa entre os objetivos lucrativos e os objetivos específicos do universo – com a oposição, por exemplo, entre a arte comercial e a arte pura. A arte pura, única forma de arte verdadeira de acordo com as normas específicas do campo autônomo, recusa objetivos comerciais, isto é, a subordinação do artista, e principalmente de sua produção, a demandas externas e às sanções dessa demanda, que são sanções econômicas. Ele se constitui sobre a base de uma lei fundamental que é a negação (ou a recusa) da economia: a de que não entra aqui quem tiver interesses comerciais.

Outro campo que se constitui a partir do mesmo tipo de recusa do interesse: o campo burocrático. A filosofia hegeliana do Estado, espécie de ideal do eu burocrático, é a representação que o campo burocrático pretende dar-se e dar de si mesmo, isto é, a imagem de um universo cuja lei fundamental é o serviço público; um universo no qual os agentes sociais não têm interesse pessoal e sacrificam seus próprios interesses ao público, ao serviço público, ao universal.

A teoria do processo de diferenciação e de autonomia dos universos sociais com leis fundamentais diferentes leva à explosão da noção de interesse; há tantas formas de libido, tantos tipos de “interesse”, quanto há campos. Cada campo, ao se produzir, produz uma forma de interesse que, do ponto de vista de um outro campo, pode parecer desinteresse (ou absurdo, falta de realismo, loucura etc.). Vemos a dificuldade de aplicar o princípio da teoria do conhecimento sociológico que enunciei no início, e que pretende que tudo tem sentido. É possível uma sociologia desses universos cuja lei fundamental é o desinteresse (no sentido de recusa do interesse econômico)? Para que ela seja possível, é preciso que exista uma forma de interesse que podemos descrever, por necessidade de comunicação, e com o risco de cair na visão reducionista, como interesse pelo desinteresse, ou melhor, uma disposição desinteressada ou generosa.

Aqui é preciso lançar mão de tudo o que diz respeito ao simbólico, capital simbólico, interesse simbólico, lucro simbólico. Chamo de capital simbólico qualquer tipo de capital (econômico, cultural, escolar ou social) percebido de acordo com as categorias de percepção, os princípios de visão e de divisão, os sistemas de classificação, os esquemas classificatórios, os esquemas cognitivos, que são, em parte, produto da incorporação das estruturas objetivas do campo considerado, isto é, da estrutura de distribuição do capital no campo considerado. O capital simbólico que faz com que reverenciemos Luís XIV, que lhe façamos a corte, com que ele possa dar ordens e que essas ordens sejam obedecidas, com que ele possa desclassificar, rebaixar, consagrar etc., só existe na medida em que todas as pequenas diferenças, as marcas sutis de distinção na etiqueta e nos níveis sociais, nas práticas e nas vestimentas, tudo o que compõe a vida na corte, sejam percebidas pelas pessoas que conhecem e reconhecem, na prática (que incorporaram), um princípio de diferenciação que lhes permite reconhecer todas essas diferenças e atribuir-lhes valor, em uma palavra, pessoas prontas a morrer por uma querela de barretes. O capital simbólico é um capital com base cognitiva, apoiado sobre o conhecimento e o reconhecimento.

O desinteresse como paixão 

Tendo evocado sumariamente os conceitos fundamentais, indispensáveis, a meu ver, para pensar a ação razoável – habitus, campo, interesse ou illusio, capital simbólico – volto ao problema do desinteresse. É possível uma conduta desinteressada e, se é, como e em que condições? Se permanecemos em uma filosofia da consciência, é evidente que só podemos responder negativamente à questão e que todas as ações aparentemente desinteressadas esconderão intenções de maximizar alguma forma de lucro. Ao introduzir a noção de capital simbólico (e de lucro simbólico), de certa maneira, radicalizamos o questionamento da visão ingênua: as ações mais santas – a ascese ou o devotamento mais extremos – poderão ser sempre suspeitas (e historicamente o foram, por certas formas extremas de rigorismo) de ter sido inspiradas pela busca do lucro simbólico de santidade ou de celebridade etc. No início de O processo civilizador, Norbert Elias cita o exemplo de um duque que havia dado uma bolsa cheia de escudos a seu filho e que, seis meses mais tarde, ao interrogá-lo, quando ele se vangloria de não ter gasto o dinheiro, toma a bolsa e a joga pela janela. Ele dá, assim, uma lição de desinteresse, de gratuidade, de nobreza; mas também uma lição de colocação, de investimento do capital simbólico, que convém ao capital aristocrático. (Isso valeria também para um cabila honrado (cabila ou cabilda: 1 aldeia de mouros 2 tribo ou grupo de famílias que vivem no mesmo lugar 3 grupo nômade que vive mudando de lugar em busca de pasto.)

Existem, de fato, universos sociais nos quais a busca do lucro estritamente  econômico pode ser desencorajada por normas explícitas ou por injunções tácitas. “Noblesse oblige” (a nobreza obriga) significa que é sua nobreza que proíbe o nobre de fazer certas coisas, e o obriga a fazer outras. Já que faz parte de sua definição, de sua essência superior ser desinteressado, generoso, ele não pode deixar de sê-lo, “é mais forte que ele”. Por um lado, o universo social exige que ele seja generoso; por outro, ele está disposto a ser generoso graças às lições brutais que Elias relata, mas também graças às inúmeras lições, frequentemente tácitas e quase imperceptíveis, da existência cotidiana – as insinuações, as reprovações, os silêncios, as evitações. As condutas de honra das sociedades aristocráticas ou pré-capitalistas têm como princípio uma economia de bens simbólicos fundada no recalque coletivo do interesse e, de maneira mais geral, da verdade sobre a produção e a circulação, que tende a produzir habitus “desinteressados”, habitus antieconômicos, dispostos a recalcar os interesses, no sentido estrito do termo (isto é, a busca de lucros econômicos), particularmente nas relações domésticas.

Por que é importante pensar em termos de habitus? Por que é importante pensar o campo como um lugar que não produzimos e no qual nascemos, e não como um jogo arbitrariamente constituído? Porque isso permite compreender que existem condutas desinteressadas, cujo princípio não é o cálculo do desinteresse, a intenção calculada de superar o cálculo ou de mostrar que se é capaz de superá-lo. Isso contra La Rochefoucauld que, sendo produto de uma sociedade onde a honra era importante, compreendeu bem a economia dos bens simbólicos, mas, como o verme jansenista já se tinha introduzido no fruto aristocrático, passou a dizer que as atitudes aristocráticas são, de fato, as formas supremas de cálculo, cálculos de segundo grau (é o exemplo da clemência de Augusto). Em uma sociedade onde a honra é parte importante de sua constituição, as análises de La Rochefoucauld são falsas; elas se aplicam a sociedades nas quais a honra já está em crise, como aquelas que estudei em Le déracinement (O desenraizamento), nas quais os valores da honra vão se desgastando à medida que as trocas monetárias se generalizam e, através delas, o espírito calculista, que acompanha a possibilidade objetiva de cálculo (começa-se, coisa impensável, a avaliar o trabalho e o valor de um homem em termos monetários). Nas sociedades nas quais a honra é parte importante de sua constituição, podem existir habitus desinteressados e a relação habitus-campo é tal que, de maneira espontânea ou apaixonada, à maneira do “é mais forte do que eu”, realizamos atos desinteressados. De certo modo, o aristocrata não pode deixar de ser generoso, por fidelidade a seugrupo e por fidelidade a si mesmo, como digno de ser membro do grupo. É isso que significa “noblesse oblige” (a nobreza obriga). A nobreza é a nobreza como corpo, como grupo que, incorporado, toma corpo, disposição, habitus, torna-se sujeito de práticas nobres e obriga o nobre a agir nobremente. 

Quando as representações oficiais daquilo que um homem é oficialmente em um espaço social dado tornam-se habitus, elas se tornam o fundamento real das práticas. Os universos sociais nos quais o desinteresse é a norma oficial, não são, sem dúvida, inteiramente regidos pelo desinteresse: por trás da aparência piedosa e virtuosa do desinteresse, há interesses sutis, camuflados, e o burocrata não é apenas o servidor do Estado, é também aquele que põe o Estado a seu serviço. Dito isso, não se vive impunemente sob a invocação permanente da virtude, já que somos apanhados pelos mecanismos e pelas sanções que existem para relembrar a obrigação do desinteresse.

A questão da possibilidade da virtude pode, portanto, ser remetida à questão das condições sociais de possibilidade em universos nos quais disposições duradouras de desinteresse podem se constituir e, uma vez constituídas, encontrar condições objetivas de reforço constante, tornando-se o fundamento de uma prática permanente da virtude; nos quais, do mesmo modo, as ações virtuosas existem comumente, com uma frequência estatística decente, não à maneira do heroísmo de alguns virtuosos. Não se pode fundamentar virtudes duradouras sobre uma decisão de consciência, isto é, à maneira de Sartre, sobre algo como um juramento. 

Se o desinteresse é sociologicamente possível, isso só ocorre por meio do encontro entre habitus predispostos ao desinteresse e universos nos quais o desinteresse é recompensado. Dentre esses universos, os mais típicos são, junto com a família e toda a economia de trocas domésticas, os diversos campos de produção cultural, o campo literário, o campo artístico, o campo científico etc., microcosmos que se constituem sobre uma inversão da lei fundamental do mundo econômico e nosquais a lei do interesse econômico é suspensa. O que não quer dizer que eles não conheçam outras formas de interesse: a sociologia da arte ou da literatura desvela (ou desmascara) e analisa os interesses específicos constituídos pelo funcionamento do campo (e que puderam levar Breton a quebrar o braço de um rival em uma disputa poética) e pelos quais se está pronto a morrer.

Os lucros da universalização 

Se é verdade que toda sociedade oferece a possibilidade de se obter um lucro do universal, as condutas com pretensão universal serão universalmente expostas à suspeita. Esse é o fundamento antropológico da crítica marxista da ideologia como universalização do interesse particular: ideólogo é aquele que toma por universal, por desinteressado, o que está de acordo com seu interesse particular. Dito isso, o fato de que existam lucros no universal e na universalização, o fato de que obtenhamos lucros prestando homenagem, ainda que de maneira hipócrita, ao universal, adornando como universal uma conduta determinada, de fato, pelo interesse particular (casamos com a prima paralela porque não encontramos outra prima, mas deixamos que se pense que é por respeito à regra), portanto, o fato de que possa haver lucros na virtude e na razão é, sem dúvida, um dos grandes motores da virtude e da razão na história. Sem recorrer a nenhuma hipótese metafísica (área de filosofia que trata dos conceitos sobre aquilo que é ou o ser e que significa o além do físico) (nem disfarçada de constatação empírica, como em Habermas), podemos dizer que a razão tem fundamento na história e que se a razão progride, ainda que lentamente, é porque há interesse na universalização e que, universalmente, mas sobretudo em certos universos, como o campo artístico, científico etc., é melhor aparecer como desinteressado do que como interesseiro, como generoso, altruísta, do que como egoísta. As estratégias de universalização, que fundamentam todas as normas e todas as formas oficiais (com tudo o que elas possam ter de mistificação), e que se apoiam sobre a existência universal do lucro da universalização, fazem com que o universal tenha, universalmente, probabilidades diferentes de zero de se concretizar. 

Podemos, assim, substituir a pergunta sobre se a virtude é possível pela questão de saber se podemos criar universos nos quais as pessoas tenham interesse no universal. Maquiavel disse que a república é um universo no qual os cidadãos têm interesse na virtude. A gênese de um universo desse tipo só é concebível se temos esse motor que é o reconhecimento universal do universal, isto é, o reconhecimento oficial da primazia do grupo e de seus interesses sobre o indivíduo e os interesses dele, que todos os grupos professam no próprio fato de se afirmarem como tais.

Concluindo, volto à burocracia, um desses universos que, como o do direito, atribui-se a lei de submissão ao universal, ao interesse geral, ao serviço público, reconhecível na filosofia da burocracia como classe universal, neutra, acima dos conflitos, a serviço do interesse público, da racionalidade (ou da racionalização). Os grupos sociais que criaram a burocracia prussiana, ou a francesa, tinham interesse no universal e precisaram inventar o universal (o direito, a ideia de serviço público, a ideia de interesse geral etc.) e, se se pode dizer, a dominação em nome do universal para aceder à dominação.

Uma das dificuldades da luta política atualmente é que os dominantes, tecnocratas (governo dos técnicos) ou epistemocratas (governo do conhecimento), de direita ou de esquerda, são partidários da razão e do universal: caminhamos em direção a universos nos quais, cada vez mais, serão necessárias justificativas técnicas, racionais, para dominar, e nos quais os próprios dominados poderão e deverão, cada vez mais, utilizar-se da razão para defender-se contra a dominação, já que os dominantes, cada vez mais, invocarão a razão e a ciência para exercer sua dominação. O que faz com que os progressos da razão venham a acompanhar, sem dúvida, o desenvolvimento de formas altamente racionalizadas de dominação (como vemos, desde já, na utilização de uma técnica como a pesquisa de opinião), e com que a sociologia, só ela capaz de desvendar esses mecanismos, deva, cada vez mais, escolher entre colocar seus instrumentos racionais de conhecimento a serviço de uma dominação cada vez mais racional, ou analisar racionalmente a dominação, principalmente a contribuição que o conhecimento racional pode dar à dominação.

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