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sexta-feira, 30 de junho de 2023

"Flexibilidade cognitiva" interna e externa

 https://neurosciencenews.com/cognitive-flexibility-neural-population-23542/

Aparentemente as pessoas abertas é que são rígidas (contradição).

Numa perspectiva externalista, há eventos exteriores que fortalecem ou enfraquecem a flexibilidade ou rigidez, indistintamente de rótulo diagnóstico.

Sobre o estudo: uma manipulação de um local distante no córtex produziu dificuldade de adaptação de um rato à uma mudança no ambiente para procurar alimentos. O resultado foi interpretado como a localização da "flexibilidade cognitiva" no cérebro.

Interpretação alternativa: destruir neurônios numa área do cérebro destruiu repertórios operantes e isso levou a um aumento do tempo para estabelecer novo repertório.


Atratividade, grau de maturação, genes e transtorno mental

    Gêmeos idênticos, mesmo que criados separadamente, são semelhantes tanto em aparência física quanto em taxa de maturação, fatores que exercem uma influência poderosa no ajuste de uma pessoa.

    Com nutrição adequada, gêmeos idênticos podem ser bonitos, feios ou ter uma aparência mediana. Seus ambientes, mesmo quando distantes geograficamente, tendem a tratá-los de maneira semelhante com base em sua aparência, de maneiras que se sabe contribuir para o humor e o ajuste geral. Por exemplo, uma quantidade substancial de pesquisas documentou que pessoas atraentes tendem a ser tratadas melhor do que pessoas não atraentes. Pessoas atraentes recebem mais simpatia e desejo de contato por parte dos outros do que indivíduos não atraentes (Walster, Aronson, Abrahams e Rottman, 1966). Outros expressam um maior desejo de namorá-los, e as pessoas avaliam de forma mais positiva pessoas atraentes como possíveis parceiros (Bynne, Ervin e Lamberth, 1970). Em comparação com pessoas não atraentes, indivíduos bonitos até recebem melhores notas em redações quando a mesma redação é avaliada por dois professores que viram fotos de "autores" atraentes e não atraentes (Landy e Sigall, 1974). Pesquisadores que se basearam em estudos com gêmeos raramente consideraram que gêmeos não atraentes provavelmente estão em maior risco de depressão, e talvez de outros distúrbios, com base na forma como seus ambientes os tratam, em vez de seus genes. 

    A atratividade física não é a única fonte de influência ambiental que atua na formação do ajuste de crianças, incluindo gêmeos idênticos. A taxa de maturação também refuta a suposição de que gêmeos idênticos, mesmo aqueles separados logo após o nascimento, necessariamente foram criados em ambientes bastante diferentes. Gêmeos idênticos provavelmente atingem a puberdade na mesma taxa. Se esse desenvolvimento é precoce, na idade média ou tardio, tem muito a ver com como os jovens se sentem em relação a si mesmos e como os outros respondem a eles. Por exemplo, meninas que amadurecem precocemente tendem a ser abaixo da média em popularidade, retraídas, carentes de autoconfiança, psicologicamente mais estressadas e geralmente ocupam menos cargos de liderança do que suas colegas que amadurecem mais tarde (Ge, Conger e Elder, 1996; Graber, Lewinson, Seeley e Brooks-Gunn, 1997; Jones e Mussen, 1958).Além disso, eles estão mais envolvidos em comportamentos como ficar bêbados e se envolver em atividades sexuais precoces e, em média, têm um desempenho escolar inferior (Caspi, Lynam, Moffitt & Silva, 1993; Dick, Rose, Viken & Kaprio, 2000). Seria desonesto afirmar que o feedback diário que as adolescentes recebem em relação à sua atratividade e maturação está desvinculado de problemas contemporâneos ou futuros de ajuste, como a depressão. 

    Para os meninos, as tendências de maturação são globalmente semelhantes, embora diferentes em detalhes. Com os meninos, a maturação precoce é melhor do que a maturação tardia, pelo menos superficialmente. Meninos que amadurecem precocemente são vistos como relaxados e independentes, e ocupam mais cargos de liderança na escola. Meninos que amadurecem tarde são vistos por outros como ansiosos, faladores demais e como procurando muita atenção (Brooks-Gunn, 1988; Clausen, 1975; Jones, 1965; Mussen & Jones, 1957). Curiosamente, meninos que amadurecem precocemente relatam um maior estresse psicológico do que seus colegas que amadurecem mais tarde (Ge, Conger & Elder, 2001), contrariando a forma como são vistos pelos outros. Gêmeos idênticos amadurecem na mesma taxa, mesmo que sejam criados separadamente, e como resultado vivem em mundos que os tratam de maneira semelhante, o que tem implicações para o ajuste, incluindo o desenvolvimento de transtornos mentais e comportamentais. 

    Assim, os ambientes bombardeiam as crianças com diferentes classes de feedback com base nos níveis de atratividade física e nas taxas de maturação dos jovens. Os pesquisadores de gêmeos geralmente falharam em levar em conta esse conjunto de pesquisas de psicologia do desenvolvimento. 

    Existem outras razões para duvidar da suposição de longa data dos pesquisadores de que gêmeos idênticos separados logo após o nascimento foram necessariamente criados em ambientes substancialmente diferentes. Uma questão é a idade relatada em que os gêmeos nos estudos foram separados. Um dos principais pesquisadores de similaridades entre gêmeos relatou que estudou 315 pares de gêmeos idênticos que foram criados separadamente "desde os dez anos de idade" (Lykken, McGue, Tellegen & Bouchard, 1992). Não é considerada uma inundação de água ambiental que passou pela represa das experiências de vida antes dos dez anos de idade. 

    Além disso, as práticas de adoção familiar e as práticas das agências de adoção também confundem ainda mais as águas da causalidade genética/ambiental quando os estudos com gêmeos são examinados de perto. Análises de vários estudos (Farber, 1991; Wyatt, 1993) revelaram que frequentemente os gêmeos "separados" foram criados na mesma família extensa. Da mesma forma, quando a adoção é conduzida por uma agência de adoção, um dos pais biológicos frequentemente insiste que o bebê seja colocado em um lar semelhante ao dos pais biológicos em relação à religião, etnia, status socioeconômico e densidade populacional (ambiente urbano/rural). Todas são variáveis que se sabe estarem correlacionadas com diversos transtornos mentais e comportamentais. Quando a separação dos gêmeos não ocorre logo após o nascimento e a adoção envolve o posicionamento intencional dos gêmeos em ambientes semelhantes, torna-se difícil ou impossível separar as contribuições genéticas das contribuições ambientais ao tentar identificar as causas de transtornos mentais ou comportamentais posteriores. 

    A atratividade física, a taxa de maturação, a idade da separação e as práticas de adoção familiar e agência geralmente não foram consideradas pelos pesquisadores, cujos estudos mostram até 40% de concordância para transtornos mentais em gêmeos idênticos que foram criados separadamente. No entanto, os fatores culturais são poderosos e frequentemente inflexíveis. Gêmeos idênticos criados "separados" na verdade estão expostos diariamente a pressões ambientais similares - influências que podem muito bem explicar os níveis relatados de concordância para transtornos emocionais e comportamentais. Diante de tudo isso, é razoável concluir que as influências genéticas e ambientais foram confundidas irreparavelmente nos estudos com gêmeos idênticos.

Referência:

Wyatt, W. J., & Midkiff, D. M. (2006). Biological Psychiatry: A Practice in Search of a Science. Behavior and Social Issues, 15(2), 132–151. https://doi.org/10.5210/bsi.v15i2.372

quinta-feira, 29 de junho de 2023

O estereótipo da esquizofrenia: eugenia estética?

O estereótipo da pessoa com diagnóstico de esquizofrenia para a Janssen é a pessoa com aparência física esquisita, voz ruim e posicionamento físico e vocal desajeitado.

Isso me faz perguntar se os psiquiatras não utilizam esse estereótipo estético nas suas avaliações. Dentro de uma perspectiva Kraepliana monista que só considera o corpo, isso é uma avaliação da aptidão do corpo. Somando isso a algumas dificuldades e conflitos sociais, o médico vê a comprovação da inaptidão. Se a avaliação for assim, é um indício que o critério eugenista ainda se mantém como critério do diagnóstico de esquizofrenia como na origem.

Ver mais:

Diagnóstico antigo de esquizofrenia tinha critérios estéticos explícitos

Atratividade, grau de maturação, genes e transtorno mental

Comentário com trecho sobre pássaro pintado no fim do livro Fabricação da loucura de Thomas Szasz

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Núcleo teórico e interpret. de ser hum. na psicologia

"Tais interpretações de forma alguma são privilégio de abordagens behavioristas. Psicólogos quase sempre vão além do que podem comprovar por meio de expansões bem-sucedidas do núcleo das teorias que defendem. Por exemplo, o livro "Cognition and Reality" de Neisser (1976) consiste, em suas partes construtivas, em interpretações no sentido aqui mencionado, não em expansões do núcleo. As concepções de ser humano, tão discutidas na psicologia, são o resultado de tais interpretações, não pressupostos filosóficos ou metafísicos das teorias em questão. No nível dessas interpretações, é fácil afirmar uma teoria abrangente, mas no nível das expansões bem-sucedidas do núcleo, todas as nossas teorias são extremamente limitadas. Portanto, é fácil confundir uma interpretação com uma tentativa de expansão do núcleo e criticar uma teoria (veja, por exemplo, Chomsky, 1959)."

[O autor, que utiliza a concepção de teoria estruturalista na filosofia da ciência analítica para analisar teorias, está afirmando que o núcleo teórico axiomatizável das teorias são restritos e que a expansão das teorias são interpretações. Logo, questionar as interpretações não é refutar o núcleo da teoria. Por isso, Chomsky não refutou o núcleo do comportamentalismo.

Também esclarece que as concepções de ser humano base das teorias psicológicas não são pressupostos filosóficos ou metafísicos das teorias psicológicas mas que também são interpretações a partir de um núcleo teórico.]

Esclarecimento do contexto histórico que o texto se refere:

Em 1959, Noam Chomsky publicou um artigo intitulado "A Review of B.F. Skinner's 'Verbal Behavior'" (Uma Resenha do 'Comportamento Verbal' de B.F. Skinner). Neste artigo, Chomsky critica e oferece uma análise detalhada da teoria behaviorista de Skinner, especificamente em relação à linguagem e à aquisição da linguagem. Chomsky argumenta que a abordagem behaviorista de Skinner não pode explicar adequadamente a complexidade e a criatividade inerentes à linguagem humana. Sua revisão teve um impacto significativo no campo da psicologia e linguística, impulsionando o desenvolvimento de abordagens alternativas para a compreensão da linguagem, como a teoria da gramática generativa.

Referência:

Westmeyer, H. (1984). Von der Schwierigkeit, ein Behaviorist zu sein oder Auf der Suche nach einer behavioristischen Identität [Da dificuldade de ser um behaviorista ou Em busca de uma identidade behaviorista]. In H. Lenk (Hrsg.), Handlungstheorien – interdisziplinär [Teorias da Ação - Interdisciplinares] (Bd. 3). München: Fink.

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Sugestões no discurso científico [do especialista]

Sugestões no discurso científico

Christoph Kraiker

I

Neste ensaio, gostaria de apresentar as seguintes teses:

1. A chamada ciência moderna estabeleceu-se com a pretensão de retirar a influência das sugestões no direcionamento do comportamento individual e político, submetendo-o à justificação por meio de uma técnica objetiva de prova científica.

2. No momento de sua origem (por volta de 1550-1650, representado por nomes como Galileu, Francis Bacon, Descartes), a superação das reivindicações de domínio clerical e aristocrático significava a possibilidade de um governo pelas próprias pessoas. Assim, a ciência moderna se tornou uma condição prévia para o surgimento de governos democráticos.

3. Esse programa falhou. Na atualidade, a ciência também exerce seu próprio poder de forma sugestiva, não podendo agir de outra maneira, tornando-se, assim, uma ameaça potencialmente maior do que o sistema de controle que deveria substituir.

4. A razão individual não pode se defender desse poder de forma argumentativa. Se não quiser capitular diante dele, deve impedir sua influência por meio de ações políticas.

II

Primeiramente, gostaria de apresentar algumas condições para o sucesso das sugestões. Essa lista foi elaborada a partir da tentativa de analisar minhas próprias experiências como vítima de sugestões. Um incidente que ocorreu há alguns anos me motivou a isso:

Durante um fim de semana, desenvolvi um sintoma que, embora já tivesse aparecido ocasionalmente antes, dessa vez estava realmente doloroso. Por precaução, marquei uma consulta com um médico na segunda-feira de manhã. Ele agendou um horário com um especialista para as 16h. Às 18h, eu estava na clínica e às 19h fui operado. Na manhã seguinte, o cirurgião examinou seu trabalho e me disse: "Bem, parece bom. Espero não ter que operá-lo mais meia dúzia de vezes como outro paciente que também teve esse problema".

Como resultado desse comentário, acabei vivendo praticamente dois anos em uma hipocondria hipopânica, constantemente com medo de que os sintomas voltassem e eu tivesse que passar por outra cirurgia. Eventualmente, procurei outro especialista para uma nova avaliação, e esse médico disse que estava tudo completamente bem e que nunca houve perigo de recorrência.

Então, perguntei a mim mesmo como era possível que uma única frase de apenas dez segundos pudesse ter efeitos psicológicos tão significativos, especialmente considerando que não era uma sugestão intencional. Ao longo dos anos, também no contexto do meu trabalho em terapia cognitivo-comportamental, cheguei a uma lista dos elementos para o sucesso da sugestão, que gostaria de apresentar a você agora:

Quando distinguimos o emissor, o conteúdo e o receptor da sugestão, os seguintes pontos são válidos:

1. O conteúdo da sugestão deve chamar a atenção do receptor. No meu caso, isso ocorreu porque tinha grande importância para mim. Quando se trata de vida e morte, do destino da Terra e do universo, a maioria das pessoas presta atenção. Outros meios de chamar a atenção do receptor incluem repetições constantes, como na publicidade televisiva, ou a indução de transe hipnótico.

2. O emissor da sugestão é considerado competente em relação ao conteúdo da sugestão. Essa competência pode ser oficialmente confirmada e demonstrada, por exemplo, por meio da concessão de diplomas, certificados e títulos. Além disso, a palavra impressa tem mais peso do que a falada, e a dentista tem mais competência para avaliar escovas de dentes do que o encanador.

3. O receptor da sugestão possui pouco ou nenhum conhecimento competente em relação ao conteúdo da sugestão.

4. O emissor da sugestão parece confiável, não no sentido de competência técnica (isso já foi mencionado), mas no sentido de que ele mesmo parece acreditar no que está dizendo. Uma condição para isso é evitar dar a impressão de que está manipulando o receptor da sugestão em seu próprio interesse. Caso essa impressão seja criada, também surgirá a reatividade. Nesse aspecto, a dentista enfrenta certas dificuldades (sem mencionar a marca Dr. Best), assim como o cirurgião que recomenda uma operação cara ou o terapeuta que recomenda uma terapia frequente e prolongada. Mas alguém que espera não precisar passar por mais operações (voltando ao meu caso) está isento de suspeitas nesse aspecto.

5. Opcional, mas quando presente, muitas vezes extremamente eficaz: a sugestão exerce pressão moral, no sentido de que questionar a sugestão implica ser claramente desonesto. O representante que consegue descrever vividamente o sofrimento que uma família enfrentará após a morte do provedor tem mais facilidade para vender seguros. Essa estratégia é encontrada em todos os lugares, no mundo dos negócios, na política, na ciência, até mesmo na pré-escola. A situação se complica em problemas de natureza ambígua. Nesses casos, você será sempre desonesto, não importa o que faça, aos olhos de um grupo ou de outro. Muitas vezes, é possível identificar de que lado alguém está pela terminologia usada, por exemplo:

Intervenção armada vs. medidas de construção da paz

Aborto vs. Interrupção da gravidez

Geneticamente manipulado vs. Geneticamente modificado

Aumento de impostos vs. Sobretaxa solidária

6. Por fim, uma definição precisa: deve-se falar em sugestão apenas quando não houver prova. Se for possível provar que algo precisa ser feito ou que algo é como se afirma, então não é uma sugestão. Justamente por esse motivo, a apresentação de uma prova (que na realidade não existe ou não é válida) é um elemento importante da influência sugestiva.

Vamos resumir esses elementos novamente em uma lista:

1. A sugestão chama a atenção do receptor.
2. O emissor da sugestão é considerado competente.
3. O receptor da sugestão não possui conhecimento adequado em relação ao conteúdo da sugestão.
4. O emissor da sugestão parece confiável.
5. A sugestão exerce pressão moral.
6. Ausência de prova em relação ao conteúdo da sugestão.

Os primeiros quatro elementos se complementam de forma multiplicativa, em vez de aditiva; se um deles se aproxima de zero, toda a sugestão corre o risco de falhar. O quinto elemento atua como um reforço, enquanto o sexto delimita a sugestão da argumentação racional.

III

A argumentação racional era o objetivo da ciência moderna (pós-medieval). Ela tentava desenvolver um método geral para a produção de provas válidas, para que as crenças e ações das pessoas pudessem realmente se basear nessas provas. Era importante que esse método fosse compreensível por todas as pessoas (pelo menos de inteligência média). Variantes desse programa podem ser encontradas nos escritos dos pioneiros da modernidade, como Francis Bacon, Galileu Galilei ou René Descartes. Descartes, por exemplo, escreve:

"Aquelas longas cadeias de razões muito simples e fáceis que os geômetras costumam usar para realizar suas provas mais difíceis despertaram em mim a ideia de que todas as coisas acessíveis ao conhecimento humano seguem umas às outras da mesma maneira, e que, desde que se abstenha de considerar como verdadeiro qualquer coisa que não o seja, e sempre se observe a ordem necessária para derivar uma coisa da outra, nada está tão distante que não possa ser alcançado, e nada pode estar tão oculto que não possa ser descoberto".1

A ideia subjacente pode ser chamada de princípio exotérico. É a exigência de um caminho (método) de busca da verdade que atenda às seguintes demandas:2

1. Deve ser baseado em uma base de conhecimento geralmente aceitável, pois é evidente e verificável para todos.

2. Deve empregar um método que possa resolver todos os problemas solucionáveis, cujos princípios sejam compreensíveis por todos, que possa ser aplicado por qualquer pessoa e cujo funcionamento possa ser compreendido e, portanto, verificado por todos.

3. Deve usar uma linguagem que permita expressar todas as coisas de maneira completa, clara e inequívoca, e que seja compreendida por todos de maneira unívoca.

Esse caminho não apenas leva ao sucesso, à verdade, mas também o faz de maneira democrática: qualquer um pode percorrê-lo, qualquer um pode verificar se os outros o percorreram corretamente.

IV

No entanto, o princípio exotérico falhou. A ciência é efetiva (de certa forma, mais do que nunca), mas seu caráter democrático desapareceu. Isso se deve principalmente a três razões:

Questões essenciais estão relacionadas a sistemas altamente complexos e, portanto, caóticos, que só podem ser investigados por meio de modelos extremamente simplificados e mesmo assim requerem dias, semanas ou até meses de tempo de computação de supercomputadores. A adequação do programa utilizado e a adequação dos dados de entrada podem ser avaliadas apenas por um número muito pequeno de pessoas - se é que alguém pode fazê-lo. Todos os problemas relacionados aos efeitos de variáveis em interação complexa se enquadram nessa categoria, sejam eles os efeitos de intervenções de longo prazo na saúde das pessoas, o desenvolvimento do clima em função de fatores industriais ou as consequências de uma união monetária europeia. E mesmo que um dos resultados contraditórios das investigações seja correto, dificilmente alguém poderia reconhecê-lo - possivelmente ninguém pode reconhecê-lo.

Além disso, não apenas o método das ciências fundamentais é inacessível para a maioria das pessoas, mas também o conteúdo de suas declarações. O entendimento dessas declarações requer não apenas habilidades especiais, mas também anos e décadas de estudo aprofundado da matéria. Os processos de controle genético, a cromodinâmica quântica, a teoria relativística da gravidade, o significado do Paradoxo Einstein-Podolsky-Rosen (1935) ou a compreensão correta das equações de Schrödinger serão livros selados para a grande maioria das pessoas, de forma intransponível.

Além disso, quase todos os problemas significativos envolvem diferentes áreas de conhecimento simultaneamente, para as quais não existem mais especialistas como um conjunto. Responder à pergunta sobre o sentido da energia nuclear requer, pelo menos, especialização em física, engenharia, geologia, meteorologia, biologia, medicina, economia, política e psicologia, que ninguém possui ao mesmo tempo, de modo que não pode haver expertise sobre essa questão.3

V

O empreendimento científico moderno se tornou tão esotérico quanto uma sociedade secreta mística, o ideal exotérico afundou, mas não a reivindicação de liderar a humanidade. Sua eficiência, afinal, ninguém pode negar - os aviões voam, os carros andam, a televisão funciona, sem mencionar a internet. No entanto, uma vez que em áreas essenciais as evidências científicas são inexistentes ou intransmissíveis, é necessário recorrer a meios não científicos de influência, incluindo sugestões (outro meio é a coerção política por meio do poder econômico e/ou dominação do aparato legislativo, mas não vou entrar nesse assunto agora).

Permita-me mencionar alguns exemplos de diferentes impactos e comecemos pelos truques menores. Todos vocês estão familiarizados com o termo "resultado significativo" ou "resultado altamente significativo" da estatística inferencial. Aqui, você está sendo enganado terminologicamente e, na verdade, duplamente: não há estatística inferencial que diga algo sobre a probabilidade das hipóteses investigadas com base em amostras. "H0 é rejeitada no nível de 1%" não significa que H0 esteja correta com p=0,99. Parâmetros populacionais (pelo menos nos modelos praticamente sempre utilizados de R.A. Fisher ou Neyman e Pearson) não podem ser atribuídos a probabilidades: eles são o que são, têm um valor definitivo. A desinformação é especialmente flagrante quando se trata de declarações sobre os resultados de estimativas de intervalo. "A média está entre x e y com uma probabilidade de 95%" é absurdo, pois a média tem um valor fixo e ou está entre x e y ou não está. (A declaração correta seria: quando aplico este procedimento de estimativa, estou correto em 95% dos casos e errado em 5%). A direção desse engano terminológico é o segundo fator, o reforço da competência percebida do emissor de uma sugestão.

Os termos "significante" ou "altamente significante" também são enganosos. Em seu sentido literal, eles significam "estabelecendo um sinal" no sentido de importante ou relevante, mas, como sabemos, embora nós saibamos, mas não os jornalistas científicos, um resultado estatisticamente altamente significante pode ser praticamente irrelevante. Em tais contextos, também seria necessário informar sobre a magnitude do efeito, mas até mesmo essa expressão sugere algo, ou seja, que um efeito está presente, quando na verdade se trata apenas de uma medida padronizada de diferença, que não indica se essa diferença realmente representa um efeito de algo. O discurso sobre a significância ilude a relevância (primeiro fator), e o termo "magnitude do efeito" sugere a existência de uma prova, que não é fornecida apenas por isso (sexto fator).

É bastante divertido o uso da palavra "compliance". A promoção da compliance é uma área importante de pesquisa sobre comportamento de risco. Compliance significa, em português, "obediência incondicional e acrítica às instruções médicas", mas é claro que não podemos chamá-la assim. Ao usar o termo "compliance", primeiro se mostra competência (porque se sabe inglês - segundo fator) e, segundo, evita-se a reatividade (quarto fator), pois isso obscurece as verdadeiras intenções. Os acessos de raiva do lobby médico quando o livro "Bittere Pillen" foi lançado não são surpreendentes, o paciente deveria apenas ler jornal, mas lá ele infelizmente lê que em uma clínica renomada foi amputada a perna errada de um paciente. So it goes (eu também sei inglês).

Agora, em um nível mais avançado, um exemplo de tática de obscuridade mais sutil e perigosa. Aqui, trata-se do uso moderno do termo "informação" como um termo técnico científico (ainda há o significado cotidiano e o significado na filosofia medieval). O que estão tentando nos fazer acreditar é o seguinte: o cérebro é um mecanismo de processamento de informações, o computador é um mecanismo de processamento de informações, então o cérebro é um computador (claro, não um velho computador sequencial, mas uma máquina conneccionista moderna), o que terá e já tem, em parte, a consequência de que cérebros desnecessários podem ser usados como estoque de peças de reposição para cérebros de alto desempenho.

O truque do ilusionista consiste em identificar o conceito teórico da informação - como usado na computação - com o conceito cotidiano da informação. Este último significa que uma pessoa comunica algo a outra, ou seja, que uma determinada situação existe. É possível executar o truque da seguinte maneira: transferir boas reproduções de duas imagens escaneando-as em um arquivo binário. Vamos supor, por exemplo, "Quadrado branco em campo branco" de Malevich e "O Juízo Final" de Michelangelo. Diz-se que a primeira imagem contém menos informação do que a segunda. Isso pode ser demonstrado: se aplicarmos um algoritmo de compressão a ambos os arquivos, percebe-se que o primeiro se torna muito menor do que o segundo. Digamos, medido em unidades de quantidade de informação, que a pintura de Michelangelo contém dez vezes mais bits do que a de Malevich. Até aí tudo bem. No entanto, isso não se deve ao fato de Michelangelo contar uma história grandiosa e Malevich dizer pouco. Na teoria da informação, a maior quantidade de informação seria encontrada em uma imagem composta apenas por pontos aleatórios, como um tubo de televisão piscando após o término do programa, mas, em termos de comunicação, ela teria a menor quantidade, ou seja, nenhuma. "Processamento de informação" soa como "processamento de madeira", mas enquanto a madeira é uma substância natural, a informação é um conceito convencional, parte de uma regra de jogo arbitrariamente estabelecida, e onde essas regras de jogo como produto mental não existem, não há informação, apenas física e química, assim como no resto do mundo. O computador não processa informação, é o ser humano que o faz, ocasionalmente com a ajuda de um computador. Isso não é a mesma coisa, mas para justificar o acesso ao cérebro humano, dirão (e já dizem) que não há diferença fundamental nisso.

Esse tipo de estratégia sugestiva tem duas direções: em primeiro lugar, reforça a impressão de competência própria, ao fazer declarações "científicas" e apresentar "provas"; em segundo lugar, mantém o receptor em estado de ignorância, pois as afirmações são enganosas e não são apoiadas pelas provas apresentadas.

A maior força sugestiva vem dos termos ciência e científico em si, comparáveis apenas ao já passado "vontade de Deus". Estamos testemunhando um processo fascinante de desrealização da realidade. Veja como funciona: existem fatos científicos. O que não é um fato científico é anti-científico, portanto não é um fato, portanto não existe. Os fatos científicos são descobertos por meio da pesquisa. O que pode ser visto, ouvido, cheirado, saboreado e sentido diretamente não é descoberto por meio da pesquisa, portanto não é um fato científico, portanto não é real. A dor (que é percebida) é na verdade um estado cerebral (que não é percebido), um quarteto de cordas é um padrão de excitação neural, um sorriso não é importante (a menos que faça parte de uma população estatisticamente mensurável de sorrisos), o salto quântico é mensurável cientificamente, a observação do mesmo não é. Em geral, os (invisíveis) partículas elementares e as (invisíveis) leis que as governam são reais, mas o pudim na geladeira e a dor de dente não são reais. E para Sigmund Freud, o inconsciente era a realidade, a consciência e seu conteúdo eram insignificantes - a fenomenologia não tem mais chance.

Além da denunciação ontológica do que é de interesse imediato para os seres humanos, a ideologia científica também fornece as bases para a pretensão de dominação expertocrática, ou seja, a justificação do que se faz e exige dos outros através do que é cientificamente comprovado. Apenas os especialistas podem avaliar o que foi cientificamente comprovado. O princípio expertocrático substitui o exotérico, pois a trajetória e a validade da prova científica não são mais compreensíveis pela razão privada (Rehfus) ou pelo senso comum (Bahrdt).

Vejamos o conhecido livro de Klaus Grawe e suas colaboradoras, onde se constata, por meio de meta-análises, quais formas de terapia são eficazes e quais não são. Já no título encontramos uma energia sugestiva concentrada: "Psicoterapia em Transformação" significa: este é um trabalho revolucionário, uma nova era está surgindo e nós somos seus profetas. O subtítulo "Da confissão à profissão" também não é ruim. A confissão é registrada no imposto de renda e também significa confissão, portanto tem algo a ver com religião, ou seja, com superstição. Profissão está relacionado a professor, o ápice provisório da evolução, e com profissional, ou seja, rápido, habilidoso e pelo dinheiro (não precisa ser pago antecipadamente em todos os lugares). Bem, praticamente todas as formas de terapia discutidas ali têm décadas de existência, e confissão e profissão significam exatamente a mesma coisa em latim (ou seja, confissão). E assim segue.

Um livro que envolveu cerca de uma dúzia de pessoas trabalhando por cerca de uma dúzia de anos, com um orçamento de alguns milhões, apoiado em centenas de outros relatórios de pesquisa de centenas de outras pessoas, com orçamentos ainda maiores. Para criticar isso cientificamente, a psicoterapeuta em prática privada teria que repetir todo o processo. No entanto, por várias razões, ela não pode fazer isso.

Então, o que fazer se alguém quiser continuar praticando, digamos, a logoterapia, uma forma de terapia à qual Grawe et al. negam até mesmo os critérios mínimos de cientificidade? Ou, de forma mais geral, o que pode ser feito se alguém não quiser se curvar a um argumento expertocrático? Uma abordagem óbvia seria produzir uma contraprova. No entanto, isso é possível apenas para um pequeno círculo de pessoas e resultaria apenas em uma contraprova em relação a uma prova já existente (veja a discussão sobre os efeitos da moeda única europeia ou a liberação dos horários de funcionamento das lojas). No entanto, a razão privada não pode lidar adequadamente com nenhum dos lados. Outra opção é fortalecer o impacto moral da própria posição, ou seja, argumentar moralmente contra os especialistas, e não cientificamente. As campanhas contra usinas nucleares, o afundamento de plataformas de petróleo, o posicionamento de mísseis de médio alcance, contra a decisão da corte constitucional sobre crucifixos, etc., são campanhas morais. Isso pode ser eficaz, como já vimos, mas por si só não é suficiente. Do ponto de vista científico, continua sendo questionável, e até mesmo o especialista pode argumentar moralmente: as usinas nucleares reduzem o teor de CO2 na atmosfera, a produção de carros garante a prosperidade e a mobilidade, o transplante de tecido cerebral fetal ajuda pacientes com Parkinson, a decisão sobre crucifixos significa proteção das minorias em uma sociedade pluralista (afinal, não estamos mais na Idade Média) e alimentos geneticamente modificados aliviam a fome no terceiro mundo.

Receio que a razão privada não consiga resistir à expertocracia a longo prazo, e que seja necessária uma estratégia completamente diferente. Devemos nos perguntar por que a razão privada deveria resistir à expertocracia. A resposta é a seguinte: um sistema expertocrático, assim como qualquer sistema de poder, é inevitavelmente corrupto. Apesar da integridade moral de muitos especialistas, o sistema em si não tem os interesses dos outros em mente, mas principalmente os próprios (por isso os próprios advogados e contadores são tão perigosos). Se confiarmos apenas na razão privada, muitas vezes acabaremos nos dando mal, mas se nos entregarmos totalmente aos especialistas, não teremos a menor chance. Devemos utilizar os especialistas, mas não devemos nos deixar dominar por eles. Portanto, se alguém disser: "Faça isso e aquilo, porque sou o especialista e entendo do assunto", e se você tiver bons motivos para não fazer isso e aquilo, a melhor resposta seria: "Certamente, você é o especialista, e é exatamente por isso que não confio plenamente em você".


Notas de rodapé:

1. Do método correto de uso da razão e da pesquisa científica (1637). Citado por R. Descartes, Escritos Filosóficos, Hamburgo: Felix Meiner, 1996, p. 33.

2. Ver Wulff D. Rehfus (1990) A razão devora seus próprios filhos. Hamburgo: Hoffman und Campe.

3. Ver Hans Paul Bahrdt (1988). O cidadão e seus especialistas. In: O Aqueduto. Munique: C.H. Beck, pp. 555-565.

4. Ver Theodore Roszak (1994). The cult of information (2ª ed.), Berkeley: University of California Press.

5. 1918, Nova York, Museu de Arte Moderna.

6. O "deus lo volt" ("Deus o quer") do século XI é equivalente ao "está cientificamente comprovado" do século XX. Ambos são simplesmente irresistíveis.

7. Para compreender isso, veja, por exemplo, Pfarr, J. (1980). Para a interpretação científica da "Interpretação de Muitos Mundos" da teoria quântica. In: Mittelstaedt, P. & Pfarr, J. Fundamentos da teoria quântica. Mannheim: Bibliogr.Inst., pp. 111-126.

8. Grawe, K., Donati, R., Bernauer, F. (1994). Psicoterapia em Transformação - Da Confissão à Profissão. Göttingen: Hogrefe.

9. Grawe et al. ibid., p. 735. A lista negra inclui cerca de trinta outras formas de terapia. No entanto, as autoras cometeram um pequeno equívoco lógico: a falta de prova de eficácia não é uma prova de falta de eficácia. Toda terapia começou como não comprovada em algum momento.

10. Ver Rehfus, W.D., ibid., pp. 96-97.

11. Ver Bahrdt, P. ibid., pp. 559-560.


Apresentação realizada no 2º Congresso Europeu de Hipnose e Psicoterapia de acordo com Milton H. Erickson em Munique (outubro de 1995).


domingo, 25 de junho de 2023

As promessas de desempenho da dopamina

Opinião sobre a comercialização de conteúdo sobre desempenho e dopamina

A suposta manipulação da produção de dopamina é muito utilizada comercialmente como a fonte do alto desempenho. A dopamina é produzida quando uma atividade que supera as expectativas de previsão do cérebro ativa o sistema de recompensa no nível cerebral e no nível do comportamento produz reforço positivo. A restrição à linguagem neurobiológica obscurece o tratamento do tema. Muito se fala na internet que a dificuldade para ter alto desempenho surge do excesso de dopamina e que seria preciso fazer jejum de dopamina ou fazer atividades não tão prazerosas para alterar a produção de dopamina para um nível mais saudável. O nível comportamental esclarece e torna mais intuitivo: evitar dopamina demais pode deprimir pois a pessoa terá baixa densidade de reforçadores na vida e iniciar o "hábito" de fazer atividades não prazerosas na verdade é fortalecer classes de comportamentos de autocontrole/autogerenciamento e classes de comportamentos que tenham persistência através do reforço intermitente (intercalado). Uma classe fortalecida aumenta o comportamentos que pertencem a essa classe. Isso é válido para todo tipo de classe de comportamento. Supostamente a pessoa estaria alterando seu cérebro para um cérebro capaz de fazer atividades difíceis. O uso da linguagem no nível comportamental permitiria estabelecer os comportamentos requisitos e desejados. Outro aspecto é que uma vez que a pessoa obtém consequências naturais reforçadoras de sua atividade o comportamento se torna muito forte e persistente. Mais ainda que pela intermitência (intercalação) gradual e progressiva das consequências. Então uma pessoa que tem dificuldades com certas atividade pode simplesmente não gostar da atividade e se escolhesse uma atividade de que gostasse (se obter consequências reforçadoras, ter um histórico de reforço ou ter importância para suas privações e aversivos) naturalmente estaria motivada. A dificuldade de fazer o que não gosta é questão de comportamentos de autocontrole que consiste em manejar o ambiente para evitar atividades concorrentes e aumentar a probabilidade de comportamentos produtivos e desejados no futuro. As consequências são atrasadas, improváveis e incertas e isso torna difícil a motivação. Por meio de descrições claras das consequências futuras, repertório adquirido para as atividades e um bom planejamento que realmente possibilite obter as consequências no futuro, os comportamentos produtivos e desejados se fortaleceriam. Logo, é mais complexo do que simplesmente utilizar a linguagem neurobiológica para manipular o cérebro e supostamente reduzir o excesso de dopamina no cérebro. Outros processos comportamentais ainda poderiam estar envolvidos num olhar holístico para as condições de vida da pessoa e suas necessidades de aprendizagem de repertório.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Bipolaridade e criatividade

 Palestra: criatividade e bipolaridade na BrainTV. Evento na medicina da USP.

Reflexões:
  1. Alguns artistas são bipolares ou alguns bipolares tem perfil de artista?
  2. Criatividade envolve certo risco de a proposta não dar certo.
  3. Depressão é baixa densidade de reforço positivo.
  4. Bipolares tem personalidade de pessoa aberta e estão sendo depreciadas socialmente como patológicas? Não haveria no constructo de bipolaridade afirmações sobre a "saúde" de ser regrado?
  5. Projetos criativos podem ser empolgantes.
  6. Criatividade envolve certa subversão e disrupção.
  7. Não estaria o discurso psiquiátrico afirmando implicitamente valores conservadores sobre como as pessoas devem ser?
  8. Tem alguma coisa para a psiquiatria que não é doença progressiva?
  9. É difícil se sustentar como artista pois cada nova criação tem o risco de não ser aceita no mercado. Isso seria potencialmente deprimente.
  10. Não há nada que garanta que um produto criativo seja valorizado socialmente. A não ser que você esteja seguindo demandas de consumo.
  11. Vida de artista é saudável para a medicina? É isso que resulta em prejuízo funcional e comorbidades clínicas?

Como ficar rico com psicologia

Para ganhar dinheiro com psicologia é favorável usar a força popular que as perspectivas já tem. Indo a favor da maré, o psicólogo(a) facilmente convence as pessoas sobre a pertinência das explicações e intervenções. Uma das formas de fazer isso é usar as campanhas multimilionárias da indústria farmacêutica para descrever as questões de saúde/doença conforme características que induzam a busca, aceitação e consumo de certos tipo de intervenção. A psiquiatria tradicional, psicofarmacologia, neurociência, psicologia cognitiva e psicologia baseada em evidências fazem parte desse mesmo processo. Suas explicações são de simples assimilação e não implicam em questionamentos críticos de sistemas sociais. São áreas estabelecidas como mainstream da ciência, o que a grande maioria das pessoas entende como o melhor que existe.

Outro aspecto para ficar rico com psicologia é a atitude industrial e empresarial. A escala permite aumentar a quantidade de produtos vendidos. Se os produtos forem pacotes simples e replicaveis, são mais compatíveis com a atitude industrial. As perspectivas mencionadas antes tem essa característica industrial.

O aspecto de ir a favor das correntes majoritárias permite cobrar mais devido à maior procura/demanda que há para o tipo de profissional. Essa maior procura incentiva a maior oferta de serviços de um tipo, aumentando também a divulgação de mais informações sobre esses serviços na mídia.

Outro aspecto é o poder aquisitivo do público contratante. O psicólogo(a) que trabalha para as pessoas que tem condições de pagar consegue ser contratado mais facilmente.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Englobamento: ciências biológicas e humanas/sociais

O fundador da psicologia Wundt pensou a relação entre o biológico e o social. Para Wundt, tanto a fisiologia e a pesquisa experimental como o social faziam parte da psicologia. Ele propôs uma atitude muito comum entre as ciências humanas e sociais que é o englobamento do biológico pelo social. Áreas biológicas como a psiquiatria propõem o englobamento do social pelo biológico que é considerado explicação mais fundamental e ontológica a partir de nível inferior (reducionismo ontológico). A disputa política entre ciências naturais e ciências humanas e sociais na área de saúde mental e saúde está relacionada à mesma problemática. Atualmente as duas perspectivas de ciências costumam desqualificar umas às outras, possivelmente pela formação tradicional envolver apenas uma área. A discussão tem mais nuances. As duas perspectivas de ciências são potencialmente ótimas se bem formuladas. A disputa em torno da medicalização e da reforma psiquiátrica reproduz a mesma problemática. Levantar essas questões fundamentais seria um caminho para redirecionar o debate. A sociedade quando é inculcada pelo discurso psiquiátrico e de neurociência aplica esse englobamento do social pelo biológico quase sem pensar. A medicina e as biológicas tem certo ar de superioridade sobre o rigor científico de sua perspectiva. O pessoal da saúde com preferências pelas humanas e sociais tende a desqualificar o fisiológico e experimental como um positivismo. O pessoal da saúde com preferência pelas sociais tem certa dificuldade de se tornar popular. O discurso do englobamento do social pelo biológico consegue transmitir a ideia de ser "caixa-preta", isso é, fenômeno indiscutível. Uma resposta seria de que é possível criar, a partir de métodos científicos de qualidade duvidosa, artefatos, isto é, produzir eventos que são criações dos métodos ao invés de descobertas de fenômenos da natureza.


Referência:

O espírito e a pulsão: o dilema físico-moral nas teorias de pessoa e da cultura de W. Wundt - Luiz Fernando D. Duarte e Ana Teresa A. Venancio

Testando o modelo de crise redefinido

Testando o modelo de crise redefinido

Repertório do indivíduo: processo de interação com o ambiente histórico e atual. Filogenia, ontogenia e sociogenia. Apenas um dos fatores é biológico e genético: filogenia. 

Repertório do círculo social: ambiente de desenvolvimento e manutenção de repertório comportamental (histórico e atual).

Ambiente técnico: conceitos aprendidos ou não aprendidos pelo usuário/paciente que se reflete em seu repertório atual, o histórico de prática de profissionais eficazes e insuficientes que se reflete no repertório atual, o histórico de práticas e percepções dos familiares e sociedade.

Sociedade: relação da sociedade com pessoas com certas características e comportamentos

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Ansiedade: fatores de risco

Estudo 1

Prevalência de ansiedade e fatores associados em adultos


Camilla Oleiro da Costa

Jerônimo Costa Branco

Igor Soares Vieira

Luciano Dias de Mattos Souza

Ricardo Azevedo da Silva


As variáveis sexo, anos de estudo, renda, doenças crônicas, tabagismo e abuso de álcool foram associadas a mais de três transtornos de ansiedade investigados.

Tinham relação com o grupo social em que estavam inseridos os indivíduos estudados, a pouco apoio social e a dificuldades de adaptação ao meio, ou ainda à existência de problemas no trabalho ou ambiente educacional, com a experimentação de situações de desaprovação e rechaço 11 

Por fim, problemas econômicos também podem estar relacionados à alta prevalência desses quadros, em virtude da dificuldade de cumprir com a responsabilidade de efetuar pagamentos, comprar bens necessários e manter hábitos.

Outra possível justificativa pode estar relacionada à exposição à violência que a mulher vem enfrentando cotidianamente, o que pode deixá-la em constante sensação de medo, angústia e ansiedade14. 

Causa prejuízo funcional na vida dos indivíduos e consequências graves, como a dificuldade de arranjar emprego, a de conviver em grupos e de participar de atividades de lazer.

A raça/cor da pele pode interferir nas oportunidades educacionais, financeiras e sociais, influenciando a posição socioeconômica no contexto atual de quem vive no Brasil. E as características socioeconômicas apresentam maior relação com os transtornos de ansiedade do que a própria raça do indivíduo15.

O Brasil, onde o transtorno de ansiedade está presente em 9,3% da população geral, se destaca, possuindo o maior número de casos de ansiedade entre todos os países do mundo16.

Os participantes da pesquisa apresentam uma idade mais vulnerável para a ansiedade, por estarem em busca do engajamento no mercado de trabalho, reconhecimento profissional e, muitas vezes, passando pela experiência da maternidade e formação de família, visto que essa amostra está compreendida entre 18 e 35 anos de idade. 

*Quando analisados, estudos com crianças e adolescentes mostram que a prevalência de ansiedade na vida adulta pode ser um reflexo originado desde a infância e juventude.

O grupo com menos anos de estudo foi o que apresentou maior prevalência de transtornos de ansiedade (p < 0,001). Os anos de estudo também apresentaram relação com a prevalência dos quadros individuais de transtornos de ansiedade (exceto para o transtorno de pânico, que não teve relação estatisticamente significativa). Quanto menos anos de estudo, maior a prevalência de TAG, fobia social, TOC, TEPT e agorafobia. Na literatura, é encontrada relação da maior prevalência de transtornos de ansiedade e menor escolaridade19, e uma das hipóteses para esse achado pode estar relacionada às dificuldades que os jovens enfrentam no ambiente escolar e acadêmico, como as preocupações com o desempenho ou déficits de aprendizagem, e os transtornos de ansiedade podem limitar os indivíduos na tentativa de atingirem maior rendimento escolar11. A baixa escolaridade ainda pode estar relacionada a menor renda e piores oportunidades de trabalho. Dado semelhante ao do presente estudo foi encontrado por Souza20 e Torres et al.21, que associaram a renda mais baixa à presença de TAG20 e TOC21. A exposição a condições socioeconômicas mais desfavorecidas e fatores relacionados (violência, dificuldade de acesso aos serviços de saúde, desemprego, má distribuição econômica, entre outros) pode ser potencializadora dos quadros de ansiedade, facilitando tanto o surgimento como o agravo daqueles já existentes.

A presença de doenças crônicas (de diferentes ordens), a iminência de agravos e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde podem ser geradoras de ansiedade. Esse estudo encontrou essa associação, ou seja, o grupo que relatou ter alguma doença crônica apresentou maior prevalência de ansiedade (p < 0,001). E quando os transtornos foram avaliados individualmente, o grupo com doenças crônicas apresentou maior prevalência em todos os quadros. 

O presente estudo identificou que os indivíduos do sexo feminino, com menos anos de estudo, baixo nível socioeconômico, histórico de doenças crônicas, usuários de tabaco e abusadores de álcool foram os que apresentaram maior probabilidade de apresentar transtornos de ansiedade.

estudo 2

Epidemiologia dos transtornos de ansiedade em regiões do Brasil: uma revisão de literatura

Vitor Iglesias Mangolini 1, Laura Helena Andrade 2, Yuan-Pang Wang 3

O Estudo São Paulo Megacity estimou que somente  23% dos indivíduos diagnosticados com algum tipo de transtornos de ansiedade obtiveram acesso a algum tipo de serviços17. Entre os indivíduos que buscaram por serviços em São Paulo, apenas uma reduzida parcela obteve cuidados em serviços especializados (médicos psiquiatras, psicólogos ou enfermeiras especialistas em saúde mental). Além disso, a proporção de pacientes que utilizaram formas de terapia complementar ou alternativa (grupos de autoajuda, conselheiros religiosos e outros tipos de curandeiros) também foi limitada. Ainda que dados comparativos inexistem, esta taxa de uso de serviços deve ser considerada superior a outras regiões brasileiras17.

A elevada prevalência da ansiedade encontrada no Brasil está em compasso com os dados relativos a outros países. Os transtornos de ansiedade são as condições psiquiátricas mais frequentes no globo1. Tanto a América Latina como o Brasil apresentam taxas de prevalência de ansiedade maiores do que a média global, sendo que o Brasil está situado na 4a. posição entre os países em que a ansiedade apresenta as maiores taxas ao redor do mundo1

.Esse grupo de transtornos mentais apresenta início precoce e persiste ao longo do tempo6,12, atingido um pico durante a vida adulta na 4a.e 5a. década e tendendo a reduzir nos idosos após a 6a. década.

Em relação aos fatores determinantes da ansiedade no Brasil, muitos deles estão de acordo com os estudos em outros países. Alguns fatores usuais foram confirmados por trabalhos com metodologia semelhante à utilizada no Brasil são: idade, sexo, etnia, status socioeconômico familiar, tipo de composição familiar e ter crescido em grandes centros urbanos20.

Em termos de saúde pública, os trabalhos brasileiros indicaram uma associação entre a ansiedade e custos sociais, decorrentes de tratamento e dias perdidos de trabalho. Essas observações estão de acordo com estimativas de outros países, sendo estimado que a ansiedade seja a 2a.principal causa de incapacitação entre os transtornos psiquiátricos1. Na comparação com outros países, o Brasil ocupa a 3a.posição entre os países no mundo com as maiores cargas de incapacitação1.

Assim como no Brasil, em outros países também foram observadas reduzidas taxas de usos de serviços para tratamento da ansiedade e sem adequação clínica21.

Todavia, em países de alta renda, que apresentam serviços de saúde mais estruturados em comparação ao sistema brasileiro, as taxas de uso de serviços nos EUA22 foram quase duas vezes maior que o nosso meio. Assim como no Brasil, o transtorno do pânico também foi o quadro mais frequente nos serviços especializados de outros países, sendo associado a maiores custos para cuidado4. Estes resultados sugerem a necessidade de melhorar o diagnóstico dos transtornos de ansiedade, bem como ampliar o acesso aos tratamentos oferecidos.

Políticas públicas devem otimizar a alocação de recursos de saúde, para facilitar acesso da população ao tratamento dos transtornos de ansiedade. Somente assim, os custos sociais e dias perdidos de trabalho associados à ansiedade podem ser reduzidos juntamente com a sua carga social. Campanhas de conscientização na comunidade devem ser intensificadas para aumentar a identificação dos transtornos de ansiedade, motivando os portadores de ansiedade a buscar cuidados adequados.

Depressão: Fatores de risco e proteção

Fatores de risco e proteção para sintomatologia depressiva e comportamento suicida em população geral

[Epidemiologia]

Giovanna Vallim Jorgetto

João Fernando Marcolan

Jorgetto GV, Marcolan, JF. Risk and protective factors for depressive symptoms and suicidal behavior in the general population. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 3):e20201269. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-1269

No que tange aos fatores de risco para a sintomatologia depressiva, emergiram, nos discursos, problemas em sua maior parte relacionados à dificuldade quanto aos vínculos e relacionamentos na família, agravados pelo uso de álcool e outras drogas e desemprego; tristeza e solidão relativas a questões sobre a ausência física de pessoas significativas e decepção concernente à relação afetiva; perdas reais e antecipatórias, sendo verbalizadas morte de pessoas significativas; retroalimentação dos sintomas depressivos; inabilidade para vivenciar frustrações ao longo da vida; e problemas com a espiritualidade.

No que se refere à solidão, constata-se que os discursos estiveram relacionados à incapacidade de viver só, atrelada a sentimento de culpa, prejuízo na interação social, ter família e não ter contato próximo com familiares, acentuado pela depressão instalada. 

Emergiram dos discursos problemas nas relações familiares quanto ao uso de drogas por familiares próximos, separação e  frustração de expectativas nos relacionamentos afetivos, problemas dos filhos e de relacionamentos com eles e problemas de saúde dos familiares.

No conteúdo das falas abaixo, se destacam as perdas reais e antecipatórias ocasionadas pela morte (morte do filho, morte do marido por câncer, suicídio do pai, morte violenta do irmão, assassinato do ex-marido, medo de perder um ente querido). 

Questões relacionadas ao desemprego ou a dificuldades financeiras ou a ambos emergiram relacionados ao sofrimento psíquico, evidenciando-se preocupação com o sustento da família, contas atrasadas e privação de contato com filhos devido a dificuldades financeiras.

Houve também discursos que revelaram a falta de habilidade para vivenciar frustrações ao longo da vida.

Se as coisas não saem como eu quero, fico muito mal. Aí me deprimo. (E44)

Quando quero as coisas e não consigo. Quando quero ter alguma e também não consigo, me sinto mal. (E49)

O que me deixa depressiva é quando não consigo ter as coisasque quero e resolver meus problemas. (E70)

Quanto à percepção dos participantes sobre os fatores de proteção para a sintomatologia depressiva, emergiram relatos referentes sobretudo à importância dos vínculos e relacionamentos familiares e afetivos saudáveis, contato social e exercício da fé. As falas relacionadas à família e relacionamentos afetivos como fatores de proteção expuseram a necessidade de convívio harmonioso entre os membros da família, filhos presentes no convívio diário, relacionamento prazeroso com o parceiro, estabilidade familiar e conseguir prover sustento da família.

A necessidade de estabelecer contato com outras pessoas é um dos mais fortes e constantes impulsos humanos, atrelados a sentimentos de inclusão, controle e afeição. Essa interação social com outros seres humanos é de extrema importância para a pessoa se desenvolver e sobreviver de forma psiquicamente saudável, uma vez que gera nela o sentimento de pertencimento(1,3). 

No que tange à relação entre a rejeição e depressão, o sentimento de  rejeição ou o medo de ser rejeitado é uma das experiências mais fortes  e dolorosas que as pessoas enfrentam durante sua vida e tem o poder de comprometer a qualidade de vida(1,9).

Ressaltamos também que, pelas escalas, tivemos um terço dos participantes acima de 61 anos com sintomas depressivos, e mais da metade deles referiu doenças pré-existentes, tais como diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e cardiopatia, experiências traumáticas repetitivas, estados de estresse crônicos (emocionais ou físicos ou ambos), perdas emocionais, perdas materiais, rejeição emocional, relacionamentos entre pais e filhos ou entre cônjuges com dinâmica disruptiva, desemprego, isolamento social, entre outros. Tudo isso é compatível com a literatura sobre a relação entre envelhecimento e rejeição, visto que, na atualidade, o envelhecimento associa-se a doenças e perdas, relacionando-se à deterioração do corpo, ao declínio e à incapacidade, o que gera a base da rejeição ou da exaltação acrítica da velhice, pela representação da morte, doença, afastamento e dependência(1-2,10). 

Sobre a questão da percepção de sintomas depressivos atrelada a problemas nos relacionamentos familiares, o convívio do participante com familiares usuários de álcool e drogas é desgastante, servindo de gatilho para quadros depressivos(13).

Conflitos conjugais, relações conflituosas, falta de apoio do companheiro e insatisfação conjugal apresentam também relação importante com altos índices de depressão e, por consequência, comportamento suicida(14).

Quanto às perdas afetivas, estas são eventos traumáticos vivenciados pelos participantes ao longo da vida e que necessitam de tempo para serem elaborados, porém existem situações em que elas se tornam mais traumáticas a quem as vivencia, a exemplo de morte de familiares por suicídio e assassinatos, que acabam por acentuar a intensidade do trauma e do sofrimento psíquico(14-15). As perdas afetivas relacionadas à morte de familiares por suicídio desencadeiam no ente enlutado sentimento de culpa e questionamentos internos, sem respostas lógicas, e o forte estigma social com muita frequência domina o imaginário de pessoas próximas ao suicida, levando a intenso sofrimento psíquico(15). 

No tocante à percepção de que o desemprego desencadeia depressão, essa relação é bem estabelecida na literatura, em que se constata relação de forma causal do desemprego prolongado,  perda de status econômico e social, extrema pobreza e insegurança alimentar com estados depressivos crônicos bem como crises de depressão grave e comportamento suicida(13). Em nosso estudo, vimos nos participantes, de modo significativo, o desemprego associado a baixa renda familiar (entre dois e cinco salários mínimos). Estudo realizado evidenciou que pessoas com renda inferior a três salários mínimos mensais ou desempregadas  apresentaram cerca de 70% maior ocorrência de depressão comparativamente àqueles de maior renda(16). Ressaltamos que a maioria dos participantes com sintomatologia depressiva detectada pelas escalas psicométricas referiu estar sem renda ou com esta de até dois salários mínimos. 

Relativamente à percepção dos participantes acerca dos fatores de proteção para sintomatologia depressiva e comportamento suicida, a família surgiu como matriz da experiência social e escola de formação de vínculos afetivos que ocupa na psique dos participantes deste bloco o cerne do qual o significado existencial emana e o bem-estar emocional depende(18). Estudos apontam que indivíduos com melhor suporte social ou familiar estariam menos predispostos a apresentar sofrimento ou transtornos mentais quando submetidos a eventos estressantes(3,18-19); autores afirmam que famílias nas quais há estímulo para conversas sobre os problemas de seus membros e mais abertas a mudanças de opinião apresentam aspectos mais protetivos em relação à ocorrência de depressão e, por sua vez, do suicídio(18). Isso, porque tais famílias atendem aos pré-requisitos de possuir alguém confiável para conversar sobre as dificuldades diárias e seus sentimentos, permitindo a eles acolhimento e crescimento pessoal(19). 

Houve relatos consensuais dos participantes acerca da relação entre sintomatologia depressiva e comportamento suicida.

Estudos evidenciam que a dificuldade de percepção adequada diante das causas da depressão e a falta de recursos internos emocionais para lidar com situações estressantes e difíceis são características de indivíduos depressivos e pioram conforme a intensidade do quadro, a gerar alteração da autocrítica e piora da sensação de sofrimento psíquico(1-2,6). Como esses indivíduos retardam a busca por atendimento, então apresentam piora do quadro, com aumento considerável das chances de surgimento do comportamento suicida(6). 

Com relação à morte ser verbalizada como solução ante o intenso sofrimento psíquico desencadeado pelos sintomas vivenciados, deve-se destacar que tal perspectiva de morte surge nos quadros moderados e graves da depressão(3). Entre os sentimentos característicos da depressão grave, temos o sentimento de impotência perante a vida e de que não há saída para a agonia psíquica sofrida, e isso é um gatilho para o  comportamento suicida(1-3).

Quanto à relação entre desesperança e comportamento suicida, esta é compreendida como um importante fator de risco(1), pois configura-se por pensamentos autoderrotistas e uma visão pessimista e negativa diante do futuro, estando interligada à depressão(18). 

O que observamos nos participantes de nosso estudo é o intenso efeito que a ausência de significado ou propósito de vida causa, com seu impacto corrosivo sobre o estado emocional, cognitivo e comportamental, a corroborar um estudo(20). Por outro lado, é bem conhecida a associação entre transtornos de ansiedade e depressão(1-3): pesquisas têm apontado que, em média, 70% dos indivíduos com depressão sofrem concomitantemente de ansiedade e cerca de 80% dos que têm ansiedade apresentam quadro associado à depressão(16,20), uma vez que formam um circuito de retroalimentação entre ansiedade e depressão, servindo de gatilho à desesperança e desejo de morrer. 

O que justifica usar uma técnica terapêutica?

Traduzido do alemão

O que justifica o uso de uma técnica psicoterapêutica?

Christoph Kraiker

Resumo: É defendida a tese de que o uso de uma técnica psicoterapêutica é justificado pela aceitação informada por parte do paciente. Primeiro, é explicado por que os resultados da pesquisa empírica em terapia não são suficientes para essa justificativa; em seguida, alguns princípios são formulados aos quais os terapeutas devem aderir para possibilitar essa aceitação informada.

I

Neste estudo, gostaria de fundamentar a seguinte tese: o uso de uma técnica psicoterapêutica em um caso específico (com uma pessoa específica) é justificado pela aceitação informada por parte dessa pessoa.

Isso parece contradizer as demandas que fundamentam a pesquisa empírica sobre efetividade. Recentemente, Baumann (1996, p. 687) expressou dessa forma: 'Um 'consenso de efetividade' dentro da díade da psicoterapia não é suficiente, uma vez que, para proteger os afetados (pacientes) e no interesse da sociedade (seguradoras, etc.), deve haver a possibilidade de verificação da efetividade por terceiros'.

Isso não implica necessariamente em visões opostas. Especificamente, na opinião defendida aqui, a pesquisa empírica sobre efetividade realizada de acordo com as regras é não apenas sensata, mas essencial para o progresso nessa área. A aparente contradição desaparece quando se percebe que estamos lidando com diferentes contextos de decisão, com diferentes conceitos de justificação e verificação de efetividade.

Vamos começar com a observação de Westmeyer (1984, p. 92) "...que os resultados da pesquisa em terapia geralmente não podem exigir nem proibir medidas terapêuticas específicas e, portanto, um terapeuta não precisa orientar suas ações por tais resultados". Além dos motivos mencionados por Westmeyer, gostaria de chamar a atenção para outros fatos óbvios:

Uma técnica comprovadamente eficaz pode falhar neste paciente ou até mesmo ter efeitos negativos. Na verdade, a taxa de sucesso mesmo das melhores técnicas terapêuticas (por exemplo, treinamento de exposição para diversos transtornos de ansiedade) varia apenas entre 60% e 80%. Ninguém continuará um tratamento sem sucesso ou prejudicial apenas porque existem estudos de grupo de controle com resultados positivos.

Um tratamento cuja eficácia não foi comprovada em estudos de grupo de controle realmente realizados pode ser bem-sucedido neste paciente. Ou seja, uma tentativa fracassada de comprovar sua eficácia é logicamente compatível com o fato de que a terapia pode funcionar neste caso específico. O mesmo se aplica a terapias para as quais ainda não existem estudos de eficácia (que atendam a critérios metodológicos adequados). Não se interromperá um tratamento bem-sucedido apenas porque não há evidências desse tipo.

A partir da pesquisa em terapia, não se pode deduzir, de forma geral, qual é a probabilidade de sucesso em casos individuais e qual será a magnitude desse sucesso. Isso ocorre não apenas porque os estudos de grupo de controle fornecem apenas médias (e os estudos de caso único controlados nem mesmo isso), mas também porque não está claro como interpretar os resultados desses estudos. Permita-me listar os seguintes "campos problemáticos":

Não há uma população para a qual as amostras possam ser consideradas representativas comprovadamente. Portanto, não se sabe em quais populações os resultados podem ser generalizados. Os resultados são proclamados como verdades universais e eternas, mas isso não está justificado.

É impossível controlar a inflação do erro alfa. Isso pode ser feito dentro de uma investigação (embora muitas vezes não seja feito o suficiente), mas não em todas as investigações (publicadas e não publicadas) em geral, pois não se sabe o número de testes de significância realizados ao longo das décadas em todo o mundo.

E mesmo que tudo isso não fosse o caso, um resultado significativo de qualquer tipo não permitiria uma afirmação sobre a probabilidade de a hipótese nula ser verdadeira ou não. A pesquisa quantitativa leva, por meios quantitativos, a um resultado não quantificável. Até mesmo a chamada 'magnitude do efeito' é apenas uma medida padronizada das diferenças médias entre grupos de pacientes (o termo 'amostra' seria um eufemismo mais suave neste contexto). A relevância indutiva da estatística inferencial comum é simplesmente desconhecida, mas podemos afirmar o seguinte: essas investigações demonstram algo, mesmo que isso não se traduza em um grau claro de confirmação de hipóteses. O valor delas reside principalmente no fato de serem realizadas publicamente e serem verificáveis publicamente, corrigindo as muitas oportunidades de engano e autoengano que podem surgir no isolamento.

Também são pressupostos implicitamente alguns mitos platônicos duvidosos.

Vamos começar com o mito da uniformidade (Kiesler, 1966). Isso pressupõe que uma técnica terapêutica estudada é idêntica em suas várias aplicações, para todos os fins práticos. Como todos nós sabemos, isso não é verdade por várias razões. E por que isso é um problema? Porque em sistemas de processamento de informações, o princípio subjacente às equações diferenciais da física clássica 'ex similibus similia' não se aplica. Não podemos simplesmente presumir que coisas semelhantes produzirão coisas semelhantes; pequenas diferenças nas causas podem levar a diferenças enormes nos efeitos. Portanto, não se pode inferir se uma técnica estudada terá o mesmo efeito em outros contextos; isso também precisaria ser investigado separadamente.

Em seguida, temos o mito do sujeito de conhecimento padronizado. Pressupõe-se que o destinatário de 
todas as evidências, confirmações, demonstrações e justificações é sempre o mesmo, e que esses procedimentos sempre funcionam da mesma maneira. Mas isso não pode ser verdade. Se Pedro experimenta uma felicidade infinita, ele sabe que isso existe, mas para os outros isso permanece duvidoso. Também sabemos que, de acordo com os princípios da inferência bayesiana, os mesmos conjuntos de dados podem levar a resultados completamente diferentes com diferentes probabilidades a priori (Putnam, 1981, p.191). Concordamos que os dados são avaliados à luz de hipóteses e teorias existentes; no entanto, isso significa que eles têm significados diferentes para pessoas diferentes. Portanto, as hipóteses geralmente não são extraídas dos dados, mas hipóteses pré-existentes são verificadas pelos dados. Como as hipóteses são frequentemente logicamente complexas, é possível que os dados apoiem tanto a hipótese quanto seu oposto. Por exemplo: um paciente inicia uma psicanálise. Ele piora. Para uma pessoa, isso é uma confirmação de que a terapia é prejudicial e a teoria subjacente está errada. Para outra pessoa, é uma confirmação de que a teoria está correta, pois postula uma resolução inicial dos mecanismos de defesa, o que resulta em uma piora inicial dos sintomas.

Pode-se argumentar aqui que é necessário esperar tempo suficiente para poder fazer uma afirmação confiável, mas o problema é que cada resultado é ambíguo. De forma consistente, seria necessário exigir que todos os dados relevantes fossem considerados nas inferências, mas para isso seria necessário verificar a relevância de todos os dados, o que é naturalmente impossível. Não é possível, nem mesmo em princípio, listar todos os dados disponíveis para um indivíduo ou grupo, nem que seja porque de cada fato infinitamente muitos outros fatos se seguem.

Não existe um método científico formal que possa ter sucesso sem juízos de valor humanos e interpretações (cf. Putnam, 1981, p. 192f). O sujeito de conhecimento padronizado não existe. Talvez haja algo na ideia de C.S. Peirce de que a ciência se constitui pelo consenso convergente da comunidade científica, mas tal convergência ocorre, se ocorrer, apenas no final do tempo e não nos ajuda aqui e agora. Aqui e agora, não preciso provar à comunidade científica que minha terapia funciona, mas sim ao paciente que está na minha frente, e é a aceitação informada desse paciente que confirma o funcionamento.

II

No entanto, não há uma oposição fundamental àquela visão expressa, por exemplo, na observação de Baumann citada acima. Embora se trate de justificação tanto aqui quanto lá, o que deve ser justificado são coisas diferentes. A pesquisa terapêutica tenta, da melhor forma possível, demonstrar a eficácia média de uma classe de procedimentos terapêuticos, desde que sejam reproduzíveis com base em descrições e treinamentos correspondentes. Como vimos, a partir disso não é possível deduzir com certeza instruções positivas ou negativas para uma terapia singular, ou seja, aquela que começo aqui e agora com este paciente.

Além disso, as duas visões têm definições diferentes de sucesso. Para a sociedade, sucesso significa alcançar o princípio do minimax: obter benefícios máximos com custos mínimos, em média. Isso é legítimo, mas esse princípio também não fornece critérios claros, sendo dependente de juízos de valor. Além disso, esse certamente não é o único objetivo da ciência e definitivamente não é o objetivo de um indivíduo que busca ajuda. Temo também que o reconhecimento desse princípio como a última razão possa levar à dissolução da psicoterapia, uma vez que um dia o tratamento puramente medicamentoso provavelmente atenderá suficientemente aos interesses econômicos da sociedade. Além disso, isso significaria o reconhecimento do modelo médico não apenas no reembolso dos planos de saúde, mas também no pensamento, e isso, na minha opinião, não deve ser aceito na psicologia. Apesar das afirmações em contrário, a estratégia dominante da pesquisa terapêutica tende a ser um abuso da metáfora dos medicamentos (Stiles & Shapiro, 1989).

Pode-se argumentar contra tudo isso: certamente, a pesquisa empírica em terapia tem seus limites, mas, depois de tudo dito e feito, ainda é o melhor que temos (ou seja, todas as outras tentativas de justificação são ainda mais questionáveis), e, portanto, não há motivo para usar outras técnicas terapêuticas além daquelas que já foram comprovadas.

Em primeiro lugar, é importante notar que, em certos casos, apenas o uso de uma forma de terapia empiricamente comprovada é legítimo (voltarei a isso), mas esse não é sempre o caso. Deixe-me listar alguns pontos.

1. Qualquer tipo de pesquisa experimental é fundamentalmente conservadora; ela testa hipóteses já formuladas ou, no nosso caso, formas de terapia que existem há muito tempo. Como é óbvio que não se investiga qualquer absurdo, é igualmente óbvio que existem critérios pré-experimentais para o desenvolvimento e avaliação de estratégias terapêuticas que parecem razoáveis. As formas de terapia estudadas não foram simplesmente concebidas em uma mesa ou em um laboratório, mas são o resultado de uma prática muitas vezes de décadas por numerosas pessoas em muitos países. Se uma prática não legitimada por estudos empíricos controlados fosse proibida, a evolução de novas estratégias terapêuticas seria interrompida.

2. Muitos, talvez a maioria, dos pacientes que procuram terapia têm problemas que não são considerados transtornos mentais de acordo com a CID ou o DSM, e para a maioria desses problemas não existem formas de terapia comprovadas experimentalmente.

3. Um paciente chega com o desejo expresso de realizar uma terapia específica.

4. Com base em sua experiência, o terapeuta está convencido de que uma determinada terapia pode ajudar seu paciente.

Agora, são justamente os dois últimos argumentos que são considerados inadmissíveis, pois os pacientes não têm conhecimento e são facilmente influenciáveis, e os terapeutas podem ser vítimas de autoengano grave. Sob essas circunstâncias, se insistirmos que a aceitação informada pelo paciente, em última análise, justifica o uso de um procedimento terapêutico, então os terapeutas devem se comprometer com um comportamento que permita ao paciente tomar uma decisão informada sobre aceitar ou não o procedimento oferecido e realizado.

III

Há pelo menos dois momentos em que decisões de aceitação são tomadas:

1. No início - com qual terapia devo começar?

2. No momento em que for possível determinar se essa terapia se mostrou eficaz para esse paciente - devemos continuar com essa terapia?

No que diz respeito ao primeiro momento (início de uma terapia), devemos exigir o seguinte:

Se o paciente expressar o desejo de eliminar ou pelo menos aliviar os sintomas de um distúrbio para o qual existe uma forma de terapia comprovada em vários estudos controlados, então o terapeuta deve oferecer essa terapia. Se ele não puder ou não quiser realizar essa terapia, ele deve informar que essas formas de terapia existem e onde ou com quem elas podem ser buscadas. Isso se aplica atualmente pelo menos a fobias específicas, agorafobias, transtornos de pânico, depressão unipolar, certos distúrbios da função sexual e comportamentos compulsivos. Mesmo que o terapeuta acredite que há algo mais por trás ou ao lado do sintoma apresentado (o que pode ser frequentemente o caso), ele não pode deixar de fornecer essa informação. O paciente deve ter a possibilidade de decidir se deseja trabalhar de forma orientada aos sintomas ou se deseja começar com outra forma de terapia proposta pelo terapeuta. Além disso, ele deve ter a possibilidade de revisar essa decisão, o que nos leva talvez ao ponto central da argumentação. O fato de que o curso de uma terapia deve ser controlado e que ela pode ser interrompida ou modificada, é um princípio fundamental tanto do tratamento médico quanto do tratamento psicológico. É esse princípio que permite a justificação do uso de uma técnica terapêutica por meio da aceitação informada pelo paciente. No entanto, esse princípio é ignorado na pesquisa terapêutica empírica (pelo menos no paradigma de grupo controle). Lá, as terapias são levadas até o fim, doce ou amargo, e então são feitos um ou mais acompanhamentos. Nessas condições, é claro que a aceitação informada não é possível nem no início (porque a autoseleção deve ser excluída) nem mais tarde.

No que diz respeito ao segundo momento (avaliação de uma terapia que já está em andamento há tempo suficiente para ser avaliada), os seguintes aspectos devem ser considerados.

Em princípio, o ponto mais importante é que ao paciente deve ser dada a oportunidade de tomar uma decisão, em consulta com o terapeuta, sobre a continuação da terapia. Muitas vezes se argumenta que mesmo um resultado positivo não prova que a terapia ou a técnica específica são responsáveis pelo desenvolvimento positivo do paciente. Isso é obviamente verdadeiro, mas irrelevante na situação de decisão descrita. Seria irracional para o paciente interromper a terapia apenas porque esse desenvolvimento positivo não pode ser atribuído com certeza à terapia.

Se, nesse momento, houver um desenvolvimento negativo visível, isso pode ser interpretado como um fracasso ou como uma fase (possivelmente inevitável) que mais tarde se transformará em um desenvolvimento positivo. Vejo aqui duas obrigações para os terapeutas: no primeiro caso, o fracasso só pode ser atribuído ao paciente se isso levar à recomendação de uma abordagem terapêutica diferente. No segundo caso, a decisão não deve ser adiada indefinidamente. Deve ser estabelecido um momento razoável para emitir um julgamento sobre se a terapia deve ser continuada, substituída por outra (possivelmente com outro terapeuta) ou interrompida definitivamente. Esse prazo não precisa ser o mesmo para todas as formas de terapia.

Por fim, deve-se observar que critérios de justificação diferentes devem ser aplicados a pacientes que não são capazes de uma aceitação informada.

1 Palestra apresentada no 40º Congresso da Sociedade Alemã de Psicologia em Munique, 1996.

Referências Bibliográficas

Baumann, U. (1969). Psicoterapia científica com base na psicologia científica. Report Psychologie, 21, 686-699.

Grawe, K., Donati, R. & Bernauer, F. (1994). Psicoterapia em transformação - Da confissão à profissão. Göttingen: Hogrefe.

Haagen, K. & Seifert, H. G. (1979). Métodos de estatística para psicólogos (Volume II). Stuttgart: Kohlhammer.

Putnam, H. (1981). Razão, Verdade e História. Cambridge: Cambridge University Press.

Stiles, W. B. & Shapiro, D. A. (1989). Abuso da metáfora das drogas na pesquisa de processo e resultado da psicoterapia. Clinical Psychology Review, 9, 521-543.

Westmeyer, H. (1984). Diagnóstico e tomada de decisão terapêutica: problemas de fundamentação. In G. Jüttemann (Ed.), Novos aspectos da avaliação clínico-psicológica (pp. 77-101). Göttingen: Hogrefe.

Endereço do Autor (1996)

Dr. Christoph Kraiker
Universidade de Munique
Departamento de Psicologia
Leopoldstr. 13
80802 Munique

Email: kraiker@uni-muenchen.de

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Intervenção precoce: única opção de bons resultados?

Como a psiquiatria alega que depois da "lesão" não há mais o que fazer e que não há cura, recorre ao discurso do diagnóstico e intervenção precoce para poder alegar conseguir bons resultados.

É algo a ser analisado.


 

terça-feira, 6 de junho de 2023

ABP por ela mesma

A associação brasileira de psiquiatria (ABP) segundo eles mesmos: responsáveis, científicos, não ideológicos, boa gente, altruístas desinteressados, defendem a sociedade e salvam vidas.

Todos esses pontos podem ser problematizados.

sábado, 3 de junho de 2023

Ensaio OMS [...] doenças crônicas e pes. com deficiência

Referência:

Wagner, Marsden G. (‎1991)‎. Does he take sugar?. World health forum 1991 ; 12(‎1)‎ : 87-89 https://apps.who.int/iris/handle/10665/49206

Revista World health forum 1991 ; 12(‎1)‎ : 87-89

Ponto de vista

Marsden Wagner

"Ele toma açúcar?"

Ao falar sobre as pessoas com deficiência, revelamos nossas crenças e suposições subjacentes sobre a perfeição mental e física. Devemos desafiar tais crenças se quisermos apreciar a importante contribuição que os deficientes fazem para a sociedade e devemos fornecer serviços para eles que os respeitem e capacitem, em vez de incapacitá-los ainda mais.

A promoção da saúde examina os vários pressupostos e crenças subjacentes aos cuidados médicos. Uma suposição é que a saúde é desejável e que a doença crônica ou deficiência é indesejável. A saúde é considerada normal, a doença ou deficiência como anormal. A doença crônica, segundo essa visão, representa falha tanto do indivíduo quanto do sistema de saúde, pois um sistema de saúde perfeito seria capaz de curar tudo. A doença crônica é até considerada um fracasso social, porque em uma sociedade ideal todos seriam perfeitamente saudáveis. Essa maneira de pensar às vezes é chamada de "saúdismo". A OMS, com sua definição de saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, é parcialmente responsável por esta opinião. Com base nisso, é apenas um pequeno passo para acreditar que os fortes e fisicamente aptos são pessoas melhores do que os fracos e inaptos. Essa atitude generalizada na sociedade ocidental explica por que há tantos corredores em nossas ruas e fisiculturistas em nossas academias.

Outro princípio decorre do primeiro: qualquer desvio de saúde, doença ou deficiência deve ser corrigido na medida do possível. Se uma pessoa tem uma doença crônica ou é deficiente, o foco está na doença ou deficiência e um grande esforço é feito para restaurar ou criar o que é definido como normal. Eu costumava trabalhar em clínicas para crianças deficientes físicas. Enormes quantias de dinheiro, tempo e energia foram gastas em "anormalidades" físicas. Por exemplo, tínhamos crianças que sofriam de espasmos e não conseguiam andar, e trabalhávamos anos tentando fazê-las dar alguns passos.

Quando o foco está no problema, a pessoa é identificada pelo problema. Os médicos que fazem suas rondas hospitalares podem pensar em alguém como, digamos, um diabético, em vez de um indivíduo com um nome. A pessoa inteira pode ser vista como uma doença ou deficiência. No Reino Unido, pessoas com doenças crônicas e deficientes produzem um programa de televisão com o objetivo de explicar o que há de errado com a maneira como a sociedade as vê. Chama-se "Ele aceita açúcar?", uma referência oblíqua à maneira como as pessoas "normais" tendem a falar por cima das cabeças dos deficientes, que na maioria das vezes são capazes de responder a essas perguntas sem ajuda. Não se segue que, por exemplo, uma incapacidade de andar deva ser acompanhada por uma incapacidade de ouvir, compreender e articular.

Uma terceira crença relacionada ao manejo de doenças crônicas e deficiências é que trabalhar é saudável e é sempre desejável estar envolvido em um trabalho útil; e esse valor, de fato, depende do trabalho, uma ética proeminente na cultura ocidental.

Uma pessoa ou organização que trabalha com doentes crônicos pode aceitar ou desafiar essas crenças. No entanto, meu próprio sentimento é que se deve tentar entender e se ajustar ao modo como as coisas são, enquanto se começa a questionar o estado de coisas existente. A normalidade não é representada pela saúde, mas pela doença e incapacidade. A questão não é qual porcentagem da população é deficiente, mas qual porcentagem de cada pessoa é deficiente. Todos nós temos problemas e doenças, e muitos de nós temos condições crônicas. Isso sugere uma definição de saúde diferente daquela formulada pela OMS. Prefiro encarar a saúde não como um estado de ser, mas como um processo que consiste em fazer o que se deseja com a menor interferência possível de imperfeições ou desvios. Meu pai de 90 anos, que tem dificuldade para atravessar uma sala, não permite que suas limitações interfiram no que quer fazer, por isso o considero extremamente saudável. Outra pessoa que coloco nesta categoria é um alto funcionário da saúde canadense, cujo imenso entusiasmo pela vida torna sua condição severamente espástica quase imperceptível.

Além disso, imperfeições como doenças crônicas ou deficiências não são apenas normais, mas podem ser consideradas desejáveis. No nível individual, podemos olhar para nossas deficiências e tentar ver como elas contribuem para nossas vidas. Um dos meus filhos tem uma doença crônica e não consigo explicar o quanto aprendi com ele. Sua deficiência contribuiu para o desenvolvimento de cada pessoa da minha família. No nível social, seria não apenas chato, mas também perigoso se todos fossem extremamente saudáveis no sentido convencional. Qualquer sociedade é enriquecida pela diversidade. Isso é entendido em algumas culturas. Existem, por exemplo, culturas nas quais os "deficientes mentais" realmente se tornam líderes espirituais. Não tenho dúvidas de que muito pode ser aprendido com pessoas que sofrem de doenças crônicas ou de alguma forma deficientes.

No que diz respeito à preocupação em corrigir a anormalidade, talvez, como alternativa, se deva focar não no desvio, mas sim na normalidade do indivíduo. A doença ou deficiência é quase sempre apenas uma pequena parte de todo o ser humano. Vamos nos concentrar na parte maior e normal.

Um próximo passo deve ser focar na deficiência ou doença, não apenas para se livrar dela, mas para redefini-la e transformá-la de modo que possa ser vista como algo positivo e útil na vida dessa pessoa. Por exemplo, por causa de seus problemas especiais, adolescentes com doenças crônicas tendem a ser mais sábios do que seus pares. Devemos encontrar maneiras de permitir deficientes ou doentes a contribuir para o amplo enriquecimento da sociedade.

Sobre o tema do trabalho, cabe perguntar quem deve se beneficiar dele. Talvez o indivíduo deva ser útil principalmente para si mesmo. Se a utilidade para a sociedade também for alcançada, isso seria um bônus. Isso pode ser particularmente aceitável em sociedades pós-industriais, onde não há trabalho suficiente para que todos tenham empregos em tempo integral. Nesta situação, devemos reexaminar o significado do trabalho. Talvez devêssemos redefinir o trabalho de pessoas com doenças crônicas e deficientes em termos de auto-ajuda e contribuição para a sociedade de maneiras diferentes das tradicionais.

No contexto atual, é importante examinar a natureza dos serviços de saúde de hoje. Medicalizamos o nascimento e a morte e, em grande medida, medicalizamos a doença crônica. Desenhamos uma espécie de ajuda incapacitante que cria dependência. Médicos, enfermeiros e assistentes sociais tendem a ver a doença crônica de uma forma que é prejudicial para as pessoas que estão tentando ajudar.

Como podemos superar a ajuda incapacitante? Pessoas com doenças crônicas ou deficiências devem estar no controle do que está acontecendo com elas. Eles devem definir seus problemas e, em conjunto com profissionais de saúde e outros, elaborar soluções, ou seja, devem ter uma escolha totalmente informada sobre seus cuidados. Para fazer isso, eles precisam ter acesso a todas as informações necessárias. Há uma barreira a superar aqui porque os profissionais de saúde tendem a não compartilhar informações.

Pessoas com deficiências ou doenças crônicas devem ser encorajadas a ajudar a si mesmas e umas às outras por meio de grupos de autoajuda.

E essas pessoas devem receber toda a gama de opções. Por exemplo, a orientação vocacional deve reconhecer a possibilidade de algumas pessoas nunca trabalharem, pelo menos da maneira tradicional. Por último, devem ser encontradas formas de proteger as pessoas dos sistemas de saúde a que são obrigadas a recorrer, uma vez que estes tendem a medicalizar os problemas e criar dependência. Toda pessoa com deficiência deve ter um advogado de defesa durante os contatos com os sistemas de assistência.