"Utilizaremos dois autores importantes que irão direcionar o presente estudo: Thomas Kuhn, que apresenta uma abordagem científica baseada na emergência de um paradigma fruto de uma revolução científica e Hugh Lacey, que possui uma compreensão do desenvolvimento científico baseado na atuação de múltiplas estratégias no interior de uma determinada pesquisa.
Segundo Lacey, a estratégia constitui uma modificação da noção de paradigma de Kuhn. Enquanto o paradigma restringe os fatos que serão considerados por uma determinada comunidade científica para que esta possa conhecê-los mais profundamente, a estratégia possui o papel de restringir o tipo de teoria considerada e selecionar os dados empíricos a serem considerados para o fim de testar as várias teorias provisoriamente mantidas (LACEY, 2009). Considerada a ligação entre os dois elementos é possível afirmar que enquanto Kuhn apresenta uma ciência normal baseada em um paradigma vigente, Lacey admite a ação de múltiplas estratégias que poderão atuar simultaneamente, sendo a questão fundamental a escolha e compatibilidade entre elas (LACEY, 2001)
Em primeiro lugar, Lacey define o lugar e o papel que os valores ocupam em seu modelo de desenvolvimento científico. Os valores cognitivos possuem importância fundamental na escolha de teorias científicas e são constitutivos da ciência. Eles representam as propriedades das teorias que julgamos serem constituintes de uma boa teoria, por exemplo: adequação empírica, consistência, simplicidade, fecundidade, eficácia, poder explicativo, verdade e certeza. Os valores não cognitivos são aqueles que não possuem relação com a aceitabilidade de uma teoria científica como, por exemplo: valores éticos, sociais, políticos, religiosos, etc.
A tese de uma ciência livre de valores constitui uma das bases das discussões propostas por Lacey. Tendo sua base em Galileu Galilei, esta tese possui três elementos importantes: a imparcialidade, a neutralidade e autonomia (LANTIMAN, 2015, p. 18).
Em Valores e Atividade Científica, volumes 1 (LACEY, 2008) e 2 (LACEY, 2010), ele defende que a imparcialidade é a única que pode ser sustentada no interior das práticas científicas, uma vez que é baseada apenas em valores cognitivos. A imparcialidade sustenta que a teoria, para que seja corretamente aceita, deve manifestar critérios cognitivos em grau suficientemente elevado, a luz dos dados empíricos. Ela forma um escudo que impede que valores não cognitivos sejam inseridos ou desempenhem algum papel no momento de avaliação de teorias.
A autonomia está relacionada principalmente aos membros de determinada pesquisa, a pesquisa científica em si e suas metodologias e ao modo pelo qual são guiadas. É cada vez mais evidente que os anseios das grandes indústrias e corporações estão fundamentados em interesses econômicos (visando principalmente o lucro e o aumento do capital) e de mercado (onde há forte investimento na expansão de seus poderes e negócios). A determinação de prazos, muitas vezes reduzidos, impede o desenvolvimento das possibilidades que podem ser alcançadas pela ciência e suplantam os interesses de formação de conhecimento e entendimento de novos fenômenos.
A neutralidade, de modo geral, informa que os resultados produzidos pela pesquisa científica, avaliados e aceitos de acordo com a imparcialidade, não possuem implicação lógica para qualquer perspectiva valorativa, seja ela política, ética, social, etc. Ao mesmo tempo, promove que as teorias, quando corretamente aceitas, podem se adequar a qualquer perspectiva de valor, ideologia ou visão de mundo
Lacey proporciona uma variação do modelo kuhniano de desenvolvimento científico, onde a pesquisa científica é guiada pelo que ele denomina estratégias de restrição e seleção. A adoção de uma estratégia, segundo Lacey, define os tipos de fenômenos e as possibilidades que serão consideradas interessantes à pesquisa. A estratégia possui o papel de restringir os tipos de teorias que serão consideradas em determinada pesquisa e selecionar os dados empíricos relevantes (LACEY, 2008, p.109)
Durante muito tempo a ciência tendeu a utilizar um tipo específico de estratégias consideradas como exemplares às práticas científicas: as estratégias materialistas de restrição e seleção ou de abordagem descontextualizadas (LACEY, 2010, p. 91). Esse tipo de estratégia restringe a teoria de modo que esta represente os fenômenos de acordo com as leis da natureza, nos termos de sua geração, ordem, estrutura, processos e leis subjacentes. Os objetos dessa ordem subjacente são caracterizados em termos quantitativos e, assim, não podem ser interpretados tendo como base perspectivas valorativas, pois consideradas enquanto valores relativos à experiência humana, não são oriundas da ordem subjacente do mundo e, desta forma, são abstraídas do desenvolvimento da pesquisa científica.
Se, de acordo com Kuhn, o alvo da ciência é a resolução de quebra cabeças a sua verdadeira definição é demarcada por estratégias. Quando fenômenos e teorias aspirantes a paradigma são confrontados é necessário que, antes de o cientista se engajar na investigação, seja adotada uma estratégia de restrição e seleção que irá selecionar e restringir os tipos de dados e teorias aceitáveis (LACEY, 2010, p. 69)
No modelo de atividade científica proposto por Kuhn, a ciência opera com a utilização de um paradigma. Este é adotado para beneficiar a caracterização e solução dos quebra-cabeças que se apresentam à pesquisa. Enquanto permanecer fecundo o paradigma (ou a estratégia) obterá exclusividade dentro da pesquisa que será conduzida com base nele. (LACEY, 2010, p. 69).
Este fato configura um problema do processo de especialização e se torna claro na exposição de Lacey acerca das estratégias materialistas ou de abordagem descontextualizada. Não podemos negar que as pesquisas baseadas em tais estratégias geraram enorme quantidade de descobertas cientificas e inovações tecnológicas, mas também é necessário ponderar que as estratégias materialistas possuem um caráter limitador para a pesquisa, pois analisam os fenômenos nos termos de sua geração, sua estrutura, processos e leis subjacentes, dissociando-os de seus contextos sociológicos, históricos, da experiência humana e vinculação com valores externos a ciência (LACEY, 2006, p. 17).
A pluralidade apresentada deve ser fecunda, constituída por estratégias que se complementem a fim de atingir certa “democracia” no interior da pesquisa e na aplicação de seus resultados. Lacey afirma:
Em geral, as possibilidades encapsuladas pelas teorias desenvolvidas sob diferentes estratégias sobrepõem-se, no máximo, por sugerirem que um “entendimento completo” dos fenômenos do mundo da experiência vivida não pode ser obtido (mesmo a princípio) se for submetido a apenas um dos tipos de estratégias. Essa é a base para a complementariedade das estratégias (LACEY, 2012).
Para garantir a abrangência de entendimento sobre os fenômenos é importante que a pesquisa seja conduzida por uma multiplicidade de abordagens, uma vez que há diversas questões, interesses e valores envolvidos desde o momento do estabelecimento das metodologias, que serão a base dos estudos sobre determinado objeto, até a aplicação dos resultados obtidos pela pesquisa.
O que observamos nos dias atuais é que a ciência e a sua prática estão cada vez mais apressadas, sujeitas a prazos e a investimentos corporativos, institucionais e governamentais que visam, principalmente o lucro e o bem-estar de um pequeno grupo. O conhecimento científico obtido pode ser utilizado tanto para fins pacíficos quanto para fins hostis. Este fato não constituiria a própria ciência como ré, mas sim os indivíduos responsáveis pelo desenvolvimento e aplicação do conhecimento obtido através da pesquisa (LACEY, 2010, p. 95)."
Referência:
LANTIMAN, Camila. Pluralidade de estratégias e adoção de um paradigma: Hugh Lacey, Thomas Kuhn e as abordagens da pesquisa científica. Em Construção. ano 1, n. 1, 2017, pp. 69-80. DOI:10.12957/emconstrucao.2017.28125