Pacientes produtores ativos de saúde (prosumo)

Essa avalanche de informações e conhecimento relacionada à saúde e despejada todos os dias sobre os indivíduos sem a menor cerimônia varia muito em termos de objetividade e credibilidade. Porém, é preciso admitir que ela consegue atrair cada vez mais a atenção pública para assuntos de saúde - e muda o relacionamento tradicional entre médicos e pacientes, encorajando os últimos a exercer uma atitude mais participativa na relação. Ironicamente, enquanto os pacientes conquistam mais acesso às informações sobre saúde, os médicos têm cada vez menos tempo para estudar as últimas descobertas científicas ou para ler publicações da área - on-line ou não -, e mesmo para se comunicar adequadamente com especialistas de áreas relevantes e/ou com os próprios pacientes. Além disso, enquanto os médicos precisam dominar conhecimentos sobre as diferentes condições de saúde de um grande número de pacientes cujos rostos eles mal conseguem lembrar, um paciente instruído, com acesso à internet, pode, na verdade, ter lido uma pesquisa mais recente do que o médico sobre sua doença específica. Os pacientes chegam ao consultório com paginas impressas contendo o material que pesquisaram na internet, fotocópias de artigos da Physician's Desk Reference, ou recorte de outras revistas e anuários médicos. Eles fazem perguntas e não ficam mais reverenciando a figura do médico, com seu imaculado avental branco. Aqui as mudanças no relacionamento com os fundamentos profundos do tempo e conhecimento alteraram completamente a realidade médica. Livro: Riqueza Revolucionária - O significado da riqueza no futuro

Aviso!

Aviso! A maioria das drogas psiquiátricas pode causar reações de abstinência, incluindo reações emocionais e físicas com risco de vida. Portanto, não é apenas perigoso iniciar drogas psiquiátricas, também pode ser perigoso pará-las. Retirada de drogas psiquiátricas deve ser feita cuidadosamente sob supervisão clínica experiente. [Se possível] Os métodos para retirar-se com segurança das drogas psiquiátricas são discutidos no livro do Dr. Breggin: A abstinência de drogas psiquiátricas: um guia para prescritores, terapeutas, pacientes e suas famílias. Observação: Esse site pode aumentar bastante as chances do seu psiquiatra biológico piorar o seu prognóstico, sua família recorrer a internação psiquiátrica e serem prescritas injeções de depósito (duração maior). É mais indicado descontinuar drogas psicoativas com apoio da família e psiquiatra biológico ou pelo menos consentir a ingestão de cápsulas para não aumentar o custo do tratamento desnecessariamente. Observação 2: Esse blogue pode alimentar esperanças de que os familiares ou psiquiatras biológicos podem mudar e começar a ouvir os pacientes e se relacionarem de igual para igual e racionalmente. A mudança de familiares e psiquiatras biológicos é uma tarefa ingrata e provavelmente impossível. https://breggin.com/the-reform-work-of-peter-gotzsche-md/

terça-feira, 31 de março de 2015

Assimetria de poder na relação médico-paciente

Assimetria de poder na relação médico-paciente
“Talvez, se o objetivo da medicina for a diagnose e o tratamento da doença, a qualidade da comunicação entre o médico e o paciente faz pouca diferença, conquanto se obtenha um histórico médico adequado e a necessária cooperação do paciente, para fazer ou deixar de fazer certas coisas. Mas se o objetivo da medicina for interpretado mais amplamente, se a preocupação for com a pessoa que está doente, e o objetivo for aliviar, reassegurar e restaurar o paciente – como parece que deve ser o caso – então a qualidade da comunicação assume uma importância instrumental e tudo o que interferir com ela precisa ser observado, e se possível, removido.” Samora (1961)
Em um nível microssociolinguístico, a assimetria no discurso médico-paciente, por exemplo, resulta de diferenças de status socioeconômico, papéis, objetivos e expectativas, bem como de seus valores e atitudes. O discurso reflete, cria, dissemina e perpetua esta assimetria no discurso e através da fala dos participantes. No discurso institucionalizado, a assimetria pode ser mensurada por parâmetros interacionais, discursivos e lingüísticos.
- No nível interacional, por exemplo, há o controle da organização tática da interação. No caso da comunicação médico-paciente, o médico controla o turno da ala e as estruturas de participação dos outros participantes. Desta forma, é o médico quem decide não somente quem fala, mas também quando e como se fala.
- No nível discursivo, não somente o que se fala, i.e. o conteúdo, mas também em que ordem se fala, i.e., a seqüência tópica e a organização do discurso são decididas pelo médico que tem o poder hegemônico de conduzir a interação.
- No nível lingüístico, a especialização técnica do médico e o jargão técnico do seu vocabulário podem constituir uma causa adicional de discrepância e divergência na comunicação, tanto no nível conceitual quanto no nível lexical.
No discurso assimétrico, os participantes não compartilham do mesmo conhecimento, interesses, objetivos e estratégias conversacionais. Porque os médicos e os pacientes geralmente não compartilham das mesmas bases sócio-culturais para conhecer, dizer e entender, eles têm acesso diferenciado ao conhecimento.
No entanto, porque a comunicação face a face é reflexiva, i.e., mutuamente constitutiva, os participantes são conjuntamente responsáveis pelo fluxo de atividades.
No caso da comunicação médico – paciente, assim também como nas interações em sala de aula, os médicos operam como diretores do discurso, mantendo o controle durante a consulta, e conduzindo a interação, sinalizando o começo, o meio e o fim dos diferentes estágios ou atividades bem como o começo e o fim das falas. É dentro deste contexto interacional que o médico e o paciente tem que negociar o significado, i.e., fazer sentido um para o outro, por que a fala é ambígua e vaga e deve ser interpretada. Além do mais, a interpretação compartilhada depende do contexto compartilhado, mutuamente constituído pelos e para os participantes, e realizado interacionalmente.
Desta forma sua atenção aos aspectos orgânicos das queixas do paciente, sua paráfrase técnica da narrativa do paciente, seu uso recorrente de perguntas para solicitar informação específica são estratégias pelas quais a consulta é objetificada e enquadrada no modelo biomédico da doença.
Esta abordagem clínica ou orgânica distante, objetiva, “cautelosa”, do médico, é resultado do treinamento profissional. No seu treinamento pré – serviço é-lhes ensinado que o envolvimento com o paciente deve não ser só evitado mas é quase proibido e anti-ético. Porque eles vão ter que enfrentar a dor, o sofrimento e a morte dos seus pacientes, é-lhes ensinado que trabalhando neste esquema institucional eles vão ficar protegidos dos perigos do envolvimento e da compaixão e desta forma permanecer mais livres para agir e tomar decisões que às vezes podem ir contra seus sentimentos e emoções.
O seguinte trecho tirado do filme Golpe do Destino é ilustrativo:
Dr Mackee – Há perigo em se envolver com os seus pacientes. É muito perigoso. Cirurgia exige julgamento. E um juiz deve ser distante.
Aluno – Não é antinatural não se envolver com os pacientes?
Esta abordagem impessoal é também conseqüência da visão profissional da prestação do serviço médico como uma atividade burocrática de rotina, em que o paciente é apenas mais um em uma fileira de pacientes, mais uma doença em uma fileira de doenças.
Em resumo, durante a consulta médica, o médico que está no controle interacional, busca e
requer informação do paciente. Ele aborda a consulta dentro de um esquema clínico de referência enquanto o paciente a encara como uma oportunidade personalizada e experiencial para falar sobre suas mazelas. Este desencontro de estilos e estratégias conversacionais pode causar ansiedade, frustração e conflito; ele pode impedir os participantes de atingir um consenso sobre o significado da interação e/ou atingir os objetivos pretendidos. Em última instância, isto pode levar a mal entendidos e insatisfação interacional.
O fato de o paciente falar mais poderia nos induzir a concluir que o paciente domina a interação. Todavia a tabela 2, que indica quem introduziu os tópicos na conversação, deixa claro que é o médico que domina a conversação.
Em resumo, embora o médico fale menos, interacionalmente ele tem mais influência no desenho da estrutura do discurso. É ele quem abre e fecha a conversa (cf.Tabela 1:00 e 22); quem termina a discussão sobre um tópico, muda para um novo tópico conforme sua vontade; ou ignora as observações do paciente.
A fala do paciente é altamente avaliativa e envolvida, como se pode ver pelo número de intensificadores que abundam no texto, e.g. mal (09); sempre (20); pausas, hesitações, pedidos de confirmação e outros marcadores discursivo-conversacionais, e.g., cê vê(04);sabe? (08, 10,14); né (06). As queixas do paciente são vagas e difusas (e.g.13-16). O médico, então, tenta medicalizar estas queixas em sintomas, atendendo aos aspectos orgânicos ou clínicos da narrativa do paciente.
A reciclagem do tópico é uma estratégia que o paciente usa para enfrentar o controle da consulta pelo médico e para criar o máximo possível de oportunidades para falar sobre o tópico de seu interesse.
Neste trabalho, convergência e divergência referem-se respectivamente à unilateralidade ou bilateralidade na introdução de propostas, isto é, propostas que obtiveram consenso e propostas que foram do interesse de somente um dos participantes. Em outras palavras, convergência de interesse ou expectativas significa que os participantes estão sintonizados na mesma onda. Divergência, por outro lado, sinaliza que os participantes estão fora de sincronia um com o outro. Isto é, eles estão ou falando fora de turno ou fora do tópico.
No conjunto, os tópicos divergentes perfazem 38 por cento do total da fala da consulta. Estes tópicos foram trazidos principalmente pelo médico, através de perguntas que tencionavam coletar fatos para especificar a estória do paciente e informação biomédica que sugerisse sintomas que pudessem servir de base para o seu diagnóstico (=transformar em doença).
Este estudo demonstrou o modo como o significado é negociado entre o médico e o paciente na consulta médica. A análise quantitativa dos padrões de gestão de tópicos pelos participantes na consulta revelou que o médico detém o controle hegemônico da conversa. Embora ele fale menos em termos do tempo total da consulta, é o médico quem regula as estruturas de participação, o conteúdo e a organização seqüencial ou progressão temática dos tópicos na conversação. Embora o paciente fale mais que o médico em termos do tempo total da conversa, ele o faz somente em resposta às perguntas e tópicos impostos pelo médico, que estruturam não somente o que o paciente fala, mas também quando, como e em que ordem ele fala.
A análise qualitativa focalizou a evidência lingüística das estratégias conversacionais usadas pelos participantes na consulta. Porque o médico está interessado em obter informação biomédica relevante e suficiente para um diagnóstico preciso e tratamento adequado, a sua estratégia conversacional é atentar para os itens orgânicos ou biomédicos de informação e tratar os problemas de vida real do paciente como irrelevantes à consulta. Ele se apóia, principalmente em perguntas específicas na busca de sintomas para transformar em seu diagnóstico. O seu estilo de gestão de tópico pode ser caracterizado como o estilo falando sobre um determinado tópico, em vez de falando topicamente.
A estratégia do paciente, por outro lado, consiste em evitar falar sobre os tópicos que são introduzidos pelo médico. Para tanto, ele usa digressões, autodiagnose e associação de tópicos. Desta forma, ele evita não só falar sobre os tópicos escolhidos pelo médico, mas ele consegue reciclar e falar mais sobre os tópicos de seu interesse pessoal e assim comunicar o que ele acha relevante à consulta. Desta forma, embora semi-analfabeto, o paciente revela possuir as habilidades conversacionais necessárias para fazer uma exposição de sua doença. O seu estilo de gestão de tópico caracteriza-se por falar topicamente, isto é, falar centradamente sobre um tópico.
Como conseqüência desta divergência em estratégias conversacionais e estilo de gestão de tópicos, os tópicos introduzidos pelo médico são breves e permanecem sem avaliação, e são rapidamente descartados pelo paciente. Os tópicos bilaterais, ou convergentes, por outro lado, são amplamente desenvolvidos e avaliados, proporcionando assim, ao médico, uma oportunidade de coletar informação mais relevantes para a diagnose e o tratamento. Prestando atenção aos mecanismos lingüísticos de envolvimento e avaliação que o paciente usa, ele pode aprender não somente o que é de interesse para ele médico, mas o que preocupa o paciente.
Conclusão comum: a importância da qualidade da comunicação na relação que se estabelece entre o médico e o paciente na consulta e uma visão consoante com a qualidade em serviços de que a própria conversa já é parte do processo de cura, pois atender o cliente é, principalmente entender o seu pedido, o seu desejo e a sua necessidade. Quase sempre, ao fazer uma demanda, direta ou indireta, o cliente pede uma coisa, quer outra e precisa de uma outra. Desta forma, a melhor forma de garantir as condições para um bom atendimento é investir na qualidade da relação e dos vínculos com o cliente, pois a qualidade do atendimento é diretamente proporcional à qualidade do relacionamento que se estabelece.
Citamos aqui as palavras de um praticante da medicina da pessoa, em vez da medicina da doença: “As dificuldades na relação médico-paciente geralmente comprometem o êxito dos resultados das consultas e do tratamento, por duas razões. Primeiro, a inabilidade do médico de abordar o paciente e, segundo, a resistência do paciente em aceitar o que lhe é proposto.” Para resolver este problema, o autor sugere que “a consideração dada à receita é proporcional à preocupação do médico com as emoções do paciente”, observando ainda: “O bom médico deve se interessar pela estória do paciente, não somente de onde vem as suas dores, ou seja, o problema é descobrir o que é importante para a pessoa doente e não só para o médico.”
Sugere-se, então, que os profissionais médicos desenvolvam um conhecimento consciente das características e complexidades do discurso da cura. Isto demandaria que os médicos aprendessem mais a ouvir para aprender, do que ouvir para interrogar. Na verdade, sua habilidade de interrogar seria otimizada pela sua habilidade de ouvir e identificar pistas contextuais, tais como a avaliação e o envolvimento, que sinalizam os verdadeiros problemas de seus pacientes. Esta consciência os equiparia com ferramentas mais poderosas para apontar os problemas de seus pacientes mais facilmente. Todavia, como Shuy (1976) evidencia, as atitudes estão profundamente enraizadas na prática diária e não são muito fáceis de mudar. O autor do artigo para o jornal brasileiro mencionado acima afirma que a resistência dos médicos à mudança se deve principalmente a “... uma mistura de preconceito e falta de conhecimento sobre as mudanças”. De acordo com este mesmo autor, os médicos vão ter que enfrentar os seus próprios preconceitos e orgulho se eles quiserem melhorar a relação com os seus pacientes. O mero conhecimento do problema não garante a mudança.
Esta profunda mudança, porém, demandaria um projeto integrado de pesquisa em análise do discurso a longo prazo, envolvendo pesquisadores lingüistas e profissionais médicos na pesquisa colaborativa das suas culturas de trabalho e da natureza da interação médico- paciente. As descobertas de tais destas pesquisas serviriam de base para o treinamento de outros profissionais, tanto em programas de pré-serviço quanto em programas em-serviço.
Assim, sugere-se que, como pesquisadores da sua própria cultura de trabalho, os médicos comecem a estranhar o familiar e familiarizar o estranho em seu próprio contexto. Então, tendo chegado a esta atitude crítica através da visão perspectiva interna e externa da sua prática,eles poderão se tornar os principais agentes de transformação de sua própria prática social.

Medicina e mídia

Medicina e mídia
Na perspectiva de RODRIGUES, entende -se por campo social:
“(...) uma instituição dotada de legitimidade indiscutível, publicamente reconhecida e respeitada pelo conjunto da sociedade para criar, impor, manter, sancionar e restabelecer uma hierarquia de valores, assim como um conjunto de regras adequadas ao respeito desses valores, num determinado domínio específico da experiência” (1999:23)
Em oposição a esta modalidade, destaca-se a dimensão exotérica, constituída de enunciados não reservados ao corpo institucional, mas a todos, indiscriminadamente. A conseqüência desta função mediadora é a constituição de um campo social autônomo, que desempenha papel estratégico ao garantir a visibilidade e reforçar a legitimidade dos demais campos.
Os sujeitos que detém legitimidade simbólica e pragmática constituem o corpo social de um determinado campo. Eles podem compreender os enunciados destinados aos próprios membros da instituição, práticas discursivas que, segundo Rodrigues, se referem às modalidades de discurso esotérico. A natureza exotérica é própria do discurso mediático.
A publicização dessas informações de interesse público reforça a legitimidade de cada campo envolvido nesse processo de mediação. Já vimos que é próprio do campo dos media recorrer a enunciações dos outros campos, se legitimando como espaço privilegiado de visibilidade das instâncias sociais".
Mas, ao apropriar-se da medicina, o discurso midiático tende a torná-la transparente e universalmente compreensível, em função da natureza exotérica de seu funcionamento” (Rodrigues, 1997:221). Isto requer a transformação da linguagem hermética, uma questão que perpassa a dimensão universalizante da prática discursiva do campo dos media.
“(...) o discurso médico tende a criar e impor não só um vocabulário e regras sintáticas próprias, mas também formas simbólicas esotéricas da sua expressão e da sua difusão. É por isso que o discurso médico é relativamente incompreensível e opaco para os que não são detentores da legitimidade de intervenção expressiva e pragmática no seu domínio específico de experiência, para aqueles que não fazem parte do seu corpo legítimo. (...)
A rearticulação das ordens de discursos (Foucault, 1996) do campo da medicina atende também ao objetivo de reforçar, no espaço especular dos media, sua legitimidade e competência no que concerne ao poder de dizer e de fazer sobre o corpo humano.
“(...) o discurso do médico é uma confluência de saberes científicos e de outros saberes provenientes da prática clínica e da doxa, saberes e práticas nem sempre convalidados pelo campo científico e acadêmico. Nem o discurso da televisão (do programa) é equivalente ao discurso do médico, nem este é equivalente ao da ciência. O discurso do médico, aqui, está mediado pelas regras do dizer televisivo, que operam no sentido de traduzir o aspecto especializado do saber médico-científico, naturalizar (e reforçar) sua dimensão pragmática (se aconselha e orienta), reforçar sua legitimidade e moderar sua conflitividade” (2005: 301)

Psicologia, Psiquiatria e ideologia

Psicologia, Psiquiatria e ideologia
Como regra, essas teorias fazem parte do discurso competente, na acepção de Chauí (2001b), ou seja, de um conhecimento que, por ser produzido em determinados lugares sociais e pelos únicos autorizados a falar sobre os fenômenos do mundo físico, social e psicológico, tornam-se hegemônicos e silenciam outras falas.
Para determinar os fatores que levam ao aparecimento da doença mental, o autor compara características da população doente e da população sadia:
Se a pessoa nasceu num grupo favorecido em uma sociedade estável, seus papéis sociais e as mudanças esperadas destes ao longo de sua vida irão proporcionar-lhe oportunidades adequadas para um saudável desenvolvimento da personalidade. Se, por outro lado, a pessoa pertence a um grupo desfavorecido ou sociedade instável, poderá encontrar seu progresso bloqueado e ser privada de desafios e oportunidade. Isso terá um efeito negativo em sua saúde mental. (p. 47, grifos nossos)
É importante ressaltar que, neste modelo, os fundamentos dos conceitos de prevenção, de saúde x doença mental estão na harmonia do sujeito visto como unidade biopsicossocial e, portanto, na adaptação da população aos modelos de produtividade e obediência, garantindo sua condição saudável.
Vale ressaltar que o compromisso ideológico-político das idéias psiquiátricas, representadas pelo texto de Caplan e pela noção de prevenção, não se refere à promoção da saúde mental de todos os indivíduos, mas somente daqueles que já possuírem condições favoráveis para que isto aconteça.
Em resumo, alguns indivíduos podem possuir características responsáveis por seu adoecimento. Além disso, saúde mental é adaptação dos indivíduos. Caberia ao psiquiatra a manipulação de algumas circunstâncias de vida da população para efetivar tal adaptação.
Certos indivíduos podem ter uma posição tão afortunada ou antecedentes tão privilegiados que, mesmo sem o nosso programa, não cairiam doentes. Outros indivíduos podem ser tão desfavorecidos por sua situação idiossincrática que nenhuma melhoria do quadro comunitário geral seria suficiente para impedir que eles adoeçam. (p. 44, grifos nossos)
Quanto mais rica for sua herança cultural, mais complexos serão os problemas que a pessoa terá provavelmente sido ensinada a dominar. Quanto mais estável for sua sociedade, mais provável é que esta a tenha dotado de instrumentos perceptivos, recursos para resolver problemas e todo um conjunto de valores que a guiem sempre que tenha de enfrentar as dificuldades da vida. Por outro lado, sociedades em transição &– e isto aplica-se a muitas em nossa era atual de rápida transformação tecnológica &– têm escassas probabilidades de desenvolver métodos bem-ensaiados para lidar com novos problemas com que um indivíduo se defronte, e este ver-se-á obrigado a confiar mais em seus próprios recursos. (p. 47)
As idéias psiquiátricas, de acordo com o autor, foram produzidas ao longo da história com compromissos político-ideológicos distantes da problemática da saúde mental. Isto pôde ser observado nos três momentos pelos quais passou a Psiquiatria no Brasil: o do discurso organicista, o preventivista e o psicoterápico.
No primeiro momento, situado na década de 30, buscou-se encontrar os elementos orgânicos constitutivos dos indivíduos como explicação para os transtornos mentais. Foi a época das noções de higiene psíquica e racial, na qual as práticas eugênicas triunfaram. Acreditava-se que existia uma natureza humana e a decifração das leis de hereditariedade permitiriam a regeneração dos doentes mentais.
A Psiquiatria preventivista, da década de 60 e, mais fortemente, da década de 70, trouxe como proposta a possibilidade de retirar os atendimentos dos consultórios privados e dos asilos para levá-los à comunidade. Seu objeto de estudo era a saúde mental e não a doença, seu objetivo era a prevenção da doença mental, o sujeito de tratamento passou a ser a coletividade e não mais os indivíduos, os profissionais não eram somente os psiquiatras, mas as equipes comunitárias, e o espaço de tratamento passou a ser a comunidade. Um novo conceito de personalidade também foi adotado; o indivíduo tornou-se a unidade biopsicossocial.
Já o discurso psicoterápico, está presente na atualidade, propondo o tratamento individualizado, de volta aos consultórios, agregando os conhecimentos da Psicologia, na multiplicidade de seus campos teórico-práticos.
Iniciemos pela prevenção. De acordo com Costa (1989b), a Psiquiatria preventiva deve ser compreendida também como um discurso ideológico porque veio atender às necessidades de prestígio para uma classe &– os psiquiatras &– que perdiam espaço para a Sociologia e para a Psicologia, entendendo a doença mental como uma doença do psiquismo e não do soma. Além disso, a prática destas ciências não se fundamentava exclusivamente nos métodos das ciências naturais, como a Psiquiatria, que foi perdendo o lugar de sua especificidade.
O modelo de atuação da Psiquiatria preventiva foi, então, adaptado, principalmente, da Sociologia. O próprio conceito de unidade biopsicossocial teve esta origem. Os indivíduos passaram a ser analisados a partir desta síntese que deveria se constituir de forma harmoniosa, determinando que a saúde estaria relacionada à adaptação das dimensões biológica, psicológica e social.
A idéia de prevenção da Psiquiatria preventiva é de inspiração nitidamente sociológica. Foi porque a Psiquiatria tomou emprestado à sociologia o critério adaptação-desadaptação, como meio de avaliação do comportamento normal e patológico, que a idéia de prevenção tornou-se possível. Todavia, para que o conceito sociológico se tornasse compatível com o conceito psicológico, também contido na noção de unidade biopsicossocial, este último teve que sofrer reduções e mutilações até se conformar completamente ao primeiro. (Costa, 1989b, p. 30, itálico original)
O texto de Caplan, assim, insere-se no auge do discurso preventivista, analisado criticamente por Costa (1989b). Mas, por que foi assinalado que é também representativo do discurso organicista, teoricamente, abandonado há muito tempo? Talvez, uma única citação do autor justifique esta indagação:
Vale assinalar que aquilo a que os epidemiologistas chamam “fatores do hospedeiro”, notadamente as qualidades dos membros de uma população que determinam sua vulnerabilidade ou resistência às tensões ambientais, são constituídos por dois grupos de atributos. O primeiro, que inclui atributos tais como idade, sexo, classe sócio-econômica e grupo étnico, não pode ser manipulado. O segundo grupo, incluindo atributos tais como a força do ego, a habilidade para a solução de problemas e a capacidade para tolerar a angústia e a frustração, é habitualmente fixo, mas pode ter sido modificado no passado, mediante uma alteração da experiência do indivíduo ou de seus pais. Fatores cromossômicos situam-se na fronteira entre esses dois grupos. Quando soubermos mais a seu respeito, talvez seja possível intervir eugenicamente para modificar padrões genéticos numa população e, assim, aperfeiçoar a dotação constitucional fundamental de seus membros. (pp. 41-42, grifos nossos)
Estes serão excluídos de qualquer possibilidade de saúde porque o conhecimento científico produzido pela Medicina e, especialmente pela Psiquiatria, coloca-os como doentes em potencial e, portanto, sem qualquer possibilidade de ser outra coisa, se não aquela determinada pelo médico. O autor vai além do organicismo, uma vez que a eugenia é uma proposta política, fascista, que tem no organicismo uma mera justificativa pseudocientífica.
Segundo Chauí (2001a), o discurso ideológico é uma representação imaginária do real, que ocorre por meio dos princípios de abstração e inversão, no qual as contradições não são explicitadas. Quais as lacunas existentes no texto em questão?
A princípio, observa-se que ele transmite a idéia de que os indivíduos são os únicos responsáveis por sua condição de saúde ou doença e nascem inseridos em uma determinada classe social, porque naturalmente deve ser assim, como afirma o autor, ao falar sobre as condições de vulnerabilidade às quais estão submetidos alguns indivíduos.
Assim, por uma rápida, imediata e simples observação, percebe-se que a população mais pobre, que possui menos recursos físicos, intelectuais e culturais (de acordo com padrões estabelecidos pela classe que domina) é a mais acometida por doenças, sejam mentais ou não. Logo, o raciocínio é imediato: estas pessoas têm mais chances de tornarem-se doentes; são doentes em potencial.
Ocorre uma inversão: o efeito é tomado como causa, o determinante como determinado, o resultado como o início do processo. Assim, se os indivíduos possuem características favoráveis ou desfavoráveis, é esta condição que determinará sua possibilidade de serem saudáveis. Mas, como estas “características” foram produzidas? São elas que determinam a doença ou foram determinadas pela forma de organização da sociedade? Por que sempre há populações doentes, desviantes, anormais? A resposta seria simplesmente que é natural ser assim? Ou, ao contrário, que é importante para o funcionamento da lógica do capital que alguns sejam os responsáveis por sua doença e nunca se curem?
O conhecimento produzido pela Medicina e pela Psicologia sobre a doença mental é tomado como o determinante do processo histórico, ao invés de ser compreendido como determinado por ele. Isto significa que o conhecimento aparece sem vínculo com o contexto histórico e político no qual foi produzido.
Poderíamos também refletir sobre outras questões dissimuladas no discurso sobre o doente. A miséria de cada indivíduo aparece como miséria de condição e não de posição, como se as pessoas fossem doentes por sua condição desfavorável e, portanto, pobre. Oculta-se que a miséria é de posição na hierarquia da sociedade de classes.
O que se observa é o dado aparente e imediato de que as pessoas que possuem a capacidade de resolver seus conflitos vivem em condições/sociedades favoráveis. Logo, aquelas que vivem em ambientes desfavoráveis não resolvem conflitos.
Todos os elementos constitutivos deste discurso ideológico ocultam as contradições presentes na sociedade de classes que produz e reproduz conflitos políticos e, portanto, de poder. As contradições são vistas como naturais e não como sociais. Estas podem ser observadas não só naquilo que denominamos de incoerências da própria articulação do discurso, mas também, e principalmente, no conflito inerente entre aquele que ocupa o lugar do saber e, assim, produz e organiza o conhecimento sobre aquele indivíduo analisado e julgado à luz da ciência.
A crise é compreendida, dessa forma, como fator negativo, que desagrega, desarmoniza, mesmo considerando que possa trazer o crescimento da personalidade dos indivíduos. Todavia, deve-se questionar em qual sentido o conceito de crise pode ser definido como ideológico.
Segundo Chauí (2001a), geralmente, nos discursos oficiais dominantes, crise é entendida como descontinuidade, ruptura, desarmonia entre o que é aceitável para uma sociedade e a forma como os indivíduos pensam e agem. Rompe-se o funcionamento adequado das coisas e das idéias. Há uma relação entre o termo crise e desvio, e estas noções determinam como o mundo dever ser. Se houve uma crise, deixou-se de agir e pensar da forma comum, usual.
Caplan argumenta, em concordância com os discursos oficiais, que a crise psicológica é uma quebra do padrão de funcionamento dos indivíduos e pode ser benéfica quando as pessoas possuem condições favoráveis para lidarem com o desequilíbrio, ou causar sérios prejuízos, e até distúrbios mentais, quando o sujeito não possuir características que o levem à resolução do conflito. Nos dois casos, o desejável é que a crise seja resolvida, tenha uma solução.
Para Chauí (2001a), conceber a crise nestes termos faz parte de um determinado modo de pensamento, no qual a idéia de contradição não pode estar presente. Quando os conflitos ou as crises aparecem, são as contradições da sociedade que se manifestam. A contradição é expressa tanto na luta de classes, sobre a qual a sociedade capitalista se constituiu, como, neste caso específico, é expressa pela distância entre a possibilidade de saúde de uns e de doença de outros e pela própria idéia oculta de que alguns devem ficar doentes para que o funcionamento do todo se mantenha inalterado, dentro do padrão estabelecido por quem define critérios de normalidade.
A crise é imaginada, então, como um movimento da irracionalidade que invade a racionalidade, gera desordem e caos e precisa ser conjurada para que a racionalidade anterior, ou outra nova, seja restaurada. A noção de crise permite representar a sociedade como invadida por contradições e, simultaneamente, tomá-las como um acidente, um desarranjo, pois a harmonia é pressuposta como sendo de direito, reduzindo a crise a uma desordem fatual, provocada por enganos, voluntários ou involuntários, dos agentes sociais, ou por mau funcionamento de certas partes do todo (...) Tal representação permite, assim, imaginar o acontecimento histórico como um desvio. (Chauí, 2001a, p. 37)
O perigo da explicitação das contradições, ou seja, se o conjunto dos indivíduos, se a coletividade “doente”, compreender que não é a portadora dos desvios, que não possui condições idiossincráticas prejudicadas ou desfavoráveis. A idéia de crise é tão combatida porque se ela for a manifestação das contradições da sociedade de classes, pode, de fato, haver o entendimento dos fatores que produzem as condições que oprimem muitos e favorecem poucos.
Não é por acaso que a noção de crise é privilegiada pelos discursos autoritários, reacionários, contra-revolucionários, pois neles essa noção funciona em dois registros diferentes, mas complementares. Por um lado, a noção de crise serve como explicação, isto é, como um saber para justificar teoricamente a emergência de um suposto irracional no coração da racionalidade: a “crise” serve para ocultar a crise verdadeira. Por outro lado, essa noção tem eficácia prática, pois é capaz de mobilizar os agentes sociais, acenando-lhes com o risco da perda da identidade coletiva, suscitando neles o medo de desagregação social e, portanto, o medo da revolução, oferecendo-lhes a oportunidade para restaurar uma ordem sem crise, graças à ação de alguns salvadores. (Chauí, 2001a, p. 37, itálico original)
Tratar a crise como algo negativo, desagregador, que acontece no e por causa do indivíduo é totalmente permitido em nossa sociedade para que o indivíduo seja contido. A crise é ruim para cada pessoa e é ela a responsável por sua condição crítica. Logo, o sujeito deve ser tratado e deve acreditar que ele é o seu pior agente patológico. O médico é sua possibilidade de cura. O doente deve ser submisso ao médico, mesmo porque, o “doutor” tem conhecimentos que ele não possui.
É o conhecimento científico a serviço da legitimação da impossibilidade de humanização dos indivíduos. É a justificativa dos motivos pelos quais a maioria das pessoas deve ocupar uma posição desprivilegiada na sociedade de classes. É preciso compreender, então, como a ciência se constitui no discurso capaz de determinar o lugar dos indivíduos na sociedade capitalista.
Todas as formas de relacionamento do homem com o contexto onde está inserido ocorrem por meio de vários discursos que orientam a maneira como ele deve agir pelo fato de ser um discurso competente (Chauí, 2001b).
Discurso competente significa que um conhecimento específico é legítimo e autorizado para falar sobre as coisas e sobre as pessoas. Desta maneira, não é o discurso do doente mental, mas sobre o doente mental, ou seja, não é o homem quem fala de si, mas alguém que fala sobre ele e, neste caso, o psiquiatra é autorizado a falar sobre os doentes mentais.
Nele, os interlocutores já foram identificados pela separação daqueles que são competentes para falar sobre e daqueles que devem ouvir o que os competentes têm a dizer a respeito de si. O que é dito deve servir como a explicação mais precisa sobre as condutas humanas, com a finalidade de prevenir que algumas pessoas escolhidas sofram de distúrbios mentais. Também deve determinar quem serão aquelas que inevitavelmente adoecerão.
A que serve, então o discurso competente? Para Chauí (2001b), ele é o responsável pelo projeto de dominação e de intimidação social e política que é organizado por uma determinada classe social para conter outra.
É necessário construir outros discursos competentes essencialmente críticos e que assumam um novo posicionamento político e, exatamente por isso, sejam éticos. A resistência se constrói e se consolida também pela reflexão dos conteúdos produzidos pela Psicologia e por outros campos do conhecimento sobre saúde mental, desvelando o caráter opressor e justificador das desigualdades neles contido.

Política e medicina

Política e medicina
“O cruzamento entre política e medicina pode ser analisado a partir de duas perspectivas: seja como incorporação da medicina na política, isto é, como absorção das funções da medicina pelo Estado – e então poderíamos falar de uma estatização da medicina e seja como um processo de formação da autoridade medical, mediante o qual o médico adquire, nas relações de poder que atravessam o tecido social, uma posição de destaque, uma autoridade política.
Em uma segunda forma de mobilização da palavra, mais típica de Foucault, o político se refere a toda relação de força presente entre grupos sociais e entre indivíduos em sociedade. Desse modo, em resposta a um interlocutor que lhe questiona a respeito de sua acepção de ‘político’, Foucault responde “que o conjunto das relações de força em uma da sociedade constitui o domínio da política, e que uma política é uma estratégia mais ou menos global que procura coordenar e finalizar essas relações de força. [...] Dizer que ‘tudo é político’ quer dizer essa onipresença das relações de força; mas é dar-se a tarefa ainda apenas esboçada de desembaraçar esse nó”. Estamos aqui diante de um uso particular da palavra ‘política’, em que ‘política’ significa toda organização estratégica, mais ou menos refletida e orientada para objetivos, de relações de força.
Para Foucault, o poder não se localiza em um único ponto, nem se polariza segundo uma única forma de tensão social. Sobretudo, o poder é absolutamente relacional e presente em toda a espessura do corpo social; “o poder é uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade”, não sendo, portanto, propriedade, essência ou privilégio de ninguém, de nenhuma classe.
Problematizar a medicina quer dizer analisá-la a partir das relações de poder. As relações estabelecidas entre seres humanos saudáveis, pacientes, médicos e instituições dos mais diversos tipos, que constituem o poder medical, formam uma trama que se intercala, que atravessa, que muitas vezes coincide com a trama de poderes que cobrem a sociedade. No poder medical, aparecem entrelaçadas as duas mobilizações da ‘política’. O poder medical possui dois vieses. Significa tanto o processo de sedimentação social da autoridade medical, como a estatização da medicina.
Preocupado com essas questões, Foucault ressalta três aspectos da crise atual: o risco medical, a sociedade da norma e o consumo da saúde.
O que está em jogo no risco medical, para Foucault, não é a eventual ignorância dos médicos, mas exatamente aquilo que deriva, ou que pode derivar, do saber medical. Foucault se interessa por aquilo que ele chama de “iatrogenia positiva” (iatrogénie positive), isto é, as doenças decorrentes de práticas medicais regulares, não de erros ou negligências dos médicos. Doenças e males cuja causa é justamente a eficácia da medicina científica, não a sua ineficácia. As atividades humanas, principalmente com o desenvolvimento do capitalismo industrial, têm conseqüências diretas e decisivas sobre a vida e a evolução das espécies vivas do planeta. O que interessa Foucault, nesse momento da conferência do Rio, quando isola o objeto para uma possível bio-história, não concerne os efeitos da atividade humana sobre o todo da vida biológica, mas se limita ao risco medical, resultante dos efeitos do progresso científico da medicina sobre a própria espécie humana.
A bio-história, para Foucault, seria o estudo dos efeitos da ação medical sobre a vida da espécie humana. Esses efeitos são tanto mais relevantes quanto mais abrangente se torna a ação medical.
É justamente a enorme abrangência da ação medical, a medicalização sem limites de nossas sociedades normalizadas, que constitui o segundo aspecto da crise atual da medicina. Podemos falar em um domínio próprio da ação medical? Em princípio, a medicina se limitaria às doenças e às solicitações do paciente doente, às suas dores, a seu mal-estar. A doença e a demanda do paciente deveriam constituir o domínio da medicina. Para Foucault, porém, “não há nenhuma dúvida, a medicina foi muito além”. Para além da solicitação do doente, é a medicina que se impõe a ele, em “ato de autoridade”. A medicina judiciária, os exames medicais no campo do trabalho, os check-ups aconselháveis ou obrigatórios são alguns exemplos do poder medical, cujas funções normalizadoras debordam a demanda do paciente. Para além da doença, a própria saúde se constitui como campo para a intervenção medical.
Definir as normas da saúde e dos comportamentos saudáveis e obrigar os indivíduos a agir em conivência com essas normas tornou-se, para além da simples função terapêutica, uma das grandes atribuições do poder medical. A sociedade passa a se regular, a se ordenar, a se condicionar, de acordo com normas físicas e mentais que são determinadas por processos medicais. Mais do que uma sociedade regida pela lei, para Foucault, a nossa sociedade é regida pela norma e pelos mecanismos, em grande parte medicais, que em seu seio distinguem o normal do anormal. A medicina, segundo Foucault, “começa a não ter domínio que lhe seja exterior”. A medicina atual, por assim dizer, está em todo lugar, tem sempre uma palavra a dizer. A medicina está presente não apenas no hospital, mas em todos os outros aparelhos disciplinares que compõem nossas sociedades e que, por princípio, não são, ou não eram, diretamente do domínio medical: a prisão, a escola, a empresa. Nossas sociedades são sociedades da norma, nas quais critérios não jurídicos, associados principalmente a performances de base fisiológica, estabelecem a repartição entre o normal e o anormal. No domínio medical, que praticamente coincide com todo o domínio do social, tais normas prescrevem comportamentos individuais e os métodos terapêuticos para que os indivíduos se mantenham dentro das normas. Nesse sistema, o poder medical é responsável, por um lado, por estipular as normas, e por outro, por aplicá-las aos indivíduos.
A terceira característica marcante da medicina moderna está relacionada ao fato de que a saúde tornou-se um objeto de consumo. No século XX, organiza-se um enorme mercado da saúde – medicamentos, terapias, centros de recondicionamento físico e mental tornaram-se mercadorias, como quaisquer outras. Mercado para o qual a medicina é o agente e o intermediário mais importante. Passa pelas mãos dos médicos, ou é dirigida por médicos, a aplicação dos volumosos recursos que os orçamentos dos Estado e das famílias dedicam à saúde.
Em um outro lugar, Foucault afirma: “o mundo está evoluindo na direção de um modelo hospitalar, e o governo adquire uma função terapêutica”. Se, por um lado, a função do governo é a de capacitar os indivíduos, pelo aprimoramento disciplinar das sociedades, e fazer deles os instrumentos do desenvolvimento econômico, por outro, o governo tem a função de corrigir os efeitos negativos causados, por esse mesmo desenvolvimento, sobre a vida e a saúde dos indivíduos."
Leon Farhi Neto: "BIOPOLÍTICA EM FOUCAULT". (Dissertação submetida ao corpo docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Mestrado em Ética e Filosofia Política Orientador: Prof. Dr. Selvino José Assmann). Florianópolis, 2007.

A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault

http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/aulas/article/viewFile/1943/1404

A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault*

Resumo: Este texto busca traçar uma cartografia das relações de Michel Foucault com o campo das psicologias, tanto em termos biográficos, acadêmicos e de formação, como bibliográficos, de interesses temáticos. Pretende ainda aplicar a sua crítica em torno dos problemas da verdade e do sujeito aos domínios do conhecimento psicológico, quebrando alguns mitos construídos pelos manuais de história da psicologia. Esta cartografia mostra um campo de saber diverso onde concorrem várias psicologias em conflito, que se constitui nas fronteiras com outros domínios, caracterizando-se mais por seu caráter disciplinar do que por sua cientificidade, tornando visíveis suas práticas normalizadoras, a ponto de ser definida criticamente como “Psicologia: disciplina da norma”. Palavras-chave: Foucault – psicologia – normalização.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Sem sofrimento não há crítica social

http://www.mosaicopsicologia.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=208:sem-sofrimento-nao-ha-critica-social-vladimir-safatle&catid=38:textos-livres&Itemid=62

Sem sofrimento não há crítica social *

Por: Vladimir Safatle - professor no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).
*Texto publicado originalmente na revista Carta Capital do dia 03 de Outubro de 2012.
Um dos fenômenos mais relevantes da última década foi uma lenta mutação em nossa maneira de compreender a natureza do sofrimento psíquico. Tal questão não é um problema que deveria ocupar apenas psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. A maneira como compreendemos o que vem a ser o sofrimento psíquico é um setor fundamental a respeito da imagem que temos de nós mesmos e de nossos ideais de autorrealização.
A distinção entre normalidade e patologia, no que se refere à vida psíquica, não é o simples fruto de variações quantitativas, de déficits e excessos relativos a constantes orgânicas. Valores fundamentais na definição tradicional da normalidade, como harmonia e equilíbrio, nascem em campos exteriores à clínica. Não seria difícil mostrar como a genealogia da "harmonia" como valor médico encontra sua origem no campo da estética, da mesma forma que o "equilíbrio" encontra sua origem na política. Essa é apenas uma maneira de lembrar como os valores que compõem o horizonte da saúde são, em larga medida, dependente de valores que a clínica toma de empréstimo dos campos da cultura. O homem é um animal que sofre por não ser capaz de realizar valores que ele compreende, graças a uma experiência sócio-histórica de larga escala, como fundamentais para uma vida bem-sucedida.
Lembrar tais considerações aparentemente triviais é fundamental para começarmos a compreender as consequências de certa guinada organicista que submeteu as discussões sobre sofrimento psíquico, ao menos desde o aparecimento do manual de psiquiatria DSM-III no fim dos anos 1970. A partir daí, virou um lugar-comum afirmar que havíamos entrado na era do declínio das psicoterapias, graças, principalmente, ao advento de gerações de antidepressivos, psicotrópicos e neurolépticos que, enfim, dariam conta dos distúrbios e transtornos que afetam grandes camadas da população. For sua vez, a descoberta de certos paralelismos frutíferos entre estados mentais e estados cerebrais pareceu fascinar pesquisadores encantados com a possibilidade de localizar sentimentos e estados humorais em redes neuronais.
Aos poucos, vimos o estabelecimento de um senso comum que tendia a rejeitar explicações etiológicas do sofrimento psíquico que colocavam em relevo os impasses dos conflitos no interior da esfera familiar, as contradições nos processos de constituição social de identidades, em suma, as possibilidades de organização da experiência de si tal como permitidas pela natureza de nossos vínculos sociais. Tudo isso parecia como aquelas grandes meta-narrativas sobre desenvolvimento histórico que aprendêramos a recusar. Talvez não seja por acaso que a propalada crise da psicoterapia mais influente do século XX, a saber, a psicanálise tenha sido acompanhada da crise da "metanarrativa" mais influente do século XX, a saber, o marxismo. Nos dois casos, discursos profundamente críticos a respeito dos limites e das modalidades de sofrimento produzidas por nossas formas de vida eram jogados no fundo do baú da história.
Que o discurso do ocaso das psicoterapias e da ascensão da era dos antidepressivos tenha sido enunciado, de maneira mais peremptória, quando nossas sociedades liberais quiseram impor a ideia de que eles tinham vindo para ficar e que não havia muito mais a esperar, eis algo que não deve ser visto como uma mera coincidência. Quando Michel Foucault cunhou o belo termo "biopolítica", ele procurava salientar a maneira como decisões referentes à administração da vida e dos corpos, decisões eminentemente internas ao saber médico, não são exteriores à expectativa de valores políticos que queremos implementar. Por exemplo, se em certo momento do desenvolvimento da psiquiatria, a força terapêutica da relação entre médico e paciente foi levada cm conta, isso não foi sem relações com noções de autonomia e subjetividade moral que apareceram como valores políticos fundamentais.
Devemos lembrar esses fatos, porque c bem provável que vejamos nos próximos anos um retorno crescente pelo interesse em psicoterapias. Freud, à sua época, não cansava de ouvir pacientes que simplesmente pediam para ser ouvidos, como se precisassem, por meio do redirecionamento lento de suas falas, construir espaços de vinculação de suas modalidades de sofrimento psíquico à singularidade de suas posições subjetivas. Que atualmente boa parte de nossos pacientes volte a reclamar do fato de não ser ouvida e de sair de consultórios com uma receita de medicamentos à base de Fluoxetina em tempo recorde, eis um sintoma social que indica exigências de novas abordagens a respeito do sofrimento psíquico.
Vivemos em um momento de refluxo da euforia em relação à potência de cura de intervenções medicamentosas. Dizia-se que práticas psicoterápicas eram caras, longas e de resultados duvidosos. Engraçado como poucos lembravam que tratamentos com medicamentos também são caros, profundamente longos, e seus reais resultados poderiam ser mais bem avaliados se a indústria farmacêutica parasse de tentar influenciar resultados de pesquisa e retardar a divulgação de resultados desfavoráveis.
Valeria dizer que tal refluxo talvez esteja silenciosamente ligado a uma ideia importante do psicanalista Jacques Lacan, a saber, de que os sintomas são aquilo que muitos têm de mais real. O sofrimento psíquico nunca foi simplesmente algo que deve ser eliminado, como eliminamos o vírus de uma doença orgânica. Na verdade, ele é, muitas vezes, a maneira desesperada que encontramos para dizer a nós mesmos que a estrutura de nossa vida não dá conta de experiências que, no fundo, gostaríamos de integrar. Sem sofrimento não há crítica, pois é a experiência do sofrimento que nos mostra o caráter arruinado daquilo que deve ser criticado. Nesse sentido, talvez devamos apreender como uma lição fundamental do século XX: não há crítica social possível sem compreendermos como o nosso corpo, como os impasses de nossos desejos falam aquilo que lutamos com todas as forças para não ouvir. Eis um bom caminho para o nosso futuro.

domingo, 22 de março de 2015

“É a cultura que faz as pessoas demandarem manicômio”

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“É a cultura que faz as pessoas demandarem manicômio”


Esta semana a Comunidade de Práticas traz um olhar diferente sobre a Saúde mental, publicando entrevista feita por Bruno Dominguez, em  especial para a revista Radis. Ele conversou com o Presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Paulo Amarante, sobre a luta antimanicomial sobre o tema.
Boa leitura!
Desde o início da década de 1970, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Paulo Amarante, acompanha de perto as mudanças no cuidado às pessoas com transtornos mentais. Mais do que isso, participa ativamente dessas mudanças, como um dos pioneiros da luta antimanicomial no Brasil. Avesso a instituições, como ele mesmo afirma, Paulo orientou-se pelo pensamento daqueles que procuraram fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença.
“David Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito”, observou, nesta entrevista à Radis. Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Esnp/Fiocruz) Paulo critica a redução da reforma psiquiátrica a uma simples reforma de serviços. E defende uma reforma da cultura. “É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro”.
Como surgiu seu interesse pela psiquiatria?
Paulo Amarante: Começou cedo, durante a faculdade [de Medicina], porque meu irmão já era psiquiatra. Meu pai brincava que a Reforma Psiquiátrica era uma briga minha com meu irmão, já que eu parti para a linha antimanicomial, da qual sou um dos fundadores no Brasil. Sempre tive uma aversão muito grande às instituições. Fui do diretório acadêmico, do movimento estudantil secundarista, fui expulso do colégio… Aliás, tenho uma história longa de expulsões; na escola, por causa do movimento estudantil e porque escrevia um jornalzinho com questionamentos, denúncias de situações do colégio, em um momento de ditadura militar. Sempre foi difícil para mim ser enquadrado.
O que encontrou no Hospital Colônia Adauto Botelho, onde travou seu primeiro contato com a psiquiatria?
Amarante: Em 1974, fui trabalhar no hospital, em Cariacica, periferia da Grande Vitória (ES). Foi um impacto grande. Na época havia 800 internos, em uma instituição que talvez não pudesse acolher adequadamente nem a metade disso. Muito mau cheiro, ausência de condições mínimas de habitação, descaso, boa parte dos pacientes nus – isso era comum em hospitais e um dos argumentos era que os pacientes não gostavam de usar roupa, uma verdade, depois de tantos anos esquecidos e sem privacidade; mas não usar roupa era um sintoma, uma consequência. Eu e um colega, João Batista Magro, que também éramos músicos, começamos a reunir os internos para ouvir música, quando ainda não se falava em musicoterapia. Então, fui chamado por um diretor, que disse não ser digno para um médico tocar violão em uma instituição, que tirava a seriedade da profissão. Eu respondi que falta de seriedade era aquilo que acontecia no hospital, pessoas desnutridas, abandonadas, nuas, mal cuidadas.
A atividade com música foi intuitiva ou já estavam influenciados por autores?
Amarante: Intuitiva. Nunca tinha ouvido falar de Franco Basaglia, da antipsiquatria. Ou, talvez, tivesse ouvido, mas dentro da faculdade certamente não – não se tocava e ainda não se toca praticamente no nome desses autores. Quando apresentei o trabalho de conclusão da minha especialização em 1978, no Rio, fui advertido por estar usando autores contrários à Psiquiatra, como Basaglia, David Cooper, Ronald Laing. O título era Pedagogia da Loucura, reputando que os hospitais ensinavam as pessoas a serem loucas. Eu parti da história de um interno que ficou 40 anos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, com a justificativa de ser supostamente homossexual. Como não havia ninguém para dar lhe alta e, depois, sob o argumento de que não poderia ser cidadão responsável, ficou décadas internado. Também fiz um filme sobre ele, um dos primeiros sobre loucura. O contato com os autores aconteceu quando vim para o Rio, na Uerj, e trabalhando no Hospital do Engenho de Dentro, onde nos reuníamos em grupos de estudos.
Veio para o Rio imaginando que aqui seria diferente?
Amarante: No último ano da faculdade, em 1976, vim fazer o internato no Rio com essa expectativa. O primeiro contato com o Instituto de Psiquiatria [da UFRJ] não foi ruim. Era uma clínica universitária, com 30 leitos, 15 femininos e 15 masculinos, aquele padrão de enfermaria, com prédio administrativo no meio – sempre houve nessas instituições a preocupação de que os pacientes não fizessem sexo. Eram pacientes de livro, como a gente chama na Medicina, pacientes clássicos: a paciente com sífilis cerebral, o paciente esquizofrênico paranoico com delírio místico. Moravam no hospital porque eram pacientes de aula: quando tinha aula do tema, eles eram levados para a sala, sem qualquer constrangimento.
Se o paciente melhorasse, atrapalhava…
Amarante: Se tivesse alta, acabava a aula. Alguns citavam os próprios sintomas, já tinham as aulas decoradas. A professora perguntava: “A senhora ouve vozes?” E a paciente respondia: “Ouço, sim, estou ouvindo a voz da senhora”.
A psiquiatra Nise da Silveira trabalhava no hospital nessa época. Havia afinidade entre vocês?
Amarante: Ela trabalhava em outra linha. Era psiquiatra, mas odiava psiquiatras, como gostava de dizer. E eu respondia: eu também, para provocá-la. A Nise acreditava que o psiquiatra era irrecuperável, e tínhamos que mostrar que estava errada. Os primeiros questionadores da psiquiatria foram psiquiatras: Franco Basaglia, Ronald Laing, David Cooper, Thomas Szasz, Aaron Esterson. No Brasil, também: eu, Pedro Gabriel, Ana Pitta, Jairo Goldberg, todos psiquiatras na fundação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Era preciso criar uma outra psiquiatria, não uma antipsiquiatria – Basaglia dizia que o termo antipsiquatria podia dar margem a incompreensões. Ele procurava fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. A psiquiatria errou por focar na doença, fato abstrato, que tomou como fato objetivo, concreto, no modelo das ciências naturais. Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito. Nise chegou a buscar pesquisas demonstrando que nossa linha de trabalho estava equivocada. Nós dávamos alta aos pacientes e ela dizia que eles não tinham preparo para a vida social, que seriam vítima de violência, abuso. A internação representava um certo cuidado, na visão dela. Existem pessoas do campo da reforma psiquiátrica que têm esse pensamento, mas instituição nunca é proteção; favorece mecanismos de violência, controle, perda de autonomia.
O que os levava a defender a internação?
Amarante: A pesquisa mostrou que, quando aumentávamos as altas, aumentavam também as reinternações, e o dado estava correto. Por isso, tivemos a preocupação de criar uma rede forte de suporte externo, não só de serviço de saúde, mas também familiar. Nise teve papel importante, porque mostrava que outras formas de trabalho eram efetivas. Ela marcou por se recusar a aplicar eletrochoque, por não acreditar que medicação era o grande tratamento. Mas tivemos que tensionar com ela, porque isso tudo poderia ser feito também fora dos hospitais. No final da vida, ela nos apoiou.
Como era a conjuntura nessa época pré-mobilização dos trabalhadores de saúde mental?
Amarante: De 1976 em diante, começou a haver um movimento de mudança no sindicalismo médico e no conselho de Medicina no Rio. Um exemplo foi a criação do Reme, Renovação Médica, em que médicos questionavam a medicina. Faziam parte nomes importantes, como Carlos Gentile de Mello [Radis 131], que denunciava a mercantilização da saúde, e outros mais jovens, como Sergio Arouca e Reinaldo Guimarães. No mesmo ano, fiquei sabendo que haveria uma reunião para fundar um centro de estudos de saúde, e se criou o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos em Saúde]. De uma vez só, conheci [José Gomes] Temporão, Arouca, Reinaldo [Guimarães], Eleutério Rodriguez Neto, Eric Jenner, Hésio [Cordeiro]. Sempre gostei de escrever, tinha uma máquina portátil, como se fosse o notebook de hoje, e logo me viram como redator do grupo. Tenho comigo o projeto original do SUS – A questão democrática na área da saúde –, que levamos ao simpósio na Câmara dos Deputados, em outubro de 1979. E apresentei no mesmo dia o documento Assistência psiquiátrica no Brasil: setores público e privado, o primeiro da reforma psiquiátrica brasileira. Dentro do Cebes, surgiu a ideia de se criarem núcleos de saúde do trabalhador, saúde da mulher e saúde mental – fiquei responsável por este último. Era um cenário muito favorável, chegamos a ganhar o conselho de medicina por um período.
Como se deu sua demissão da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), junto a dois colegas, episódio que se tornou marco do movimento?
Amarante: Em 1978, comecei a trabalhar na Dinsam e notei ausência de médicos nos plantões, deficiências nutricionais nos internos, violência (a maior parte das mortes causada por cortes, pauladas, não investigadas e atribuídas a outros pacientes). Investigamos, e as conclusões deram muito problema. Outra denúncia era da existência de presos políticos em hospitais psiquiátricos, inclusive David Capistrano, pai, um dos fundadores do Partido Comunista (Radis 143) – e existem fortes indícios de que era ele mesmo. Havia médicos psiquiatras envolvidos em tortura e desaparecimento de presos políticos – a Colônia Juliano Moreira [no Rio] tinha um pavilhão onde só entravam militares. Fui chamado na sede da Dinsam e demitido, com mais dois colegas. Oito pessoas, entre elas, Pedro Gabriel Delgado e Pedro Silva, organizaram um abaixo-assinado em solidariedade a nós. Depois, mais 263 pessoas foram demitidas. Isso caracterizou um movimento. Conseguimos manter a crise da Dinsam, como chamávamos, na imprensa por mais de seis meses.
E essa discussão ganhou corpo…
Amarante: Em 1978, dois eventos importantes aconteceram, um deles, o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no início de outubro, em Camboriú (SC). Era um evento clássico de Psiquiatria. Nós nos reunimos em um grupo e o invadimos. Já havia uma articulação em rede: em Minas Gerais, o João Magro; na Bahia, Naomar de Almeida Filho e Luiz Humberto, que depois foi deputado federal; Ana Pitta, em São Paulo. Um médico conhecido, já idoso, Luiz Cerqueira, que deu nome ao primeiro Caps no Brasil, levantou questão de ordem para que o congresso reconhecesse a importância do nosso movimento, e esse ficou conhecido como o congresso da abertura. No Rio, houve o 1º Simpósio de Políticas, Grupos e Instituições, organizado por Gregorio Baremblitt e Chaim Samuel Katz, dois psicanalistas que vinham rompendo com a psicanálise, até então restrita aos médicos. Eles trouxeram para a discussão Franco Basaglia, Thomas Szasz, Erving Goffman, David Cooper, Ronald Laing e Shere Hite, com grande destaque na imprensa.
A comunicação está sempre presente nas suas respostas – cobertura da mídia comercial, denúncias da mídia alternativa, experiência pessoal com comunicação e saúde, a apropriação por grupos de pacientes…
Amarante: Sempre gostei de escrever. Criei logo um jornalzinho do movimento, com letras recortadas e coladas uma a uma para formar os textos, porque não tinha equipamento. Como eu estava proibido de entrar em qualquer hospital da Dinsam, ia para a porta distribuir o jornal. Buscamos a apropriação dos meios pelos pacientes, como parte do entendimento de que eles são sujeitos, atores políticos. Daí a ideia de experiências como a TV Pinel [no Rio de Janeiro], a rádio e a TV Tan Tan [em Santos]. Muitos profissionais ainda trabalham a partir da concepção de que fazer jornalzinho é terapia, e não é. É intervenção política, de cidadania, são outras formas de mostrar o mundo, de pensar a diversidade. Hoje existem vários jornais impressos, tevês e rádios comunitárias, com nomes muito criativos, como Antena Virada, TV Parabolinoica e Rádio Delírio Coletivo. São iniciativas importantes, que constroem uma outra noção de identidade desses sujeitos.
Quando se deu sua vinda para a Fiocruz?
Amarante: Fui convidado várias vezes, mas recusava. O Arouca me chamou em 1982, para trabalhar em planejamento, e eu não conseguia me soltar da saúde mental. Trabalhei com o Arouca quando ele assumiu a Secretaria de Saúde do Estado do Rio [em 1987], com a tarefa de abrir 33 centros de saúde mental. Quando deixou o cargo, ele e Sonia Fleury me convidaram a criar um núcleo de saúde mental na Fiocruz e aceitei. A Sonia tinha acabado de lançar Reforma sanitária: em busca de uma teoria e, em analogia, eu escrevi Reforma psiquiátrica: em busca de uma teoria. Eu falava que não se deveria reduzir a reforma psiquiátrica a uma reforma de serviços e nem a uma simples humanização do modelo manicomial, ideia que persiste até hoje — “ser mais humano com os coitadinhos”. Defendia que era preciso trabalhar com protagonismo, autonomia; ver esses sujeitos como sujeitos diversos, porém sujeitos. É um desafio dos Caps ainda hoje. Deslocam a tutela para tecnologias menos violentas e invasivas, mas ainda tutelam. Há muita dificuldade em aceitar que as pessoas são diferentes e devem ser diferentes. Minha luta atual é que se pode até suspender a medicação. Isso para médico é um absurdo: eles não acreditam que se possa ser um psicótico sem tomar antipsicótico. É um mito que a indústria farmacêutica criou, que só há um jeito dele se manter vivo, tomando remédio.
O movimento pedia a superação do modelo psiquiátrico. Isso parcialmente se deu na assistência, mas a medicalização continua.
Amarante: Há uma confusão sobre a superação do modelo assistencial hospitalar asilar manicomial, que está em processo razoável, embora hoje haja novas formas de institucionalização, como as comunidades terapêuticas e as instituições religiosas. O Luiz Cerqueira calculava que o Brasil tinha de 80 mil a 100 mil leitos psiquiátricos no final dos anos 1970. Hoje, são em torno de 30 mil leitos. De fato, reduzimos. Criamos Caps, estamos criando projetos de residências, que já são 2 mil, projetos de economia solidária, projetos culturais. Chamamos de dispositivos de saúde mental. Mas nosso trabalho se concentrou na desospitalização. Quando falamos em desmedicalização, não estamos falando em diminuição do medicamento, e sim na diminuição do papel da medicina. Queremos diminuir a apropriação que a medicina faz da vida cotidiana, o discurso médico sobre a vida. Isso não conseguimos. Um desafio hoje da reforma psiquiátrica é a formulação discursiva muito médica, por exemplo, as pessoas são contra o manicômio, mas não abrem mão do conceito de depressão tal qual utilizado pela indústria farmacêutica.
Como lidar com o que se chama de epidemia de depressão?
Amarante: Temos que pensar até que ponto o próprio aparato psiquiátrico está produzindo essa epidemia – uma discussão central, que não é feita devido ao controle da produção de conhecimento pela Psiquiatria e pela indústria farmacêutica. Boa parte da chamada crise mundial de aumento da depressão é produzida pela Psiquiatria, que não está se preparando para evitar, mas para produzir a depressão. Os relatórios contribuem para que pessoas se identifiquem como depressivas. Os intelectuais orgânicos da indústria farmacêutica têm muito claro que é possível aumentar o número de diagnósticos de depressão ensinando a ser depressivo. “Você chora muito? Tem ideias de morrer?”. Isso produz identificação e as pessoas não dizem que estão tristes e sim que estão depressivas. [Michel] Foucault ensinou que a pesquisa diagnóstica produz diagnóstico. É a produção social da doença.
No final dos anos 1980 começam a surgir iniciativas alternativas ao manicômio: em 1987 o primeiro Caps e, em 1989, a reforma em Santos (SP). Como se pensavam essas novas formas de cuidado?
Amarante: As alternativas – ambulatórios, hospitais-dia, centros de convivência – começaram a aparecer no início dos anos 1980, quando deixamos de ser oposição e fomos para o Estado de alguma forma. Em 1987, foi criado o primeiro Caps, em São Paulo, com o nome do Luiz Cerqueira. Mas ainda não havia essa concepção de rede, território e integralidade. O marco inovador foi a experiência de Santos, em 1989. A cidade tinha sua primeira prefeita eleita democraticamente, Telma de Souza, de esquerda — antes havia prefeitos biônicos, indicados pelo Estado. E ela fez uma revolução na prefeitura, nas políticas públicas como um todo. Na saúde, o secretário era David Capistrano Filho (Radis 143), mentor intelectual do Cebes, uma expressão do movimento sanitário. Ele levou à frente uma intervenção na clínica Anchieta, que tinha alta mortalidade. Não quis reformar, mas sim criar uma estrutura substitutiva e territorial — foi a primeira vez que apareceram essas expressões. Hoje se fala muito em rede substitutiva e territorial. A primeira gestão municipal que trabalhou com o projeto aprovado do SUS, ainda que não regulamentado, foi a de Santos.
Como avalia a participação social nas políticas de saúde mental?
Amarante: A participação está diminuindo. O SUS perdeu o espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório, e virou mais um sistema de saúde. E o mesmo aconteceu na reforma psiquiátrica: queríamos transformar a vida, a relação da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços. Houve redefinição do usuário, tido não mais apenas como paciente, mas que não chegou a ser o ator social que queríamos ter — é ator coadjuvante das políticas. Vai nos congressos, nos conselhos, mas não tem força.
E como está a rede de atenção psicossocial hoje?
Amarante: Desde o início desse processo, levantei a preocupação com os Caps funcionando em horário comercial, descontextualizados do território, como ambulatórios multidisciplinares. Por que fazer uma oficina de teatro dentro do Caps em vez de usar o teatro da cidade? E não basta transformá-los em Caps 24 horas. Vão ser minimanicômios, quando deveriam ser a substituição. É necessário mudar as bases conceituais dos serviços: as noções de doença, terapia, cura, tratamento. Se o ideal for a remissão total dos sintomas, não vai ser alcançado, com ou sem medicamento. Sempre se tem a ideia de uma normalidade abstrata. E o mais cômodo é medicar, apontar que a doença é do indivíduo, está nos neurotransmissores, fazer o controle bioquímico e tutelar pelo resto da vida.
Que reflexões sua doença recente, um câncer e complicações decorrentes, provocou sobre a institucionalização?
Amarante: A doença me marcou muito, por minha posição anti-institucionalizante. Minha experiência com hospitais é muito negativa: a relação do aparato médico com o sujeito. Me rebelei muito, questionei, pela perda de autonomia, de identidade. Os profissionais infantilizam e objetificam o paciente. Não sei se a expressão é humanizar, porque humanização me parece mais um conjunto de rituais. Defendo a mudança profunda na qualidade da relação com as pessoas que estão em tratamento. E fiquei pensando nos caminhos que escolhi. Depois da crise da Dinsam, as pessoas foram voltando para o atendimento clínico e eu segui com a discussão do direito à saúde. A ideia de reforma psiquiátrica é limitada, porque o que eu buscava era uma reforma da cultura. É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro. Busquei a transformação da relação da sociedade com a loucura. E mudar cultura é um processo longo, muito demorado.
*Participaram Rogério Lannes, Eliane Bardanachvili, Elisa Batalha e Justa Helena Franco.
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terça-feira, 10 de março de 2015

Medical Model


The medical model is dead – long live the medical model
Abstract WHAT IS CURRENTLY MEANT BY THE MEDICAL MODEL? IS BIOLOGICAL REALLY REDUCTIONISTIC? A CONTEMPORARY DEFINITION OF THE MEDICAL MODEL Face validity Ideology and assumption free Scrutiny of interventions THE MEDICAL MODEL AND POWER FUTURE OF THE MEDICAL MODEL IN PSYCHIATRY

segunda-feira, 9 de março de 2015

NOTAS SOBRE “O NORMAL E O PATOLÓGICO” DE G. CANGUILHEM

http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/n00006.htm

NOTAS SOBRE “O NORMAL E O PATOLÓGICO” DE G. CANGUILHEM

  

Erik Fernando Miletta Martins
IEL - UNICAMP
marmieladov@gmail.com

 A segunda parte da tese de doutorado em medicina, “Ensaio sobre alguns problemas relativos ao normal e o patológico”, de Georges Canguilhem (1904-1995) possui um título indagador: “Existem ciências do normal e do patológico?”. Sanar esta dúvida, ou melhor, problematizar e apontar algumas possíveis respostas é o objetivo deste capítulo inserido na tese, publicada em 1943, cujo objetivo básico é criticar as influências da tradição positivista[1] , fundamentada conceitualmente por Auguste Comte nas idéias de Broussais, na medicina de seu tempo. Dentro desta técnica sua influência foi dar base científica à idéia de que fenômenos patológicos são apenas variações de intensidade de seus “correlatos” fisiológicos ou normais. Para atingir seu intento, nesta parte do trabalho o autor tenta entender melhor como a medicina estabelece seu conceito de normal, e por conseqüência o de patológico; ele busca explicar se é somente dentro da própria medicina que se dá este processo, endógeno, ou se ele é exógeno e normativo, recebendo as noções de fatos e coeficientes funcionais da fisiologia. Expor como o autor entende e resolve esta questão, e, sempre que necessário, estabelecer paralelos dentro do campo da Afasiologia, é o objetivo do texto que segue.
É necessário antes de adentrar a questão de como a medicina estabelece seu conceito de normalidade, entender de forma apropriada o conceito de normalidade defendido pelo autor, que, criticando as idéias de Comte, não acreditava que a relação entre o normal e o patológico se dê através de variação quantitativa, da semântica do hipo/hiper, mas acredita que essa variação seja de ordem qualitativa, propondo o conceito de alteração que é necessariamente vinculado à noção de homogeneidade  e de continuidade. É de suma importância entender que este segundo conceito não propõe uma coincidência, ou mesmo uma oposição, entre o normal e o patológico: “ posso apenas intercalar entre extremos, sem reduzi-los um ao outro, todos os intermediários cuja disposição obtenho pela dicotomia de intervalos progressivamente reduzidos...” Canguilhem (1943,1995: 53), mas, indo de acordo com os trabalhos de Bernard, que, de fato, faz uma proposta de análise quantitativa [2] , o autor vai contra o conceito de média que regulava as leis da fisiologia [3] .É só a partir dessas considerações que podemos entender melhor o que o autor define por normal, que só pode ser entendido no plano individual da normatividade biológica que aceita as leis naturais em estado patológico dentro do funcionamento do próprio organismo e é obrigatoriamente relacionada com o meio: “...um ser vivo é normal num determinado meio na medida que ele é a solução morfológica e funcional encontrada pela vida para responder às exigências do meio...” (Ibid:113). É dessa relação essencial da vida com o meio, relação natural, que ele explica a necessidade do normal na consciência humana, necessidade anterior à própria consciência por ser fruto da relação do ser com meio; “em germe, na vida”. A patologia então pode ser uma variação normativa da vida, mas não é regida pela mesma norma que a fisiologia, ou seja, ela deve ser relacionada à vida e não à saúde.
Estabelecido o conceito de normal defendido pelo autor, podemos adentrar à questão inicial: como a medicina estabelece o que é normal? Para responder essa questão devemos pensar no papel da observação clínica, que é, ou deveria ser, o lugar de intermédio entre o sujeito doente e o médico; momento crucial onde o papel do indivíduo no sujeito aparece, abrindo a possibilidade de se entender o normal para aquele indivíduo, ou, citando Canguilhem (Ibid: 144) “...determinado indivíduo pode se encontrar à “altura dos deveres resultantes do meio que lhe é próprio””. Dessa noção temos que pensar a terapêutica, lugar onde esse “normal” se deseja restabelecer, onde o indivíduo pode voltar a ser normativo, para que então possamos enxergar de onde parte a noção empírica, por conseguinte axiológica, da doença em medicina. Mas, como mostra a tese, a influência também vem da fisiologia “...ciência das situações e condições biológicas consideradas normais.” (Ibid: 188), cuja função é atribuir valores de “normal” às constantes; a quebra metodológica se deveria dar aqui a partir do instante em que Canguilhem, apoiado em Bernard, critica o conceito de média, parâmetro do normal na fisiologia tradicional. É assim que a medicina “atividade que tem raízes no esforço espontâneo do ser vivo para dominar o meio e organizá-lo” (Ibid: 188), busca seu conceito de normal e de patológico, os processos são endógenos e exógenos e de preferência os mais prescritivos possíveis, pois o que interessa aos médicos “..é diagnosticar e curar.” (Ibid: 94)
Para corroborar essas idéias o autor inclusive se utiliza de fatos descritos na Afasiologia, citando problemas de linguagem na construção da critica que estabelece sobre a identificação destes; como saber de que o paciente sofre? Qual o problema do método na determinação estanque do quadro clínico? Aponta para problemas que nem sempre são de ordem médica, mas lingüísticos, como o da variedade das estruturas lingüísticas, por exemplo. Argumenta, trazendo a questão da alteração enquanto fenômeno para a Afasiologia, Novaes (1999: 34): “ permite que possamos nos referir às afasias sem o peso dos termos patológicos que impregnam as descrições.” Demonstrando que o papel de uma nosologia “precisa”, normativa e prescritiva, é de fato impossível, cada sujeito apresenta quadro único. O método patológico é deficiente, como é o caso da maioria das “baterias de teste” para diagnosticar afasia, que não levam em conta o antes do paciente, qual a sua relação com as palavras e o mundo que ele está enfrentando após o acidente; qual sua relação com o laboratório? Sendo este um outro meio, um lugar institucional? É de estresse? É de calma? Será que essas variantes não podem fazer diferença significativa na hora do diagnóstico? Testes que estão mais apoiados em teorias lingüísticas evitam os métodos tradicionais de análise, com propostas inovadoras de (re)integração social, responsável, dos sujeitos afásicos. Mas então sobra a pergunta: como ainda hoje sobrevive essa tradição? A resposta é uma conseqüência da normatividade biológica inerente, necessária ao homem, criando a necessidade de acabar com ansiedade gerada pela ignorância ao dar um nome ao problema que apresenta, e assim, uma possível cura. Pode-se aproveitar muito desta tese no campo da Afasiologia, pois sua contribuição a atinge os diversos aspectos, seja na profilaxia, na terapêutica, na clínica, na patologia, mas não é este o objetivo desta resenha.
É importante também colocar esta tese no ponto de vista epistemológico, pois é uma obra que tem objetivos ambiciosos e gera dúvidas neste campo; afinal o autor está propondo uma verdadeira ruptura com as idéias(ideais) de ciência de sua época, o positivismo, ou está só refletindo o fim dessa tendência? Sua crítica aos métodos e conceitos das ciências naturais aplicadas no campo médico, como se pôde perceber, são fundamentadas numa releitura de diversos coetâneos. Creio que possa haver influências diretas de um movimento de crítica surgido dentro do próprio positivismo comteano, uma vez que Canguilhem cita e nem sempre combate diretamente as considerações do pai dessa filosofia, mas sempre questiona seus métodos, sua semiologia, sua teoria, fato nada incomum na História das Ciências. Podem-se estabelecer diversas comparações a fatos semelhantes em outras ciências, como no caso da própria Lingüística, cujas tendências anti-estruturalistas surgiram do seio do Estruturalismo (basta remetermos a Jakobson e o Círculo de Moscou), ocorrência semelhante ao surgimento da semântica gerativa, que não deixa de ser uma ruptura, que partiu de dentro dessa corrente, o Gerativismo, “criada” por Noam Chomski. Adotar a postura de Canguilhem como uma ruptura, adotar o conceito de ruptura é adotar o PIC (programa de investigação científica) e toda a teoria de Imre Lakatos, é entender que o “progresso” da ciência, indo contra a maioria das posturas epistemológicas mecanicistas e dialéticas de continuidade, se dá pelo “devir da Razão científica” nas palavras de Althusser (Apud Canguilhem, 1943,1995: 275). A presença de rupturas e paradoxos, recuos e saltos dentro do sua própria história, é, portanto, comprometer-se com idéia que Canguilhem estava criticando internamente o positivismo, que, sendo ele homem de seu tempo, viveu as idéias de precisão e idealidade que foram marcas maiores desta corrente filosófica, adotou-as e questionou-as, tornando-se, digamos, um “positivista fraco”.               




BIBLIOGRAFIA
(1943,1995) CANGUILHEM,G. O normal e o patológico, trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas e Luiz Octavio Ferreira Barreto Leite. – 4a. Ed.- Rio de Janeiro, Forense Universitária.
(2002) MORATO, E. M. “As afasias entre o normal e o patológico: da questão (neuro)lingüística à questão social” in O direito à fala: a questão do preconceito lingüístico, Orgs. Fábio Lopes Silva e Heronides Maurílio de Melo Moura, 2a.ed. rev. Florianópolis: Insular.
(1999) PINTO.R,C.N. A contribuição do estudo discursivo para uma análise crítica das categorias clínicas, Tese de Doutorado (UNICAMP-IEL), Campinas.   



[1] Deve-se ampliar essa interpretação toda vez que temos contato com essa obra, pois devemos entender que, como aponta Morato (2002: 63) “a questão que envolve o problema normal X patológico tem a ver com o que Foucault chamou de “vontade de verdade” de uma época...”, é necessário portanto inseri-la dentro da tradição filosófica de seu tempo, e entendê-la como um dos clássicos da literatura da História das Ciências e da Epistemologia como um todo ao apontar os problemas da tradição realista( os problemas do ideal, do generalista, do perfeito) e dada a sua contribuição no aprofundamento sempre insuficiente das questões ontológicas da ciência ao tentar mostrar os problemas que uma classificação taxonômica, estanque e inevitavelmente superficial, acarreta no diagnóstico, na maior parte das vezes impreciso, das patologias.
[2] Ao contrário de Comte e Broussais, Bernard questiona o conceito de média, tanto no plano individual quanto no plano social. A ressalva do autor com relação a este consiste na idéia que ele trabalha sem pensar na polaridade da vida, uma vez que esta não é indiferente às condições que lhe são impostas.
[3] Uma ressalva importante; o autor, em dado momento aponta que não crê que o homem médio seja um “homem impossível”, mas explica que a fisiologia não se pode extrair a norma a partir dessa teorização.