Pacientes produtores ativos de saúde (prosumo)

Essa avalanche de informações e conhecimento relacionada à saúde e despejada todos os dias sobre os indivíduos sem a menor cerimônia varia muito em termos de objetividade e credibilidade. Porém, é preciso admitir que ela consegue atrair cada vez mais a atenção pública para assuntos de saúde - e muda o relacionamento tradicional entre médicos e pacientes, encorajando os últimos a exercer uma atitude mais participativa na relação. Ironicamente, enquanto os pacientes conquistam mais acesso às informações sobre saúde, os médicos têm cada vez menos tempo para estudar as últimas descobertas científicas ou para ler publicações da área - on-line ou não -, e mesmo para se comunicar adequadamente com especialistas de áreas relevantes e/ou com os próprios pacientes. Além disso, enquanto os médicos precisam dominar conhecimentos sobre as diferentes condições de saúde de um grande número de pacientes cujos rostos eles mal conseguem lembrar, um paciente instruído, com acesso à internet, pode, na verdade, ter lido uma pesquisa mais recente do que o médico sobre sua doença específica. Os pacientes chegam ao consultório com paginas impressas contendo o material que pesquisaram na internet, fotocópias de artigos da Physician's Desk Reference, ou recorte de outras revistas e anuários médicos. Eles fazem perguntas e não ficam mais reverenciando a figura do médico, com seu imaculado avental branco. Aqui as mudanças no relacionamento com os fundamentos profundos do tempo e conhecimento alteraram completamente a realidade médica. Livro: Riqueza Revolucionária - O significado da riqueza no futuro

Aviso!

Aviso! A maioria das drogas psiquiátricas pode causar reações de abstinência, incluindo reações emocionais e físicas com risco de vida. Portanto, não é apenas perigoso iniciar drogas psiquiátricas, também pode ser perigoso pará-las. Retirada de drogas psiquiátricas deve ser feita cuidadosamente sob supervisão clínica experiente. [Se possível] Os métodos para retirar-se com segurança das drogas psiquiátricas são discutidos no livro do Dr. Breggin: A abstinência de drogas psiquiátricas: um guia para prescritores, terapeutas, pacientes e suas famílias. Observação: Esse site pode aumentar bastante as chances do seu psiquiatra biológico piorar o seu prognóstico, sua família recorrer a internação psiquiátrica e serem prescritas injeções de depósito (duração maior). É mais indicado descontinuar drogas psicoativas com apoio da família e psiquiatra biológico ou pelo menos consentir a ingestão de cápsulas para não aumentar o custo do tratamento desnecessariamente. Observação 2: Esse blogue pode alimentar esperanças de que os familiares ou psiquiatras biológicos podem mudar e começar a ouvir os pacientes e se relacionarem de igual para igual e racionalmente. A mudança de familiares e psiquiatras biológicos é uma tarefa ingrata e provavelmente impossível. https://breggin.com/the-reform-work-of-peter-gotzsche-md/
Mostrando postagens com marcador crise da psiquiatria. Mostrar todas as postagens
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sábado, 25 de maio de 2024

A resposta psiquiátrica à crítica contracultural

“Em primeiro lugar, o establishment, que a princípio ficou desconcertado com tantos problemas que não conseguia resolver, e que se sentiu aliviado, em alguns casos, por descartá-los, não demorou a montar uma contra-ofensiva. A crise passou, o sistema recuperou o controle da situação ao garantir que as leis que regem os padrões institucionais e profissionais no campo paramédico fossem mais rigorosas, tornando as concessões de ajuda financeira dependentes da prova de competência profissional (presumivelmente monopolizada pelo próprio sistema médico); e ao criticar e repudiar membros da profissão que se comprometeram ao se envolverem profundamente em atividades supostamente subversivas, os médicos estão agora de acordo geral que os “abusos” dos anos 60 devem ser lamentados e que a psiquiatria deve permanecer segura no seu nicho médico." (pág. 301-302).

"A saúde mental comunitária sobreviveu através do desenvolvimento de novas técnicas como a intervenção em crises, a psicoterapia de curto prazo, formas sofisticadas de aconselhamento para pessoas em posições de responsabilidade, e assim por diante. O problema era redefinir a relação entre a profissão psiquiátrica e a população, de modo a permitir a extensão dos serviços a novos grupos da sociedade: era necessária uma série de técnicas de intervenção específica e rápida, dirigidas mais aos sintomas do que à etiologia dos problemas subjacentes e concebidas para trabalhar tanto o ambiente como o equilíbrio interno do indivíduo, técnicas que dispensavam entrevistas prolongadas e que se centravam na neutralização de conflitos potencialmente explosivos. Esta nova ênfase representou uma ruptura com as noções tradicionais de técnica, mas não uma rejeição da técnica como tal. Na verdade, resultou numa renovada insistência nas virtudes do conhecimento especializado enraizado nos conhecimentos básicos ensinados pelas escolas médicas e que exigem uma longa aprendizagem profissional". (pág. 301-302)

Capítulo O MUNDO PSY. A sociedade psiquiátrica. Castel, Castel e Lovell.

[A questão da competência técnica, evidências validadas e a profissionalização utilizada nas práticas baseadas em evidências (medicina baseada em evidências e psicologia baseada em evidências) é semelhante à contraestratégia de reconquista de influência pela psiquiatria biológica após a críticas da contracultura nos anos 60. De forma semelhante, é possível utilizar essa proposta para restringir a influência da perspectiva crítica com ênfase social ou biológica.]

sábado, 20 de janeiro de 2024

Gøtzsche, ensaios clínicos randomizados e experimentação

Peter Gøtzsche tem um domínio excelente dos ensaios clínicos randomizados mas nessa metodologia não há tanto rigor no controle de variáveis como há na experimentação sem o uso de estatística pois pacotes ou conjuntos de variáveis são avaliados. Por isso, embora impopular com o público do blogue e da reforma psiquiátrica antimanicomial seria necessário comparar os resultados de Peter Gøtzsche e da psiquiatria crítica com as pesquisas experimentais em farmacologia comportamental, neurociência comportamental, psicobiologia e a área de biocomportamental.

Uma das tarefas e disputas da reforma psiquiátrica é um diálogo permanente com a área de substratos biológicos ou fisiologia do comportamento ou dos construtos diagnósticos. Considero que o blogue já conseguiu encontrar caminhos para o conhecimento sub-representado em críticas à psiquiatria biológica e a área de reforma psiquiátrica antimanicomial. No entanto, o diálogo com o conhecimento experimental geralmente não é feito por nenhum dos dois lados da disputa e por isso corresponde nessa caracterização ao estado atual de conhecimento sub-representado na área de saúde mental.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Psiquiatria como conhecimento limitado

Se entendermos conhecimento de boa qualidade a capacidade de manipulação bem sucedida então podemos considerar a psiquiatria biológica um conhecimento da má qualidade pois essa área enfatiza as limitações ou o quanto os problemas de saúde mental são incapacitantes. Por outro lado, oferece o incentivo à aposentadoria para compensar isso ou para não consistir em uma área que enfatiza apenas o negativo. A psiquiatria sempre tem uma desculpa discursiva para si mesma que é a "gravidade da doença mental".


segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Erro metodológico nas pesquisas de desequilíbrio químico

Erro metodológico nas pesquisas de desequilíbrio químico

Além dos estudos de gêmeos idênticos, outra linha de pesquisa às vezes foi alardeada por apresentar evidências convincentes de causalidade biológica de distúrbios comportamentais. Existem dois tópicos principais para esta linha de pesquisa. O primeiro é feito na autópsia e envolve análises microscópicas da estrutura celular do tecido cerebral de indivíduos que sofreram transtornos mentais em vida. Esses estudos tendem a mostrar consistentemente a estrutura celular diferencial para aqueles que eram esquizofrênicos, deprimidos, etc., vis-à-vis aqueles que não sofreram nenhum distúrbio. Hipoteticamente, um estudo típico pode mostrar que 60% dos cérebros de esquizofrênicos continham quantidades excessivas do neurotransmissor dopamina-4, enquanto apenas 10% dos cérebros de normais continham quantidades excessivas da substância química. À primeira vista, isso pareceria fornecer evidências convincentes de que, para muitos esquizofrênicos, o excesso de dopamina-4 desempenhou um papel causal importante em seu transtorno. No entanto, há outra interpretação desses dados, que enfraquece qualquer conexão causal inferida entre o neurotransmissor e a esquizofrenia. O exame dos números absolutos refletidos pelas porcentagens acima, 60% e 10%, fornece uma imagem menos convincente. Se considerarmos que a população adulta (porque a esquizofrenia raramente é diagnosticada em crianças) dos Estados Unidos é de cerca de 200 milhões, então existem cerca de 2 milhões de esquizofrênicos no país (com base na noção comumente aceita de que cerca de 1% da população é esquizofrênico). Se 60% deles têm níveis excessivos de dopamina-4, então cerca de 1,2 milhão de esquizofrênicos americanos têm quantidades excessivas da substância química em seus cérebros. Então, sem contar os 2 milhões que são esquizofrênicos, permanecem cerca de 198 milhões de adultos americanos que não são esquizofrênicos, 19,8 milhões (10%) dos quais têm excesso de dopamina-4. Nesse cenário, os não esquizofrênicos superam os esquizofrênicos em mais de dezesseis para um. É difícil argumentar que um nível elevado de neurotransmissor é a causa de um distúrbio específico quando essa elevação é encontrada com muito mais frequência em indivíduos que nunca sofreram do distúrbio. No entanto, os pesquisadores tendem a relatar porcentagens, menos as referências extrapoladas para os números da população que seguem logicamente a partir dessas porcentagens.

Referência:

Wyatt, W. J., & Midkiff, D. M. (2006). Biological Psychiatry: A Practice in Search of a Science. Behavior and Social Issues, 15(2), 132–151. https://doi.org/10.5210/bsi.v15i2.372

sábado, 31 de julho de 2021

Pesquisas tendenciosas na psiquiatria

Pesquisa que estabelece eficácia clínica

Na nossa sociedade tecnológica, a pesquisa científica é o processo que examina e valida reivindicações de eficácia terapêutica. Embora este processo seja projetado para ser imparcial e objetivo, é realizado hoje dentro de um clima em que  interesses comerciais e corporativos empunham o controle crescente sobre as atividades de universidades e cientistas (Krimsky, 2003). Isso é especialmente verdadeiro para pesquisa sobre a eficácia da droga. Companhias farmacêuticas financiam 70% dos ensaios clínicos avaliando a eficácia da droga (Bodenheimer, 2000), mas a aprovação de drogas que valem bilhões de dólares anualmente dependem inteiramente desses resultados de estudos.

Isto cria um conflito entre os motivos científicos para obter dados objetivos e motivos comerciais para legitimar um produto altamente lucrativo. Há muitas maneiras de projetar estudos de avaliação de medicamentos ou relatar dados resultantes que podem ampliar a aparente segurança e eficácia da droga. Algumas dessas formas, observados em estudos de medicamentos publicados, incluem: não comparar a droga a um tratamento que não a droga (e., comportamental), não comparando a droga a um placebo, não mantendo procedimentos duplos-cegos, medindo muitos resultados e falhar em não corrigir diferenças significativas obtidas por acaso, apresentando dados e análises enganosas, e apresentando conclusões que não concordam com os resultados (Bero & Rennie, 1996). Outro jeito que uma nova droga pode ser feita para parecer eficaz é comparando-a a uma droga antiga que é dada em altas dosagens que são quase tóxicas ou tóxicas. Numerosos estudos avaliando medicamentos antipsicóticos atípicos foram realizados desta maneira comparando a medicação atípica para haloperidol (ou uma droga equivalente) dada a dosagens mais altas do que recomendadas (Geddes et al., 2000; mais seguro, 2002).

Suprimindo evidências mostrando seus efeitos adversos e a eficácia limitada também podem aumentar a ostensiva segurança e eficácia de um produto farmacêutico (mais seguro, 2002). Empresas farmacêuticas que financiam estudos muitas vezes exigem que os investigadores assinem contratos dando às empresas o direito de aprovação pré-publicação para todos os relatórios de pesquisa.

Empresas farmacêuticas obstruíram a liberação de achados desfavoráveis ​​sobre produtos potencialmente lucrativos, atrasando a aprovação de relatórios de pesquisa, retenção aprovação de tais relatórios (Vergano, 2001), ameaçando a ação legal se o investigador tentativas de publicar o relatório e ameaçando o financiamento futuro se o autor tentar publicar a pesquisa em questão (Bodenheimer, 2000). O resultado final desses seletivos processos é que os dados de pesquisa publicados disponíveis para o público podem ser tão distorcidos que pode deturpar completamente a evidência científica existente.

Dados não publicados de ensaios clínicos para as três novas drogas antipsicóticas comercializadas nos anos 90, Zyprexa (Olanzapina), Risperdal (Risperdal) e Seroquel (quetiapina), obtido a partir do FDA através de solicitações de liberdade de informação, aumentando as perguntas problemáticas sobre sua eficácia (Whitaker, 1998, 2002). Em ensaios para estes três medicamentos 60% dos 7.269 pacientes que receberam a droga experimental abandonaram antes do período do estudo ser encerrado (em ensaios para seroquel, 80% dos 2.162 sujeitos caíram), tipicamente seis a oito semanas. Os pacientes abandonaram o estudo porque as drogas não foram úteis, por causa dos efeitos colaterais, ou porque eles simplesmente se recusaram a continuar participando. Tal alta taxa de abandono seria esperada para inclinar dados para os assuntos restantes em uma direção favorável, mas a extensão do abandono dos sujeitos e suas implicações foram encobertas sobre os estudos publicados sobre essas drogas.

Liberação seletiva de informações que distorcem a eficácia percebida não é isolada para drogas antipsicóticas. Drogas antidepressivas são onipresentes no tratamento da depressão e é geralmente assumido que sua eficácia foi cientificamente validada. No entanto, Kirsch, Moore, Scoboria e Nicholls (2002), usando a liberdade de ato de informações para obter resultados de ensaios clínicos nos seis mais amplamente prescritos antidepressivos aprovados entre 1987 e 1999 (Prozac, Zoloft, Paxil, Effexor, Serzona e celexa), descobriu que de 47 ensaios realizados nos seis medicamentos apenas 20 mostraram vantagem mensurável de drogas sobre placebo. 

Esta é uma proporção muito menor de eficácia do que é encontrado na literatura publicada. Além disso, a diferença clínica - em oposição a diferença estatística - entre os grupos de drogas e placebo foi bastante pequeno. Pacientes que receberam as drogas melhoraram uma média de 10 pontos na depressão de 52 pontos Escala Hamilton de classificação, enquanto os pacientes expostos ao placebo melhoraram em pouco mais de oito pontos. Os autores descreveram a diferença de dois pontos no Hamilton como "clinicamente sem significado." Pelo menos duas outras análises independentes de dados do FDA também mostraram que medicamentos antidepressivos tiveram uma vantagem estatisticamente significante sobre o placebo inerte em menos da metade dos ensaios controlados randomizados (Antonuccio, Danton, & McClanahan, 2003).

Influenciando o processo de aprovação do FDA

Desde a missão da administração de alimentos e drogas U.S. (FDA) é garantir que o público obtém drogas seguras e eficazes (US FDA, 2004), pode-se supor que todas as drogas que recebem aprovação da FDA e vendidas legalmente neste país atenderiam a esses critérios. No entanto, como outras agências reguladoras governamentais, a FDA é suscetível a "captura" pela indústria que se propõe a regular (Abraão, 1995). Um mecanismo de captura é a infiltração da agência reguladora por consultores de especialistas ou funcionários que têm vieses favoráveis ​investidos no setor. A indústria farmacêutica parece já ter conseguido fazer tais incursões. Uma história de manchete de uma  Edição de setembro 2000 dos EUA relatou hoje "... que mais da metade dos especialistas contratados para aconselhar o governo sobre a segurança e a eficácia da medicina tem relações financeiras com as empresas farmacêuticas que serão ajudadas ou feridas por suas decisões ... " (Cauchon, 2000). Mais importante, nos últimos anos proponentes vocais da indústria de medicamentos e ex-executivos da indústria farmacêutica foram nomeados para a posições administrativas de alto escalão dentro da FDA, reduzindo ainda mais a capacidade do FDA para monitorar a segurança, eficácia e custo-eficiência de medicamentos (Angell, 2004; Cohen, 2001). Talvez parcialmente devido a tais compromissos, a FDA foi criticada por suprimir conclusões de um dos seus próprios analistas de segurança drogas que estavam prestes a relatar que esses antidepressivos (por exemplo, Zoloft, Paxil) aumentaram o potencial de suicídio entre crianças e adolescentes. Só depois recebendo uma reavaliação independente que confirmou a conclusão do seu próprio especialista, e depois que o governo britânico proibiu o uso dessas drogas com crianças e adolescentes (Goode, 2003), e após audiências públicas em que pais e profissionais acusaram o FDA de não fornecer proteção adequada os funcionários da FDA reverteram sua inicial postura e exigiram que os fabricantes de drogas emitissem etiquetas de aviso que esses produtos poderiam fazer os pacientes se tornarem suicidas (Harris, 2004).

Influenciando a opinião profissional

Empresas farmacêuticas capitalizam a propensão dos médicos para tratamento de drogas e usam extensas estratégias de publicidade para convencer os médicos a prescrever seus produtos particulares. Geralmente esses anúncios promovem drogas mais novas e mais dispendiosas do que as drogas mais antigas cujas as patentes expiraram.

Página completa, anúncios de cor mostrando recuperações dramáticas supostamente trazido com drogas psicotrópicas ocupam muitos dos mais prestigiados periódicos psiquiátricos, incluindo os arquivos da psiquiatria geral e da revista americana de psiquiatria. Visitas pessoais por representantes da empresa farmacêutica é outra maneira de disseminar informações e influenciar hábitos de prescrição e uma grande proporção dos médicos admitem que dependem desses contatos como o principal meio de obter informações sobre novas drogas (Valenstein, 1998, p. 166; Brown & Funk, 1986). As empresas de medicamentos também fornecem apoio financeiro para conferências profissionais, simpósios, grandes rodadas e workshops em que discutem e recomendam fármacos. Como induzimentos para participar dessas reuniões as empresas farmacêuticas pagaram a passagem aérea, alojamento, alimentos e dado a eles mil dólares (Siegel, 2001). Empresas de drogas e médicos negam que essas atividades e presentes "educacionais" afetam diretamente as práticas prescritas; Mas a reivindicação que estas campanhas cuidadosamente projetadas e caras foram perseguidas sem intenção de que as vendas de drogas parecem menos do que honesto.

Influenciando e deturpando a opinião pública

Como resultado da desregulamentação federal, as drogas são vendidas ao público com os mesmos anúncios que são usados ​​com sucesso para comercializar carros, roupas e limpadores de cozinha ("Drogas milagrosas ou drogas de mídia", 1992). Estes anúncios, trabalhados pela artistas da Madison Avenue, evocam reações emocionais, criam associações e dão sugestões para comprar produtos com um poder que os analistas de comportamento podem invejar. Ao mesmo tempo, estes anúncios foram criticados pela quantidade limitada de informações que contêm sobre o distúrbio sendo tratado, efetividade real e efeitos adversos do medicamento sendo promovido ou tratamentos alternativos (Wolfe, 2002). Em 1999, as empresas farmacêuticas gastaram US $ 13,7 bilhões de dólares para anúncios (Cohen, McCubbin, Collin, & Perodeau, 2001).

Um uso furtivo de recursos financeiros é o financiamento das simpatia das organizações cidadãs a explicações biomédicas e tratamento farmacológico para problemas que podem servir como "grupos frontais" para iniciativas da indústria farmacêutica. As empresas de medicamentos forneceram generosas subsídios aos grupos de defesa do paciente, como a Aliança Nacional para o Mentalmente doente (NAMI), que entre 1996 e 1999 recebeu um total de US $ 11,7 milhões de 18 empresas de drogas, (Silverstein, 1999). Crianças e adultos com Transtorno de Déficit de Atenção (CHAAD) é outro grupo de defesa que recebeu apoio substancial da indústria farmacêutica (DIGANDPRE, 1999, p. 18; Valenstein, 1998, p. 179). Em troca, essas organizações podem atuar como representantes de pacientes e suas famílias pressionando funcionários do governo e legisladores para apoiar pesquisa e tratamentos biomédicos (Cohen & McCubbin, 1990; Mosher & Burti, 1994).

Alocação tendenciosa de serviços governamentais e fundos de pesquisa para o Modelo biomédico

Aferição à doutrina biomédica, governo e agências de serviços fornecem recursos para intervenções e pesquisas consistentes com esta ideologia e reter recursos para atividades inconsistentes com essa abordagem. A mudança para abordagens biomédicas reduziram o que foi uma proporção relativamente pequena de fundos federais para pesquisa de saúde mental psicossocial para um nível ainda mais insignificante. Bolsas fornecidas pelo Instituto Nacional de Saúde mental para a psicologia e os departamentos de ciências sociais diminuíram de mais de 35% de todas as subvenções a departamentos acadêmicos no final dos anos 70 para menos de 25% nos anos 90 (Instituto Nacional de Saúde mental, 2001). Os fundos realmente alocados para pesquisa psicossocial eram provavelmente menos do que esses números sugerem. Por uma estimativa, apenas 6% da pesquisa financiada pelo Instituto Nacional de Saúde mental (NIMH) sobre a esquizofrenia em 1987 envolveu tratamento psicossocial ou prevenção com estratégias não biológicas (Cohen, 1993). Cortes no financiamento federal para pesquisa psicossocial previsivelmente trazem um declínio na quantidade e qualidade deste empreendimento. Prenunciando este declínio, o Laboratório comportamental de pesquisa de Skinner e Lindsley's na Harvard Medical School foi fechado em 1965, devido em parte a dificuldade em obter fundos de pesquisa do governo para apoiar a instalação (Rutherford, 2003).

Vieses contra a pesquisa comportamental podem operar no nível estadual, bem como do nível federal. Um caso em questão é a pesquisa do Dr. Gordon Paul. Dr. Paul é um clínico psicólogo e professor distinto que conduziu a mais intensiva e longa avaliação de um programa de economia de fichas até o momento (Paul & Lentz, 1977; Liberman, 1980).

O experimento controlado randomizado de Paul e Lentz mostrou que a economia de fichas ultrapassou suas comparações, uma comunidade ou ambiente terapêutico e um tradicional hospital, em resultados práticos da taxa de libertação hospitalar, dias restantes na comunidade, e reduziu os custos por paciente (Glynn & Mueser, 1986; Paul & Menditto, 1992). A economia de fichas também alcançou melhores resultados do que o hospital tradicional enquanto requerendo menos medicação psicotrópica. Depois de completar este importante projeto, o Dr. Paul procurou financiamento do NIMH e a Fundação MacArthur para replicar seu trabalho. Em discussões com a equipe da agência Dr. Paul recebeu forte encorajamento de que sua proposta pesquisa seria financiada. No entanto, na etapa final antes de enviar a proposta formal de pesquisa, o recém nomeado diretor do Departamento de Saúde Mental do Texas  se recusou a assiná-lo. A razão pela qual o diretor deu para não aprovar a proposta foi: "Todos os pacientes mentais crônicos precisam é um diagnóstico apropriado do DSM e medicamento correto. Não haveria pacientes mentais crônicos se os psicólogos e os assistentes sociais não estivessem no controle ". (G. Paul, Comunicação Pessoal, 23 de setembro de 2001).

Se vieses pró-biomédicos operarem nas burocracias federais e estaduais, razão que eles também reinariam em departamentos de psiquiatria, escolas de medicina e instalações de pesquisa afiliadas. Isso representa uma barreira formidável para psicólogos comportamentais desejando trabalhar com transtornos mentais graves, porque as nomeações nos departamentos de psiquiatria pode ser uma das poucas entradas nessa área de prática. Em 1982, enquanto trabalhando na minha primeira posição profissional como psicólogo de pesquisa assistente com o Departamento de Psiquiatria da UCLA e do Centro de Pesquisa do Estado Camarillo, vários dos meus colegas e eu respondemos a um pedido interdepartamental de propostas de pesquisa (quantidade máxima: 5 mil dólares). Nós enviamos sete propostas para estudos investigando novos procedimentos comportamentais para melhorar o funcionamento adaptativo (por exemplo, habilidades interpessoais, grooming e autocuidado, comportamento de trabalho, atividade recreativa) e diminuir o comportamento mal adaptativo (por exemplo, discurso psicótico, agressão) em pessoas com transtornos mentais crônicos. Todas essas propostas incluíram dados piloto sugerindo que o projetos propostos de pesquisa teriam resultados positivos. Alguns meses depois, nós estávamos decepcionados ao saber que nenhuma de nossas propostas recebeu fundos. Apesar dessa falta de Suporte, procedemos com os projetos de qualquer maneira. A maioria desses estudos e suas spin-offs eventualmente foram publicados em periódicos comportamentais ou psiquiátricos respeitáveis ​​(Corrigan, Liberman, & Wong, 1993; Massel, Corrigan, Liberman, & Milan, 1991; Wong, et al., 1987; Wong, et al., 1993; Wong, Flanagan, et al., 1988; Wong, Wright, Terranova, Bowen, & Zarate, 1988; Wong & Woolsey, 1989). Mais tarde, ouvimos que um neuropsicólogo no corredor de nós havia sido concedido mais de 50 mil doláres do dinheiro do departamento para estudar a relação de lateralidade (direita ou esquerda) para a esquizofrenia. Naquela época, a pesquisa sobre a lateralidade na esquizofrenia examinou a relação entre este distúrbio e domínio hemisférico, mas a utilidade desta informação não foi e não é clara. Parecia que nossos estudos comportamentais, que mostraram promessa imediata de desenvolvimento de técnicas mais eficazes para melhorar o funcionamento adaptativo dos pacientes e diminuir comportamentos problemáticos, haviam sido ofuscados em favor de pesquisa orientação biológica que tinham aplicabilidade incerta em 1982, e que 20 anos depois ainda se comprovam infrutíferas. 

Referência:

Wong, S. E. (2006). Behavior Analysis of Psychotic Disorders: Scientific Dead End or Casualty of the Mental Health Political Economy? Behavior and Social Issues, 15(2), 152–177. https://doi.org/10.5210/bsi.v15i2.365

domingo, 17 de julho de 2016

Psiquiatria vive crise por falta de provas científicas, diz Nobel

http://abp.org.br/portal/clippingsis/exibClipping/?clipping=14944

Psiquiatria vive crise por falta de provas científicas, diz Nobel
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A psiquiatria está em crise porque falta comprovação biológica para seus conceitos. Essa é a opinião do neurobiólogo Eric Kandel, 81, ganhador do Prêmio Nobel de Medicina de 2000.

O cientista da Universidade Columbia, de Nova York, premiado por seus estudos com memória, desembarca nesta semana no Rio de Janeiro para participar do Congresso Brasileiro de Psiquiatria.

Em entrevista à Folha, Kandel condenou o uso de remédios como a ritalina (droga para tratar deficit de atenção) para melhorar a concentração de pessoas saudáveis.

Ele falou também sobre a validade da psicanálise, que pode cobrir lacunas da psiquiatria, caso adote padrões científicos mais rígidos. O pesquisador comentou também sobre sua nova invenção: um camundongo "esquizofrênico" para testar medicamentos.

Folha - Psiquiatras estão debatendo mudanças no manual de diagnósticos de transtornos mentais. Muitos acham que o livro não pode tentar ser muito objetivo. O que o sr. acha?

Eric Kandel - A preocupação com a objetividade foi introduzida há uns 20 anos quando houve uma tentativa de validar os critérios do manual para descrever transtornos. Isso foi extremamente importante para que diferentes psiquiatras pudessem dar o mesmo diagnóstico a um mesmo paciente.

O que é triste é que não houve muitos avanços desde então. Uma das razões para isso é que os psiquiatras não têm os chamados "marcadores biológicos" à disposição. Se você diagnostica diabetes ou hipertensão, pode usar medições objetivas, independentes. Não precisa se basear apenas naquilo que o paciente lhe conta. Nós, psiquiatras, ainda temos que recorrer à história do paciente.

O único grande avanço foi o trabalho de Helen Mayberg sobre depressão e a área chamada 25 do córtex cerebral. Ela descobriu que pessoas deprimidas tendem a ter hiperatividade nesta área. Quando os pacientes são tratados e os sintomas revertem, isso pode ser observado na área 25. Em pacientes para os quais drogas ou psicoterapia não haviam funcionado, ela descobriu que a estimulação cerebral [com sinais elétricos] poderia ter sucesso.

Mas, à exceção do trabalho de Mayberg, não temos outros exemplos.

Precisamos desesperadamente de bons marcadores biológicos. Sem isso, podemos publicar quantas edições quisermos do manual, que não chegaremos a lugar nenhum.

Algumas pesquisas pioneiras sugerem que vítimas de estresse pós-traumático poderiam se beneficiar de drogas que apaguem suas memórias ruins. Isso já foi feito em ratos. O que o sr. acha disso?

É assustador. Não gosto nem um pouco dessa idéia. Eu gosto da idéia de drogas que estimulem a memória. Se você tem problemas de memória, não há razões para não tomar algo para melhorar. Livrar-se de memórias é muito perigoso. Eu lido melhor com a idéia de que as pessoas tentem se acostumar com suas memórias. Há varios tipos de tratamento para essa dessensibilização. Acho OK tentarem se livrar da ansiedade associada à memória.

Acho aceitável também, que, em uma guerra, soldados tomem drogas betabloqueadoras para que não tenham uma reação excessivamente emocional com a experiência. Mas aniquilar memórias é uma coisa ruim. Você é quem você é por causa das memórias. O caráter das pessoas não deve ser submetido a cirurgias farmacológicas.

Houve progresso no entendimento dos mecanismos biológicos de algum outro transtorno psicológico?

Acho que houve no próprio caso do transtorno do estresse pós-traumático. Nós sabemos alguma coisa sobre a atividade da amígdala cerebral, que fica hiperativa nessas pessoas. Algumas pessoas estão desenvolvendo interessantes tratamentos de dessensibilização em conjunto com o uso de fármacos. É possível ver algum progresso nisso no futuro.

Isso é importante hoje, pois vivemos num momento em que há mais incidentes e mais vítimas entre soldados aqui nos EUA do que havia na Segunda Guerra Mundial. Por que o numero aumenta? Uma das razões pode ser a maior facilidade de se fazer diagnósticos, mas outra coisa é que, naquela época, havia um programa americano que enviava psiquiatras para servir nos campos de batalha. E eles estavam à disposição dos soldados quando estes precisavam. Isso pode ter feito diferença.

O sr. vei aqui para apresentar um camundongo geneticamente modificado que seu grupo criou para o estudo da esquizofrenia. A esquizofrenia afeta capacidades mentais humanas. Como é possível usar um camundongo para estudá-la?

A esquizofrenia tem três classes de sintomas. Há os "positivos" ilusões, alucinações e loucura, os "negativos" _reclusão, isolamento social e falta de motivação --e os "cognitivos"-- a dificuldade de organizar as ideias e trabalhar. É difícil criar um modelo para estudar os sintomas positivos em cobaias, mas podemos modelar os cognitivos e negativos.

Criamos um camundongo cujo corpo estriado [estrutura no núcleo do cérebro] produz em excesso uma proteína que os neurônios usam para captar o neurotransmissor dopamina. Essa é uma lesão genética que ocorre em parte dos pacientes com esquizofrenia e, funcionalmente, leva a uma característica compartilhada pela maioria dos esquizofrênicos. Nós obtivemos então camundongos que claramente têm problemas de memória de curto prazo e em funções cognitivas. Os mesmos roedores têm dificuldade de interação social e baixa motivação.

A falta motivação não é um sintoma mais característico da depressão do que da esquizofrenia?

É um sintoma compartilhado pelas duas doenças, mas é um aspecto muito importante da esquizofrenia. Nós encontramos um medicamento que supera essa deficiência e a restaura ao normal. Achamos que isso poderá ser útil para tratamentos de depressão também.

Quão longe essa droga está de chegar ao mercado?

Nós fizemos só os testes em camundongos. Estamos agora conversando com empresas farmacêuticas em busca de alguma que esteja interessada em experimentá-la em pessoas. Ainda é uma fase bem inicial.

O que o sr. acha de usar drogas, como a ritalina (receitada para deficit de atenção) para "turbinar" a inteligência, aumentando a concentração?

Não acho que seja boa ideia para pessoas saudáveis. Essas drogas devem ser prescritas para pessoas com problemas cognitivos. Não devem nunca ser vendidas sem receita. Não são vitaminas.

O sr. vem falar no Brasil, onde a psicanálise é relativamente bem aceita. Nos EUA, não é assim. Que papel o sr. vê para as ideias de Freud hoje?

Não vejo problema em ler Freud da mesma forma que lemos Nietzche, Dostoiévski ou Shakespeare --grandes pensadores que escreveram sobre a mente humana. Mas se você quer que a psicanálise seja uma terapia eficaz, é preciso ter estudos que mostrem resultado. É necessário explicar o que ocorre no cérebro. Isso seria e trabalhoso, mas é precisa ser feito.

O maior problema não é com Freud, mas com aqueles que o sucederam. Eles não desenvolveram uma tradição científica na psicanálise. O treinamento para psicanálise deveria mudar, de forma que uma parte das pessoas formadas se dedicasse exclusivamente à pesquisa.

Como será possível provar a eficácia da psicanálise em termos objetivos? Seria como comparar a eficácia de uma droga a um placebo?

Você conhece Aaron Beck? Ele era um psiquiatra da Universidade da Pensilvânia, uma pessoa incrível, que já estava interessado em testar as idéias de Freud 40 anos atrás. Freud afirmava que pessoas deprimidas têm uma grande carga de ira que se volta contra elas mesmas, de maneira inconsciente.

Ele ouvia então os relatos de sonhos dos pacientes --pois os sonhos são "a estrada de ouro" para se acessar o inconsciente-- e descobriu que esses pacientes não estavam mais irados que qualquer outra pessoa. Essas pessoas, porém, tinham uma distinção característica: elas se consideravam "perdedoras" na vida. Achavam que tinham falhado no casamento e no trabalho, que não eram bons pais etc.

Quando Beck tentou olhar para o que estava acontecendo, ele viu que muitos deles na verdade estavam se saindo bastante bem em suas vidas. Beck, então, apontou a discrepância entre como esses pacientes achavam que estavam se saindo e como eles realmente funcionavam na vida. Ele os ajudou a mudar a maneira de pensar e de funcionar, e isso foi possível com umas 20 sessões de terapia.

Ele escreveu então um livro com sua "receita", e outras pessoas seguiram seu método, com sucesso.

Depois disso Beck criou grupos para comparação: um grupo de pessoas que não recebiam nada além de medicamentos antidepressivos e um de pessoas que passaram por seu método, a terapia cognitivo-comportamental. Depois, comparou o desempenho de cada um com placebo.

Ele viu que em casos de depressão suave ou moderada, esse tipo de psicoterapia era tão bom quanto inibidores seletivos de recaptação de serotonina [principal classe de drogas antidepressivas]. Em casos de depressão severos a diferença não era tanta, mas o efeito da psicoterapia combinado com os medicamentos era melhor que o das pílulas sozinhas.

Isso foi um marco sobre como estudos podem avaliar os resultados da psicoterapia. É por isso hoje que o sistema de saúde britânico reembolsa gastos de pacientes de terapia cognitivo-comportamental, mas não os de outros tipos de psicoterapia.

É isso que precisa ser feito com a psicanálise. É preciso ter um grupo de controle, um grupo experimental, um placebo. É preciso comparar a psicanálise à terapia cognitivo comportamental.

Já existem algumas tentativas de se fazer isso hoje, e elas parecem encorajadoras. É possível imaginar que alguns pacientes precisem de uma abordagem que os ajude a olhar melhor para si próprios, algo que a terapia cognitivo-comportamental não faz. Ela é um tipo de terapia que não discute com você como sua mãe e seu pai te tratavam. Ela lida com o aqui e agora.

Em algumas circunstâncias, ela pode funcionar bem, mas em outras talvez seja preciso explorar melhor o passado da pessoa, onde a psicanálise ajudaria. É preciso descobrir quais são essas circunstâncias.

Não existe hoje uma aceitação maior de que a mente descrita por Freud possui estruturas correlatas no cérebro, como o id, o ego e o superego?

Sim. O córtex pré-frontal está muito relacionado à moralidade e ao julgamento de valores, por exemplo. Uma lesão nessa região do cérebro pode tornar uma pessoa amoral, um psicopata.

Mas acima disso, a ideia geral de Freud sobre processos mentais inconscientes é muito importante para nossas vidas. Boa parte de nossa atividade mental é inconsciente. Isso acabou se mostrando uma verdade universal.

Por que os EUA não se encorajaram com as idéias de Freud?

Há muitas razões. A principal delas é que psicanálise é absurdamente cara e leva muito tempo. Hoje, todos nós temos menos tempo do que dispúnhamos duas décadas atrás. Isso é verdade para acadêmicos, para homens de negócios e para pessoas que poderiam pagar pela psicanálise.

Um outro problema é que, nos círculos médicos, a psicanálise havia prometido algo que não poderia cumprir.

Greta Bibring, uma charmosa vienense discípula de Freud, foi chefe do departamento de psiquiatria na Escola Médica de Harvard entre as décadas de 1950 e 1960. Ela era muito admirada lá e convenceu as pessoas de que a psicanálise iria solucionar todos os problemas que a medicina não conseguia resolver naqueles dias.

Isso foi antes de existirem tratamentos eficientes para hipertensão, por exemplo, e outros tipos de problema que só vieram a ser mais bem compreendidas depois. A promessa de Bibring é que várias dessas doenças eram psicossomáticas e poderiam ser resolvidas com psicanálise.

Quando ficou claro que nenhuma dessas doenças reagia à psicanálise, houve uma grande decepção, e isso desencorajou muitos médicos acadêmicos que antes apoiavam Freud. Foi uma grande perda.

Depois disso veio a pressão do dinheiro, a pressão do tempo, vieram as psicoterapias de curto prazo e as vieram as drogas psiquiátricas _Prozac e companhia limitada. As pessoas começaram buscar a saúde mental de outras maneiras.

O sr. passou também passou a infância em Viena, quando Freud ainda vivia lá, e também teve de fugir do nazismo. Isso o influenciou em sua maior aceitação à psicanálise?

Isso teve efeitos positivos e negativos em mim. De um lado, parte de minha vida era superar o transtorno do estresse pós-traumático, porque foi uma experiência terrível. Mas eu fui influenciado pela cultura de Viena, tinha muitos amigos cujos pais eram psicanalistas, e tinha interesse nisso. Só desisti da psicanálise quando me apaixonei pela neurobiologia.

Eu deixei Viena aos nove anos com meu irmão de catorze. Nós cruzamos o Atlântico depois, cada um de nós sozinho. Talvez eu estivesse aterrorizado, mas não me lembro muito bem disso. Meus pais vieram para cá alguns meses depois. Houve um estranhamento. Eu era um forasteiro aqui nos EUA, usava roupas europeias não falava inglês, não tinha dinheiro...

Mas acho que a origem do meu interesse em transtorno pós-traumático é diferente. Eu me interessava por psicanálise e me interessei pelos mecanismos de armazenamento de memória porque é um assunto central da psicanálise.

Acabo de finalizar meu novo livro "The Age of Insight", que tenta combinar neurociência e arte, do século 19 até aqui. Está previsto para sair em março. É uma tentativa minha de passar isso a limpo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

domingo, 8 de junho de 2014

CRISE DA PSIQUIATRIA E CONTRADIÇÕES INSTITUCIONAIS

http://psicologogeofilho.no.comunidades.net/index.php?pagina=1769586659_37


Por psicólogo Geofilho Ferreira Moraes
CRP-12/10.011
Data: 28 de maio de 2011
BASAGLIA, Franco. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 326 p.
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GIOVANNI JERVIS

           CRISE DA PSIQUIATRIA E CONTRADIÇÕES INSTITUCIONAIS

   O ESCOPO PRINCIPAL deste trabalho é o de avaliar alguns problemas que a equipe diretora de um hospital psiquiátrico enfrenta. Trata-se de problemas que podem ser examinados a partir de várias ordens de considerações. Em primeiro lugar, aqueles que surgem diretamente da experiência concreta de uma determinada equipe, que em nosso caso é representada pelo staff do Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorizia. Em segundo lugar, aqueles que se referem a um exame geral da posição de quem trabalha em uma instituição psiquiátrica qualquer, inserida numa realidade social determinada. Por fim, aquelas considerações ainda mais gerais que derivam do conhecimento da escolha dos próprios instrumentos de análise, em um contexto institucional.
   Os problemas que nos propomos derivam diretamente de uma prática particular, a de um hospital psiquiátrico, e não podem ser generalizados imediatamente: sua origem e seu âmbito de verificação empírica permanecem setoriais, limitados ao campo de ação de um trabalho quotidiano que se desenvolve dentro de uma instituição. Sob outro aspecto, a mesma crítica que examina e modifica uma instituição por dentro, em vez disso se expande para a tomada de consciência e a tomada de posições que procuram ter um significado mesmo fora de seus confins.
   Além da “crítica do manicômio” certamente se abrem, dentro daquele quadro, perspectivas de análise e de experiência que ultrapassam os temas da “humanização” e da “modernização” da assistência psiquiátrica. Inevitavelmente surgem novos problemas que não são estritamente institucionais. Tais problemas se prendem, de um lado, a um exame mais atento das condições do manicômio, as <251>
quais se mostram ligadas à estrutura da sociedade, ao passo que, de outro lado, eles nos levam a uma série de aprofundamentos teóricos sobre o conjunto da psiquiatria e à crise de seus objetivos. A crise da instituição psiquiátrica nos reporta, enfim, não só a uma crítica geral das instituições em sentido restrito, mas tende a pôr em questão, com a psiquiatria, a validade da “separação técnica” como forma particular da divisão do trabalho e como institucionalização repressiva do poder.
   É nossa convicção que a análise das instituições manicomiais e de sua crise fornece um ponto de vista e uma série de critérios operacionais particularmente fecundos para revelar, em uma série de aprofundamentos e exames, alguns dos enganos “culturais” que hoje parecem cada vez mais necessários para a manutenção do status quo da sociedade.
   Convém que nos conscientizemos, para finalizar este ponto, da presença de um duplo e simétrico perigo: o do empirismo e o das abstrações generalizantes e não examinadas.
   O perigo do empirismo provém da incapacidade de aplicar os instrumentos apropriados de análise teórica àquilo que é o ponto de partida de toda a crítica dos manicômios: a indignação pela desumanidade do manicômio tradicional. Com essa indignação há o risco de serem propostas reformas que são prisioneiras da própria estrutura que a engendrou. A proposta de reformar empiricamente o hospital psiquiátrico conduz a uma ideologia da criminalidade terapêutica, limitando-se apenas a adiar o problema fundamental. Por outro lado, o reformismo é a primeira resposta à atitude típica de desresponsabilização dos psiquiatras que dirigem os manicômios: talvez de boa fé, eles alegam que nada podem fazer para mudar verdadeiramente a instituição e atribuem a falta aos políticos e aos administradores que não fornecem as leis, os regulamentos e os financiamentos. Na realidade, as imagens dos manicômios (locais opressivos, velhos, superlotados, miséria de pessoas e de coisas, negligência e atraso técnico, violência encoberta ou manifesta, embrutecimento na inação) justificam plenamente a tentação do reformismo empírico: é necessário fazer qualquer coisa, imediatamente, para mudar ao menos um pouco uma situação gravíssima. Essa exigência é respeitada e é encorajada com tanto mais força quanto mais é verdadeiro e verificável que as estruturas de organização dos manicômios podem ser transformadas pelos médicos diretamente responsáveis, desde que eles o queiram. A indignação a que nos referimos
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deve levar à identificação do erro, e mesmo a culpabilidades bem individualizadas.¹
   Portanto, se por um lado a idéia de uma responsabilidade e de uma culpa direta dos médicos do manicômio demonstra a possibilidade e a exigência de que “em todo caso se faça alguma coisa”, mesmo que no plano do simples reformismo empírico, por outro lado é bem verdade que tal reformismo constitui a pedra de toque das reais intenções de seus promotores. Efetivamente, ou o reformismo é dirigido no sentido de uma solução do problema do manicômio, ou então ele chegará ao seu limite, como contradição, objeto de crítica indispensável e ponto de partida de proposições mais radicais e coerentes.
   O perigo oposto ao empirismo é o de uma denúncia de caráter abstrato, de uma denúncia global, extremista e imprecisa. Esta pode também ter seu valor e nós pessoalmente achamos que esse é o caso, apesar das aparências, porquanto o risco de uma facção “enfurecida” poderá ser a melhor maneira de se opor às velhas críticas “científicas”, “objetivas” e “equilibradas” ao sistema social. Contudo, não se diz que uma denúncia deste gênero deve partir necessariamente do âmbito do manicômio.
   A propósito de certas técnicas de grupo utilizadas pelos hospitais psiquiátricos como instrumentos “modernos” numa estrutura institucional praticamente inalterada, falou-se, em Gorizia, de socioterapia como álibi institucional. Na realidade o assunto pode ser levado um pouco mais adiante, e se hoje se prefere falar de comunidade terapêutica em vez de manicômio, pode-se muito bem mencionar, permitindo-se uma crítica, a “comunidade de terapêutica como álibis institucionais”, e por fim, logicamente, da crise das “instituições como álibi”. O perigo dessas contestações sucessivas
Nota de rodapé
   1. A experiência de Gorizia demonstra, pelo menos, que um manicômio dos mais tradicionais pode ser radicalmente transformado em suas estruturas sem qualquer auxílio de caráter legislativo, administrativo ou financeiro, e sem que as condições sociais e psicoambientais se diferenciem sensivelmente das da maioria das províncias italianas. (Pode-se acrescentar, incidentalmente, que sob este aspecto a diferença principal entre a situação de Gorizia e a do resto da Itália consiste provavelmente apenas na percentagem sobremodo elevada de problemas de alcoolismo, um aspecto que certamente não facilita o trabalho. Quanto às vantagens decorrentes da pequena extensão da província, é indubitável que estas são amplamente compensadas por outras desvantagens particulares, entre as quais, em primeiro lugar, a grave carência de recursos financeiros.)
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não está em seu aspecto extremista, mas em sua aceitabilidade sugestiva: elas são facilmente aceitas de modo abstrato e apreciadas também devido ao seu caráter anticonformista e “revolucionário”. Pelo mesmo motivo são freqüentemente aceitas com entusiasmo as considerações muito superficiais sobre o “mito da doença mental”, sem que se tornem claras as dificuldades e as contradições provocadas por uma destruição, embora necessária, da imagem tradicional (tanto “vulgar” como “científica”) da loucura.
   Portanto, se impõe a necessidade de chegar a uma crítica radical de numerosos lugares-comuns e de álibis incessantemente renovados, isso não é possível a não ser em função de uma prática. Não é necessário que se trate de uma prática institucional: trata-se apenas de ver se uma prática institucional permite verificar suficientemente as tomadas de posição que, consideradas isoladamente, podem ser acusadas, de pleno direito, de extremismo abstrato. Neste contexto ainda é necessário acrescentar que, se por um lado o ensino de novas formas de contestação sempre está um passo à frente de cada experiência, por outro lado também é verdade que não se pode falar de contestações, a não ser partindo cada vez de uma contestação previamente verificada. Portanto, toda experiência concluída tende a ser validada pelo próprio sucesso e, assim, a constituir a sua própria ideologia: mas é da recusa dessa ideologia, isto é, de uma autocrítica, que tende a surgir a contestação ulterior.
   Neste ponto surge o problema da especificidade da organização psiquiátrica. A defesa tradicional da instituição psiquiátrica sempre parte do argumento da especificidade técnica: os doentes mentais devem ser tratados, pois não se pode negar que eles necessitam de tratamento; eles devem ser tratados de modo particular, porquanto existem dificuldades e limites técnicos (avaliáveis somente por pessoas competentes) que impedem terapias mais rápidas, mais eficazes e menos desagradáveis. Nesta perspectiva, sobre cuja falsidade será necessário que nos detenhamos por um instante, não existem relações diretas entre a forma de assistência psiquiátrica e a organização da sociedade. Esta última, desenvolvendo-se no sentido do progresso, poderá fornecer melhores medicamentes, um número maior de leitos, pessoal mais qualificado e locais mais acolhedores e mais bem organizados, mas a forma de assistência sempre será decidida pelos psiquiatras com base em seus conhecimentos.
   Antes de retomarmos este ponto convém assinalar a existência de um perigo inverso: o de estimar que a organização psiquiátrica de determinado país seja perfeitamente coerente com a estrutura
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social dominante. Cedendo a essa tentação poderá parecer demasiado fácil centrifugar o problema dos distúrbios mentais reduzindo-os às contradições sociais, e pensando que as organizações terapêutico-assistenciais obedecem diretamente à lógica do poder. Os riscos, a este propósito, são os de que se pense que o poder (para nos atermos a um plano mais concreto: o poder capitalista) constitui um sistema homogêneo, livre de contradições, identificável em seu objeto principal, o “capital”, e no plano racional por uma elite neocapitalista; e de pensar, paralelamente, que as organizações psiquiátricas se modificam e se estruturam sem contradições, segundo os esquemas políticos dominantes. Na realidade é necessário considerar a hipótese de que as organizações psiquiátricas estejam “atrasadas” ou “diferentes” em confronto com as exigências institucionais da sociedade em geral, isto é, que elas tenham em certa medida, apesar de tudo, sua própria história e sua especificidade. Só neste ponto será possível examinar o caráter “anacrônico” das estruturas institucionais e pesquisar na história e na análise do presente as relações entre os hospitais psiquiátricos, de um lado, e as teorizações psiquiátricas, as ideologias dominantes e as exigências mais imediatas da conservação da ordem social, de outro.
   Coloquemos, por um instante, entre parênteses, o problema da doença mental, isto é, da “especificidade” (no sentido ao qual aludíamos) das formas de terapia que tornam necessárias as instituições psiquiátricas como tais. Nesta perspectiva é possível examinar a estrutura da assistência psiquiátrica como forma de controle repressivo. Retornemos à origem histórica dos hospitais psiquiátricos e àquela que atualmente justifica a sua existência, segundo a opinião comum, as leis estatais, e seu regulamento interno: a função constitutiva de tais instituições não é primariamente terapêutica, mas repressiva. Os manicômios ocupam-se em defender os cidadãos de alguns sujeitos cujo comportamento é desviado, uma vez que os médicos tenham estabelecido que tal desvio é devido a doença: os sujeitos “perigosos para si e para os outros ou que provoquem escândalo público” são segregados. Partindo dessa premissa, o problema pode ser inserido num contexto mais amplo e descrito segundo várias formulações.²
Nota de rodapé
   2. Convém admitir que, no texto que se segue, a expressão “quadro institucional” é usada em sentido amplo, diferentemente do sentido que lhe vínhamos dando.
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   “O quadro institucional é constituído das normas sociais. Estas podem ser violadas, e são sancionadas pela violência. Os motivos que induzem a pisotear as normas sociais derivam da satisfação antecipada de impulsos. Nós sempre interpretamos o mundo com os olhos de nossas necessidades, e essas interpretações se conservam no conteúdo semântico da linguagem quotidiana. Portanto, é fácil ver que o quadro institucional de uma sociedade preenche duas finalidades diferentes. De um lado consiste na organização da violência que pode reprimir a satisfação dos impulsos, e de outro é um sistema de tradições culturais que articulam o conjunto de nossas necessidades e pretendem satisfazer os impulsos. Esses valores culturais correspondem também às interpretações das necessidades que não se integram no sistema da autoconservação — conteúdos místicos, religiosos, utópicos, isto é, as consolações coletivas, bem como as fontes da filosofia e da crítica. Uma parte desse conteúdo é reorientada e usada para a legitimação do sistema de domínio”.³
   O sistema de domínio compreende indubitavelmente os hospitais psiquiátricos. No que se refere aos “conteúdos” de que se fala, estes dizem respeito também à ideologia do doente mental e à ideologia da custódia. Sobre essa ideologia baseia-se a legitimação de todas as “organizações da violência” que se ocupam dos sujeitos cujo desvio é atribuído a distúrbios mentais. O papel dessas ideologias, entretanto, não se restringe a uma simples apologia ou cobertura a posteriori das infâmias dos manicômios, assim como as infâmias dos manicômios não são o único modo pelo qual se expressa a repressão organizada daquela “satisfação antecipada de impulsos” de que fala Habermas. A imagem cultural da loucura e de sua repressão não contém apenas a justificação global da psiquiatria como teorização especializada erigida em defesa do homem são, mas serve também para reorientar as necessidades de liberdade, definindo esta última como aquilo que é “licitamente são”, em contraposição à loucura, imagem de uma liberdade não tolerada.
   É muito difícil retraçar os componentes psicológicos do estereótipo cultural dominante da loucura, porquanto tal estereótipo já se apresenta institucionalizado nas atitudes que encorajam e sancionam
 
Nota de rodapé
   3. JÜRGEN HABERMAS, “Consequenze pratiche dei progresso tecnico-scientifico”, Cuaderni Piacentini, VI, n.° 32 (outubro de 1967), pp. 72-91 (p. 87).
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o poder social (autoridade civil) e o poder médico. Por outro lado não há necessidade de temer que reconheçamos a existência de um terreno no qual entram em jogo dinâmicas psicológicas inteiramente particulares.
   A importância dessas dinâmicas psicológicas só pode ser esboçada, embora considerando que seria assaz difícil verificá-la acuradamente mediante uma pesquisa. Pode-se considerar em primeiro lugar o significado das prisões: a própria exclusão dos delinqüentes, nas prisões, é uma confirmação indireta da honestidade dos cidadãos que estão fora delas, e portanto constituem um instrumento de coesão (“separação”) social. Os presos nos cárceres são necessários para colocar uma barreira segura e não transponível (nas duas direções) entre a ordem e a desordem; é também perfeitamente claro quais são os atos que levam à segregação carcerária. Entretanto, no que diz respeito às sanções institucionais da loucura, portanto dos hospitais psiquiátricos, é fácil observar que ninguém saberia, com precisão, o que se deve fazer para evitá-los. E não é só isso: qualquer um de nós sente obscuramente que toda aprendizagem de um comportamento “são” é uma fastidiosa e sempre frágil conquista nos confrontos da desordem psíquica. Esta última está muito próxima, porém encoberta: sempre reprimida, mas atrás da porta. Eis que o manicômio se identifica com a própria necessidade de tornar clara e distinta a categoria dos comportamentos anormais. O fato de que, os “doidos” são discriminados e acabam dentro dos hospitais define os confins da normalidade e premia as imagens do comportamento “aceitável”. A aprendizagem da normalidade não é aqui a simples procura de um equilíbrio, mas a garantia recíproca dê pertencer a um mundo no qual todas as coisas devem ser controláveis e sensatas. Aquele que paga o devido preço para manter a sua saúde psíquica sabe, vagamente, que o próprio sacrifício é elevado demais para que não se constitua, de repente, num privilégio.
   Se nessa exclusão da loucura entram em jogo mecanismos de violência presentes no contexto social, isto significa que a atitude de exclusão contra o louco já está permeada de uma violência institucionalmente aprovada. Por outro lado, a própria violência da sociedade é controlada e sancionada: somente o psiquiatra, em seu manicômio, tem a liberdade de agir, sem qualquer controle social, e mesmo investido de uma vez por todas de um poder que a sociedade de bom grado lhe oferece. O sistema continua a tutelar as próprias vítimas (também nos cárceres), somente na medida em
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que a sanção do desvio determina nos subordinados comportamentos tais, ainda envoltos na ética da violência e da produtividade. O doente mental, escória irracional da racionalidade social, é aniquilado porque é o único a escapar totalmente às regras do jogo. A psiquiatria institucional pode dirigir contra ele toda a violência da sociedade, principalmente porque a norma da sociedade expulsa de si, identificando-a no doente mental, a imagem “incompreensível” e “perigosa” da possibilidade de uma reviravolta que a tornaria algo completamente diferente e “desordenada”. O homem não se defende da tentação de recusar uma coerência que é também uma cumplicidade, projetando em tal indivíduo indefeso uma agressividade que ele não poderia voltar contra outros, e que, a todo instante, pode destruí-lo; para o indivíduo são a fatigante aceitação de um “princípio de realidade” socialmente determinado impõe que ele exteriorize essa tensão, objetivando-a. A “normalidade” de seu ser é assim confirmada por uma máscara inumana que ele aplica ao louco: recusando reconhecer-se neste último, ele aceita de bom grado a inumanidade de sua subordinação.
   A exclusão do louco é sancionada e justificada pela psiquiatria. Se existe uma “cultura” geral da saúde e da doença mental, não há qualquer dúvida de que o psiquiatra dela participa. De resto, ele não é o produto de uma instituição abstrata, mas sua função realça o papel e a ideologia geral do poder médico. Já discutimos em outro lugar, a propósito de um trecho conhecido de Talcott Parsons, o fato de que a ideologia técnica médica é ela própria, em grande parte, uma mistificação. O médico é um indivíduo dotado de um certo poder, e para usá-lo ele tem que aceitar o mito da onipotência que o paciente lhe confere; o psiquiatra, porém, diferentemente do clínico e do cirurgião, é investido de um poder muito maior, e não se vale de sua onipotência técnica para agir setorialmente sobre uma parte do corpo que pertence ao doente, mas age de modo global sobre o doente, que lhe pertence.
   É lícito, pois, duvidar que a psiquiatria possa definir claramente as particularidades que fazem com que um comportamento desviado seja de sua competência. Existe, entretanto, um problema preliminar: este diz respeito à presença, cientificamente demonstrada, de uma doença à base de um comportamento anormal, que serve para justificar uma extensão abusiva do conceito técnico de desvio e assim favorece projetos tecnocráticos de discriminação, repressão e reeducação dos comportamentos desviados. Poder-se-ia observar, logo, que aqueles psiquiatras que, como especialistas,
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tendem a seqüestrar em seu universo psicobiológico problemas de competência social, são perigosos reacionários. Poderá acontecer que o sejam, e é fácil constatar, em todo caso, que esses servidores do poder, ocultando-se através de sua técnica incompreensível, procuram camuflar e transmitir, junto com aquisições científicas (ou sem elas), motivos ideológicos bem precisos ligados à defesa de valores e interesses historicamente definidos. Na realidade, o caráter revolucionário do uso do conceito de desvio, por parte dos psiquiatras, não implica de modo algum em escolha política e ideológica: a própria idéia de que determinado comportamento desviado possa receber uma definição técnica em termos médicos-psiquiátricos implica na possibilidade de que o desvio em geral seja definido segundo critérios que nada têm de comum com o relativismo sociológico, e que por conseguinte fogem à possibilidade de uma crítica política. Paralelamente, uma definição de certas formas de desvios psiquiátricos se refere, inevitavelmente, a modelos gerais de normalidade. Portanto o risco está tanto em uma extensão “abusiva” da definição técnico-psiquiátrica do desvio quanto no próprio fato de que a definição em si, mesmo que se aplique a uns poucos casos, tende imediatamente a assumir um caráter universal.
   A psiquiatria tradicional tinha sobre este ponto, até há poucos anos, uma linha de defesa aparentemente sólida. Sendo a psiquiatria de origem positivista, um comportamento é anormal (pelo menos na teoria) não por suas características fenomênicas, mas porque ele não é mais do que a manifestação externa, direta, de uma doença das funções superiores do sistema nervoso. Se é indiscutível que, um fígado afetado pela cirrose é anormal, deve ficar igualmente claro em que consiste o caráter mórbido da loucura e de todos os distúrbios mentais: uma desordem tem algumas características intrínsecas que a definem como tal; é a perda de funções, a desagregação, a morte, e não um desvio com relação a uma norma convencional. Na realidade o próprio conceito de doença em geral não era nada fácil de definir e a assimilação dos distúrbios mentais à doença orgânica acabava por se dar num plano empírico e aproximativo. Refazendo-se da medicina naturalista da Antiguidade clássica e abandonando as próprias premissas iluministas e “rurais” típicas do surgimento da psiquiatria moderna em fins do século XVIII e início do século XIX, a psiquiatria positivista conquistava as suas posições em fins do século passado, consolidando-as com a descoberta da etiologia sifilítica da paralisia progressiva.
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A existência dos treponemas nos cérebros dos paralíticos fornecia a base de uma “psicose modelo”, da qual provieram todas as outras interpretações de doenças no campo psiquiátrico, o que parecia prometer uma reconciliação entre a psiquiatria e a medicina geral.
   Costuma-se pensar que esta visão “orgânica” das doenças mentais tenha sido superada pelas concepções “dinâmicas” introduzidas por Freud e seus sucessores, e que o velho modelo da doença mental como enfermidade do cérebro tenha sido superado pela constatação de que as neuroses, e provavelmente também as principais psicoses, não se desenvolviam sobre o substrato de qualquer lesão demonstrável.
   Esta concepção “moderna”, ainda parcial, é contestada por uma série de motivos. Em primeiro lugar, não é tão evidente que Freud tenha construído um modelo interpretativo dos distúrbios mentais substancialmente diferente do modelo mecanicista; mas reconhecendo a Freud o mérito de ter provocado a primeira e mais decisiva ruptura dos velhos esquemas, é perfeitamente defensável a teoria de que ele tenha introduzido um mecanismo de novo tipo, tanto determinista como a - histórico. Em segundo lugar, a hipótese de que em muitos comportamentos rotulados de “distúrbios mentais” haja uma efetiva “desordem” (qualquer que seja o significado deste termo) das funções nervosas superiores não pode ser descartada com demasiada facilidade, e de qualquer modo leva a problemas de extrema complexidade. Em terceiro lugar, enfim, é discutível se a psiquiatria positivista se fundamenta verdadeiramente, na prática, no modelo da doença tomado da medicina geral. Durante todo o século XIX e até hoje a psiquiatria continuou a definir o próprio campo de ação assinalando os limites externos de um sistema taxonômico fundamentado sobre o reagrupamento de distúrbios “típicos” do comportamento em sistemas e subsistemas nosográficos. Em outras palavras, o esforço de classificação, na impossibilidade de fazer da psiquiatria uma ciência, continuou, na prática, a fundar um sistema empírico baseado na descrição fenomênica dos comportamentos, bem como na reconstrução de disfunções inadmissíveis que não era possível desvendar.
   A crise da psiquiatria positivista surgiu, na realidade, de toda uma série de outros motivos, que talvez se reduzam a um só: a impossibilidade de incluir os distúrbios de comportamento entre os fenômenos objetivamente descritíveis em termos naturalistas. Não
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há dúvida que, em parte, se trata de uma falência empírica, de uma bancarrota geral: a psiquiatria, considerada quer como pertencente ao âmbito das disciplinas médicas, quer como ao das ciências do homem, cumpriu bem poucas de suas promessas. Sobre as causas da grande maioria dos distúrbios mentais, sabe-se pouco ou nada; como terapia, a situação não é muito melhor; e se é certo que os medicamentos têm um efeito pouco mais que sintomático, duvida-se, ainda, do significado da psiquiatria. No plano teórico, a falência da psiquiatria “médica” conduziu a uma série de outras tentativas de síntese: e esta é toda a história da psiquiatria contemporânea, de Freud aos nossos dias. Para compreender quanto a situação mudou, basta ler os velhos escritos de Kraepelin, ou Babinski, e compará-los com os autores “modernos”: com Suilivan, com Binswanger, com Laing. O que impressiona, nos clínicos do fim do século XIX, é o extraordinário respeito pelos fatos. A doença mental, então, estava presente tanto nos gestos afetados do esquizofrênico como no córtex do demente: para o sábio que os observa, trata-se de estímulos sensoriais de igual valor, de objetos a recolher e a elaborar como dados de um sistema. Assim, o doente mental já é um sistema a ser descoberto, totalmente fechado em si mesmo, dotado de suas próprias leis ainda em parte ignoradas, separado do observador, que de modo algum participa do seu universo. O próprio conceito de comportamento parece volatilizar-se continuamente perante as categorias interpretativas do psiquiatra: o doente mental é uma entidade isolada que apenas funciona (e mal), e não se comporta. Mas para que isto seja assim, o psiquiatra deve negar as próprias categorias e qualquer relação entre sujeito e objeto, demonstrando que o doente, pura objetividade, não está assim porque ele próprio o objetiva, mas porque pertence ao mundo dos fatos dos quais se ocupa a ciência. A esse mundo de objetos não é possível aplicar qualquer categoria interpretativa, pela boa razão de que os fatos se reconstituem por si, segundo suas próprias categorias, ao passo que o sábio os recolhe em número suficiente e com uma perfeita neutralidade.
   Hoje sabemos que a ciência moderna se move em perspectivas bem diferentes. Os fatos já não falam por si, o observador está presente na pesquisa e não fora dela, com suas intervenções práticas, suas categorias de interpretação, sua ideologia. O naturalismo empírico e a metafísica imanente do positivismo foram superados e definitivamente enterrados. Para a psiquiatria essa abolição foi, de um lado, particularmente radical, e de outro lado, parcial e ineficaz.
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   No plano teórico foram reunidas as condições necessárias para a abolição do empirismo médico e do positivismo objetivante. Isso ocorreu principalmente em duas etapas: primeiro, com a desmistificação da separação tradicional entre “são” e “doente”, por Freud, no campo da psicopatologia; depois, com a descoberta do caráter “humano” (com toda a ambigüidade que o termo comporta) das dinâmicas psicológicas tradicionalmente consideradas “doentes”, pelos psiquiatras existencialistas. A destruição das justificativas manicomiais da loucura, de que trata a presente obra, provou não só a impossibilidade de considerar o doente mental segundo critérios especiais, diferentes dos que vinham sendo usados para o indivíduo são, mas também demonstrou que o problema “científico” do “distúrbio” não existe, a não ser na medida em que o comportamento de certas pessoas é artificialmente reconduzido a uma alteração funcional do sistema nervoso. Entretanto o erro não consiste tanto em supor a possibilidade de tal deterioração funcional, quanto em identificá-la com o comportamento “alterado”: este último não pode ser corretamente compreendido a não ser quando inserido na dinâmica das relações interpessoais e sociais que lhe deram uma imagem. Mesmo no caso em que é possível colocar em relação mútua o “distúrbio” do comportamento e uma lesão (“doença”) cerebral, essa lesão não é mais que um ponto intermediário em uma série de eventos precedentes que concorreram para causá-la, e em uma cadeia de acontecimentos ulteriores que determinaram o modo de reagir do indivíduo à sua inferioridade. O que não é mais possível sustentar é o caráter “natural” da doença e a possibilidade de uma relação direta de causa e efeito entre a mais ou menos hipotética disfunção cerebral e o modo como o “doente” consegue (ou não consegue) viver em sociedade. Na maioria dos casos, entretanto, a hipótese de uma lesão cerebral parece infundada, artificiosa e irrelevante, porquanto o distúrbio interpessoal só adquire sentido no âmbito daquela dinâmica social que progressivamente lhe deu forma, criando o seu doente, e subtraindo-lhe gradativamente a possibilidade de manter relações sociais. Nessa perspectiva, mesmo o exame do doente por parte do psiquiatra tende a perder seu caráter tradicional e se estabelece no quadro de uma relação interpessoal que não é mais aquela relação dicotômica “psiquiatra-paciente”, mas se transforma num confronto de dificuldades recíprocas devidas a um contexto social que cria papéis diversa- mente definidos. Esses papéis definem a psiquiatria. A diferença principal entre o psiquiatra e o doente que está à sua frente não
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consiste no desequilíbrio entre saúde e doença, mas num desequilíbrio de poder. Uma das duas pessoas tem um poder maior, talvez um poder absoluto, que lhe permite definir o papel da outra segundo sua própria terminologia. Voltaremos a tratar deste ponto.
   No plano prático, ao contrário, a psiquiatria fica largamente ancorada ao empirismo médico, do qual ela não deixou de derivar os valores. Ainda hoje a maioria dos professores universitários, com os mesmos gestos de seus professores do século XIX, conduzem o doente mental ao anfiteatro e o “demonstram” aos estudantes, como se exibissem um fígado cirrótico sobre a mesa de anatomia: os movimentos, as palavras do enfermo, continuam sendo “fatos”, não atos situados num contexto. Desta maneira a objetivação prática da loucura reflete com exatidão a gestão do doente mental pelas instituições psiquiátricas.
   Já falamos das contradições entre a psiquiatria antipositivista moderna e a prática psiquiátrica como disciplina médica e como tratamento institucional. Na realidade existem relações entre esses dois pólos aparentemente opostos e vale a pena examiná-las.
   Após Sullivan, a psiquiatria moderna, em sua parte mais ativa e mais lúcida, tomou consciência do fato de que o distúrbio mental, longe de ser um problema individual, dentro do corpo objetivado do doente, só pode ser corretamente apreciado em seu aspecto interindividual. Entretanto os critérios aplicados ao exame desses problemas sempre derivam fundamentalmente da psicologia e da psicanálise: em vez de estudar como os problemas sociais e políticos influem nas dinâmicas de grupo e as determinam em sua realidade histórica, tem-se preferido estender o exame psicológico e psiquiátrico até o domínio social, subtraindo este último à crítica política.
   Deste modo foram dadas as condições para realizar o velho sonho do iluminismo, de reconduzir a um controle racional todos os comportamentos, desviados, mais uma vez imputados a distúrbios psicológicos, a descarrilamentos passionais. Os psiquiatras receberam do poder mandatos os mais amplos, e a doença mental foi reinterpretada como disfunção psicológica de todas as relações sociais. A psiquiatria assim se entregou de mãos e pés atados aos guardiões da ordem social, responsáveis pela definição de normas, desvios e sanções, segundo o seu próprio critério.
   Uma parte da psiquiatria moderna tomou consciência da existência desse problema e constatou que agia e teorizava em função
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de valores sociais não definíveis em termos psiquiátricos, mas aptos, pelo contrário, a definir a natureza da psiquiatria. Um setor no qual essa consciência tomou forma de modo mais preciso é o do desequilíbrio do poder e da diferença de papéis e valores que determinam no plano concreto o encontro médico-paciente. A psiquiatria social e a psiquiatria interpessoal examinaram tanto o contexto social sócio-cultural no qual o paciente é definido como tal quanto a relação “terapêutica” como sistema de interação psicológica: a própria psiquiatria, enquanto prática psiquiátrica, tornou-se objeto da psiquiatria. Também aqui, entretanto, o psiquiatra apenas elevou o nível de sua pesquisa: ao considerar a si mesmo, em sua relação com o paciente, como objeto da própria disciplina, ele confirmou a validade substancial desta última. O psiquiatra continuou aceitando o mandato social, por reconhecer seu caráter convencional: ele tem admitido, por exemplo, que o jovem delinqüente ou anti-social possa ser considerado mais ou menos doente, segundo as normas sociais; que a neurose é um problema coletivo; que a mãe de um esquizofrênico pode estar, em certo sentido, mais doente do que o filho; que a terapia individual não tem significado maior (e talvez tenha significado menor) do que tinha a terapia de grupos familiares ou grupos de trabalho; ele consentiu em conceder aos próprios opositores que a psiquiatria tende a integrar o indivíduo em função das exigências do poder; aceitou, enfim, a idéia de que tinha tanta necessidade de ser tratado quanto seu paciente. O que ele não conseguiu aceitar foi colocar em causa sua própria natureza de concessionário do poder e sua própria subordinação às normas que esse poder estabelece. Continua dono da situação.
   Mesmo quando, como dizíamos acima, a relação psiquiatra- paciente é vivida como “crise”, o paciente continua sendo examinado à luz de uma nova teoria que, tendo renunciado em apelar à psiquiatria tradicional, não pôde no entanto renegar a si mesma nem à sua pretensão científica, nem às normas e aos valores que reivindica para si.
   A psiquiatria, portanto, reuniu todas as condições para sua destruição mas não soube tirar as conseqüências. Os hospitais psiquiátricos continuam testemunhando essa falência: as bases teóricas da psiquiatra se dissolveram e a psiquiatria continua a existir como puro poder. Aqui convém precisar que, com toda probabilidade, o poder coercitivo da psiquiatria de fato não tenderá a diminuir com o passar dos anos, nem a se dissolver na “livre” relação do paciente rico que alimenta a ilusão de escolher a própria terapia, escolhendo
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o próprio terapeuta e a própria clínica: a psiquiatria industrial, por um lado (em seu aspecto de reeducação para a produtividade e para o consumo), e a psiquiatria institucional, por outro, provavelmente estão destinadas a alargarem juntas o próprio campo de ação. Assim como o especialista em psiquiatria, juntamente com o psicólogo, o psicanalista e o sociólogo, serve para reeducar o cidadão para o consumo ou para a adesão ao poder, independentemente da presença, nele, daquilo que continuamos a chamar de “distúrbio mental”, também as instituições psiquiátricas se modificam internamente (o processo já está em curso) para governar com segurança aqueles exclusos que não são imediatamente reintegráveis: os associais e os anti-sociais que as megalópoles industriais hoje tendem a produzir e a afastar do jogo da produtividade competitiva, em número que cresce de ano para ano. A quantidade crescente de asilos para “inadaptados” ou “vagabundos” indica-nos a direção obrigatória de uma repressão psiquiátrica mais extensa nos anos futuros; a psiquiatria moderna já forjou os instrumentos teóricos necessários para suas novas tarefas.
   A reforma institucional provém apenas em parte da crise da psiquiatria moderna. Os exemplos de manicômios “abertos” do século XIX demonstram não só que é possível liberalizar um hospital psiquiátrico sem o auxilio dos sedativos hoje em uso, mas também que sempre existe um terreno empírico no qual não é tão difícil iniciar a ruptura do círculo vicioso dos manicômios. Se a violência institucional desaparece, desaparece também a violência do doente mental, e, este muda de aspecto: perde suas características descritas nos velhos, tratados, desaparece como “catatônico”, “agitado”, “dilacerador’, “perigoso”, para enfim mostrar-se sob sua verdadeira luz, sob seu aspecto de pessoa psicologicamente violentada antes e depois de seu internamento. O doente mental perde suas características “incompreensíveis” à medida que consegue inserir sua própria enfermidade num contexto em que são respeitadas a existência e as razões.
   Porém os problemas surgem a partir deste ponto e é o enfermo quem os apresenta ao médico. A crise da psiquiatria moderna oferece-nos hoje os meios para verdadeiramente compreendermos o que se passa num contexto institucional liberalizado, e nos permite deixar para bem mais adiante a destruição da instituição. Uma vez aberta porta, o processo continua e tende a tornar-se irreversível, mas vem acompanhado de novas contradições.
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   As contradições internas da instituição resumem-se na dificuldade de abolir a subordinação do enfermo, superando o perigo do paternalismo. As contradições externas dizem respeito ao fato de que o espaço do manicômio não é destruído, porquanto a sociedade lhe envia seus excluídos, submetendo-os a uma legislação bem precisa. O recuperado não encontra trabalho, ou encontra a mesma dinâmica de violência familiar e social que o haviam levado ao manicômio; o doente descobre que pode ser livre dentro da instituição, mas que não pode sair quando quer sem desencadear mecanismos de repressão definidos.
   A progressiva destruição interna da organização do manicômio tende a criar um espaço vital onde o uso de instrumentos de autogoverno parece prometer a solução de todos os problemas de convivência; mas é a sociedade externa que impõe limites intransponíveis, e que ainda intervém continuamente para impedir que o hospital renovado seja uma ilha fora do mundo. À medida que os problemas internos não são “resolvidos” por providências do tipo “democrático”, “comunitário” ou “progressista”, mas sobretudo discutidos e sempre recolocados, eles inevitavelmente acabam na confrontação direta com problemas mais reais, que não dizem respeito às disfunções marginais de um comunitarismo auto-satisfeito, mas ao aspecto impessoal e burocrático da violência social. Num hospital psiquiátrico provincial não se correm os riscos típicos das comunidades terapêuticas privadas, onde a própria pré-seleção dos pacientes segundo o nível social e as formas mórbidas constitui a base para uma proteção dourada contra o choque da sociedade externa: aqui, ao contrário, as disposições legais sobre manicômios, as imposições burocráticas e, sobretudo, a “pobreza”, a falta de recursos, a impotência dos hospitalizados, são um dado real que impede toda mistificação.
   Se mencionamos rapidamente este aspecto do hospital psiquiátrico em via de transformação, fizemo-lo para melhor definir as características daquele personagem ambíguo que, frente ao enfermo, aparece tanto como parte da realidade interna quanto como mandatário da sociedade externa: o que trata do doente, médico ou enfermeiro.
   Aqui deixaremos de lado os enfermeiros, embora eles nos ofereçam ocasião para uma digressão de grande importância; mas uma vista d’olhos na sua situação poderá ajudar-nos a definir melhor a ambigüidade particular em que se encontra o médico. Mesmo nos
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hospitais psiquiátricos mais tradicionais, o enfermeiro, além do caráter “arbitrário” de seu poder sobre o enfermo, ainda estabelece com ele uma relação direta que o médico não chega a estabelecer. Motivos de afinidade cultural e a própria proximidade, durante muitas horas por dia, favorecem o contato, que conserva seu caráter de relação pessoal, mesmo quando subordinado a mecanismos abertamente sádicos, como era freqüente nos velhos manicômios. O caráter que distingue este tipo de relação é a falta de mediações racionais, de ideologias expressas de forma objetiva, de diafragmas científicos.
   Entre o médico e o enfermo, ao contrário, há quase sempre uma mediação. Aqui não nos referimos à situação dos manicômios clássicos, onde não se poderia falar de uma “relação médico-paciente”, porquanto tal relação inexiste, mas da situação nas instituições em transformação, onde a tentativa do médico de renunciar ao próprio poder se choca com o caráter irrenunciável de uma superioridade de sapiência, que é privilégio cultural e de classe. As reflexões do médico sobre sua relação com o paciente, de que este livro é exemplo, são a última expressão de um privilégio que sempre tende a se refletir na imagem intelectual que o médico privadamente faz de si mesmo e do enfermo, mediante o auxílio de conhecimentos e de instrumentos teóricos de que o enfermo não dispõe. Sobre esse desequilíbrio fundamental articulam-se todas as dificuldades mais concretas que tornam ambíguo o papel psiquiátrico.
   No hospital psiquiátrico em transformação a equipe dirigente experimenta o próprio mal-estar como uma divisão entre a adesão a papéis e valores tradicionais e uma tensão antiinstitucional privada de novos papéis e de valores claramente definidos.
   A equipe sempre é responsável pelo “bom andamento” do hospital nos confrontos com a opinião pública e com as autoridades legais, e sabe que sua liberdade de ação é limitada pela tolerância social, pela boa disposição de um procurador da República, pelo próprio fato de que ela encarna, frente ao mundo exterior, um poder técnico e uma imagem de prestígio social que parcialmente a põe a salvo da violência daqueles que prescrevem que o hospital deve ser fechado e os enfermos confinados em lugar seguro. Não obstante, a equipe tende á renunciar ao mandato institucional, e não se trata de uma renúncia de pouca monta. O mandato social impõe não a destruição da instituição, mas sim a sua manutenção;
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não a renúncia àquele tecnicismo psiquiátrico que dá validade à repressão, mas sim a sua utilização; não a crítica ao papel opressivo ou integrante da psiquiatria, mas sim a validação da “seriedade” dessa disciplina para justificar a opressão e a integração; não o favorecimento do poder de contestação dos exclusos e dos oprimidos, mas sim a defesa dos privilégios daqueles que excluem e oprimem; não a criação de uma estrutura horizontal nos hospitais, mas sim o espelhamento, de forma absoluta, da hierarquização da sociedade externa; não a submissão a uma crítica permanente da técnica de manipulação das consciências, mas sim o fornecimento, à sociedade, de estruturas assistenciais “modernas” que sejam funcionais e não ultrapassem os limites impostos pela lei e pelas convenções culturais.
   A denúncia dos manicômios hoje se reveste de uma forma científica, ou pelo menos se articula segundo uma crítica claramente teorizada. Por outro lado, essa teorização, se ela indica aquilo que não se deve fazer, nada prescreve de preciso: se a psiquiatria moderna está unida em se negar a si própria, ela não diz ao psiquiatra como ele deve agir para renunciar ao próprio mandato. A única indicação diz respeito à exigência de que médico e paciente se confrontem e assumam novos papéis, esquecendo que um é médico e o outro é doente; mas o desequilíbrio nos papéis efetivamente existe, e o paciente é um recluso na instituição, assim como o médico continua a viver segundo os valores da liberdade, da inteligência que raciocina, da própria responsabilidade social.
   Em outras palavras, a realidade institucional “liberalizada” mais uma vez reapresenta a psiquiatria como problema.
   As dificuldades se situam ao nível do paciente, que não consegue recuperar a própria separação, contestando-a; e ao nível do médico, a quem a tentativa de renunciar à própria superioridade e seus privilégios coloca em conflito com ele mesmo. Mas a maior contradição refere - se ao médico, que, diferentemente do paciente, não tem que conquistar a sua liberdade para sobreviver e se repropor ao mundo, mas tem que renunciar a uma universo cultural classista onde ele goza de privilégios. O médico permanece, pois, tenazmente aferrado a essa situação social, à maneira de pensar da sua classe, às presunções da sua formação científica, à ideologia do produtivismo, à propriedade (inclusive a propriedade intelectual), à supremacia individual. Não lhe é fácil libertar-se de tudo isso, nem mesmo dar o primeiro passo: não bastam uma escolha voluntária,
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uma diligência benevolente e neuroticamente reparadora, ou uma mais ou menos ingênua aprendizagem comunitária.
   Toda a dinâmica antimanicomial se complica pelo fato de não se desenrolar no terreno de uma reivindicação de poder (no sentido político) por parte do paciente, mas no mundo ainda fechado de uma instituição que não tem outro objetivo senão o de conservar sua própria existência. O paciente vive num mundo de separação. Como excluído, é o bode expiatório da organização coercitiva da exploração na sociedade externa, mas não é diretamente o explorado. Ele é a escória e a vítima extrema da violência social, mas, expulso pela violência produtiva e confinado à violência institucional, não consegue opor-se ao mundo político da produtividade, porque este último o excluiu do universo de seus eventuais inter-locutores. A relação que existe entre a exploração e a exclusão está turvada, e o internado que procura se reapropriar da sua exclusão e a ela se opõe não tem à sua disposição os instrumentos adequados para contestar a exploração que ela provocou. O enfermo num hospital psiquiátrico não pode comparar-se com o produtor de bens e de serviços, mesmo inserido num sistema que dele pretende a “livre” alienação de sua força de trabalho: alienado como pessoa na instituição, ele é inútil ao sistema na medida em que sua presença institucional, o internamento forçado, agora concorre apenas indiretamente para a estabilidade social.
   O segundo obstáculo à dinâmica antimanicomial é a presença persistente da inteligência médica. O exemplo mais típico é o do psiquiatra que aconselha o paciente (entenda-se, para seu bem) a tomar um, remédio que o ajudará a dormir quando ele está cansado, a controlar-se melhor quando está agitado, a desintoxicar-se quando bebe. O paciente (agora, mas não sempre) está sendo tratado. Em certos casos ele pode tratar-se a si mesmo tomando um sonífero quando não pode dormir, ou é confiado aos cuidados de outros internados: mas a destruição do papel institucional do médico encontra aqui um de seus limites mais dificilmente transponíveis. Mesmo que o médico tire seu jaleco branco, concorde em discutir com o doente, ou é por este questionado, ele de fato continua a utilizar a própria superioridade: a autoridade que o doente lhe atribui, antes mesmo que ele a imponha pela violência, permite-lhe impor a própria terapia.
   Além disso, a renúncia ao poder médico, mesmo que se efetive, poderá perpetuar sob outras formas a subordinação do paciente.
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A proposta da destruição, por dentro, das instituições manicomiais jamais nasce, na prática, dos hospitalizados, mas do pessoal encarregado do tratamento e dos responsáveis pela organização. Estes últimos utilizam o poder que lhes advém do mandato social para criar condições que permitam ao enfermo a contestação do poder institucional: entretanto eles não deixam de ser os representantes do poder, e, como tais, continuam por muito tempo sendo os agentes da liberalização do doente, antes que este possa assumi-la com toda autonomia. O papel antiinstitucional do médico assemelha-se ao de um pedagogo “ativo” que educa para a liberdade, com a esperança de que seus alunos algum dia venham a contestar seu próprio papel pedagógico.
   No campo da instituição, entretanto, a liberdade não existe de fato, nem pode ser mascarada sob a forma de liberdade interior na ausência de uma liberdade objetiva. A isto se poderia retorquir que a liberdade também não existe no mundo exterior, e que o ambiente institucional tem pelo menos o mérito de tornar manifesta uma ausência geral de liberdade, ao que é necessário replicar que o mundo exterior oferece a cada um a ocasião de unir a própria rebelião contra o mundo da produtividade e a uma atividade política revolucionária. Tais possibilidades, no âmbito de um hospital psiquiátrico, parecem remotas e veladas. Assim, a consciência da exclusão é freqüentemente experimentada pelo doente como injustiça acidental, como delimitação imperfeita das fronteiras de uma norma cujo conceito ele dificilmente chegará a criticar. O psiquiatra, de sua parte, já perdeu a ilusão da própria objetividade e sabe que não pode distanciar de si o doente, objetivando-o na pesquisa; porém, se tende facilmente a enobrecer o conceito do desvio, subtraindo a este último o corolário automático da sanção, ele não consegue, a não ser com muita dificuldade, propor um universo prático em que a noção tradicional do desvio seja colocada em causa.
   Por conseguinte impõe-se uma ação revolucionária, mesmo se está perfeitamente claro que o hospital psiquiátrico, por mais antiinstitucional que seja, não favorece especialmente esse tipo de ação. A destruição do hospital psiquiátrico é um empreendimento político, pois a psiquiatria tradicional, dissolvendo-se, deixou psiquiatras e pacientes em confronto direto com os problemas da violência social: contudo, não existem as características típicas de um empreendimento revolucionário.
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   Isto explica algumas das limitações para a tomada de consciência pelos hospitalizados. Para estes é compreensível que os valores do restabelecimento continuem sendo considerados mais segundo as definições conformistas da sociedade externa, isto é, em função de uma tentativa de integração, do que segundo os valores bem mais difíceis de elaborar (e também mais penosos de sustentai no plano psicológico) de uma contestação à ordem social.
   Também para a equipe de tratamento, na medida em que não tem que forjar um novo tipo de consciência antipsiquiátrica, é evidente o risco de continuar agindo exclusivamente no âmbito das contradições de seu velho mandato.
   A digressão parece encerrar-se com uma constatação de impotência. Contudo, no momento em que foram delineados com suficiente clareza os limites práticos de uma ação antiinstitucional a partir dos hospitais psiquiátricos, é ainda necessário propor uma nova reviravolta e reconhecer que mais uma vez é possível negar a especificidade da psiquiatria.
   Para o doente essa reviravolta é possível, ao menos em forma embrionária, na medida em que a ação antiinstitucional já contém em si a recusa do princípio da autoridade; para a equipe de tratamento, a experiência tem sentido desde que ela registre não tanto a incongruência da psiquiatria, mas a formulação de um protesto que tenha um significado e um alcance mais geral.
   Outros poderão retomar o protesto, mas esse já existe em sua escolha inicial. O fato de que, de várias partes do país, alguns psiquiatras se reuniram em Gorizia para um trabalho antiinstitucional, não é devido ao acaso, nem à inevitável consolidação, em torno de uma “escola”, dos desequilíbrios existentes na psiquiatria italiana, mas sim a uma série de análises e de opções políticas preliminares. Neste sentido, a denúncia da psiquiatria tradicional nos manicômios como sistema de poder persegue substancialmente dois objetivos: por um lado, fornecer uma série de estruturas críticas adequadas para destruir, entre outras, a “verdade evidente por si” sobre a qual se baseia a ideologia de nosso viver quotidiano; por outro, chamar a atenção para um mundo — o mundo institucional — onde a violência da exploração do homem pelo homem se funde na necessidade de anular os banidos, de supervisionar e tornar inofensivos os excluídos. Os hospitais psiquiátricos podem nos ensinar muitas coisas sobre uma sociedade na qual o oprimido é cada vez mais afastado da percepção das causas e dos mecanismos
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da opressão. No momento em que a crítica política começa a levantar a potencialidade subversiva de todos aqueles que foram declarados “fora do jogo”, a veleidade da antipsiquiatria se propõe a indicar, numa experiência e numa teorização decisivamente antecipatórias, algumas das vias possíveis para uma sociedade totalmente diferente.