Smart drugs não existem!
Ahmed Dahir Mohamed é crítico contumaz à ideia de “drogas inteligentes”. Para ele, são medicamentos para outros fins que acabam tendo outros usos por pressão social
Por: Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos | Tradução Moisés Sbardelotto
O professor Ahmed Dahir Mohamed, da Universidade de Nottingham, acredita que discutir o conceito de smart drugs é como construir um castelo de areia, passível de vir abaixo com qualquer brisa. Ele vai direto ao ponto: “Não há tais coisas chamadas de “drogas inteligentes” [smart drugs], porque elas não existem”. Sua crítica começa desde a conceituação semântica. “O problema é que as pessoas usam a expressão smart drugs na mídia e na literatura. Como jornalista, você sabe que a linguagem é importante, por isso temos de ter cuidado ao usar as palavras erradas para descrever um fenômeno”, dispara, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Na perspectiva de Mohamed, “o que as pessoas têm chamado de smart drugs são drogas que são medicamente reguladas para o tratamento de problemas clínicos”. Entretanto, por uma espécie de pressão social, essas drogas passam a ser administradas por indivíduos saudáveis a fim de potencializar sua capacidade cognitiva. “Esses medicamentos podem ajudar pessoas com problemas clínicos, o que é uma coisa inteligente que eles se destinam a fazer, mas não fazem coisas ‘inteligentes’ em prol ou para a pessoa saudável”, explica. “Há um potencial considerável para a coerção indireta resultante de uma ‘sociedade 24/7’ [24 horas, sete dias por semana] altamente exigente, em que indivíduos saudáveis se sentem compelidos a tomar esses medicamentos, a fim de atender as demandas sociais e do trabalho”, completa.
Para o pesquisador, é preciso não ceder a esse apelo, pois “o indivíduo ainda tem a escolha de participar ou não dessa cultura”. Além disso, seus estudos comprovam que o uso desses remédios sem necessidade clínica pode causar efeito contrário, comprometendo capacidades cognitivas. É o caso dos trabalhos com o modafinil. “Tomar modafinil parece reduzir a criatividade ou o pensamento ‘fora da caixa’ em pessoas saudáveis que normalmente são criativas”, aponta.
Ahmed Dahir Mohamed é psicólogo licenciado e registrado no Reino Unido e membro associado da Sociedade Britânica de Psicologia. Atualmente, é membro do pós-doutorado e professor adjunto de Psicologia (Neurociência do Desenvolvimento Cognitivo e Afetivo) na Escola de Psicologia no campus da Malásia da Universidade de Nottingham. Ainda possui licenciatura em Psicologia pela Universidade de Reading, Reino Unido. Obteve seu doutorado no Departamento de Psiquiatria da Escola de Medicina Clínica da Universidade de Cambridge. Também é professor visitante de Neurociências e Ética no Centro de Bioética da Universidade de Otago, Nova Zelândia. Tem publicações na área de neurociências e neuroética do melhoramento cognitivo e do bem-estar subjetivo. Acaba, agora em 2015, de completar a coedição de um livro pela Oxford University Press, intitulado Rethinking Cognitive Enhancement: The Neuroscience of Cognitive and Physical Enhancement, com o professor Wayne Hall (Universidade de Queensland, Austrália) e o professor Ruud Ter Meulen (Universidade de Bristol, Reino Unido).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que são as smart drugs?
Ahmed Dahir Mohamed – Não há tais coisas chamadas de “drogas inteligentes” [smart drugs], porque elas não existem. O que as pessoas têm chamado de smart drugs são drogas que são medicamente reguladas para o tratamento de problemas clínicos, tais como a narcolepsia, o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade e assim por diante. Quando as pessoas usam essas drogas medicamente reguladas para outros fins, tais como tentar ficar acordado por mais tempo ou tentar fazer mais festa, a mídia e o público desinformado, assim como os pesquisadores, que têm uma agenda, rotulam essas drogas como “drogas inteligentes”.
Um exemplo disso é a droga chamada de Modafinil . Esta é uma droga sobre a qual eu fiz uma extensa pesquisa. É uma droga clinicamente regulada e está licenciada para o tratamento da narcolepsia. Muitas pessoas pensam que é uma droga inteligente, porque elas pensam que, se ela deixa uma pessoa com narcolepsia acordada, ela vai ajudar a me manter alerta e focado como uma pessoa saudável. Então, rotulam essa droga e outras como ela como smart drugs, mas elas não são realmente “drogas inteligentes”, são apenas medicamentos controlados que já existem há muito tempo.
Esses medicamentos podem ajudar pessoas com problemas clínicos, o que é uma coisa inteligente que eles se destinam a fazer, mas não fazem coisas “inteligentes” em prol ou para a pessoa saudável. Então, para responder a suas perguntas, eu não sei o que são smart drugs dentro do contexto que você está me pedindo para descrevê-las, como a melhoria da cognição em pessoas saudáveis, simplesmente porque elas não existem.
IHU On-Line – Que tipo de pesquisa tem sido feito sobre esse tema?
Ahmed Dahir Mohamed – Têm sido realizados estudos para investigar se as substâncias médicas que estão licenciadas para distúrbios clínicos podem, de fato, melhorar ou aumentar a cognição e a emoção em indivíduos saudáveis. Essa pesquisa é feita mediante ensaios duplo-cego controlados com placebo. No entanto, a maior parte dessa pesquisa, se não toda ela, é feita com uma dose única, de modo que os participantes tomam uma substância ativa uma vez, e, depois, os pesquisadores avaliam seus desempenhos em várias tarefas.
É importante saber que os resultados da pesquisa, quando avaliados objetivamente, mostram que essas drogas não melhoram a cognição e a emoção em indivíduos saudáveis. A pesquisa também mostra que os estudos que são realizados são de fraca potência. Isso significa que os próprios estudos não são grandes o suficiente para gerar resultados que sejam significativos no mundo real e que não se pode confiar nos resultados. Mesmo quando você olha para esses estudos, os resultados não são promissores. Essas drogas não ajudam indivíduos saudáveis, muito menos os tornam “inteligentes”. Esses resultados não são surpreendentes, porque essas drogas são feitas para distúrbios clínicos, não para o indivíduo saudável que quer ficar “inteligente”.
IHU On-Line – De acordo com essa pesquisa, quais são os medicamentos mais usados como drogas inteligentes?
Ahmed Dahir Mohamed – Entre os indivíduos saudáveis, as drogas mais populares que as pessoas relatam que estão tomando incluem o metilfenidato (Ritalina) e a dextroanfetamina (ou Adderall) , que são ambos medicamentos controlados e licenciados para o tratamento da ADHD [transtorno do déficit de atenção com hiperatividade], e o modafinil (ou rProvigil), que também é um medicamento controlado e licenciado para a narcolepsia.
IHU On-Line – O que faz as pessoas usarem smart drugs?
Ahmed Dahir Mohamed – Em primeiro lugar, o problema é que as pessoas usam a expressão smart drugs na mídia e na literatura. Como jornalista, você sabe que a linguagem é importante, por isso temos de ter cuidado ao usar as palavras erradas para descrever um fenômeno. Como eu disse anteriormente, as smart drugs não existem. O que existe são substâncias médicas controladas que são reguladas e licenciadas para problemas clínicos ou médicos particulares.
Agora, respondendo à sua pergunta sobre por que as pessoas (saudáveis) tomam tais substâncias: é porque elas querem obter uma vantagem — isso significa que elas querem obter um melhor desempenho em uma determinada tarefa. Por exemplo, há uma forte evidência para sugerir que jovens saudáveis que não têm um bom desempenho no colégio ou na universidade tomam essas drogas porque pensam que o fato de tomá-las vai fazer com que eles tenham um melhor desempenho academicamente. Outros tomam esses medicamentos porque querem fazer festa por mais tempo e sentem que vão receber um impulso de energia.
Há todos os tipos de razões pelas quais as pessoas tomam essas drogas, mas quando você olha para as evidências, não é bem o caso de que elas fazem uso dessas drogas porque querem ser “inteligentes” ou “ficar mais inteligentes”. Ao longo da história, o caso é que camadas da população tomam drogas para fins recreativos, e isso não mudou. A sociedade e a natureza humana não mudaram de repente de modo que as pessoas estão pensando que vão ficar mais inteligentes “tomando comprimidos”. É provável que as pessoas tomem esses medicamentos para ficarem “chapadas” [get “high”]. Essa é a prova que é atualmente disponibilizada pelas pesquisas feitas nos EUA. A evidência de que pessoas saudáveis que já têm um bom desempenho querem tomar essas drogas para ficarem “mais inteligentes” simplesmente não existe.
IHU On-Line – Quais são os efeitos reais das drogas contra a narcolepsia, como o Modafinil?
Ahmed Dahir Mohamed – O Modafinil é uma droga médica controlada, que é licenciada para o tratamento da narcolepsia, mas não está muito claro como ela funciona no cérebro e no corpo. Vários estudos indicam que o modafinil aumenta vários neurotransmissores no cérebro, incluindo a dopamina , a noradrenalina , a serotonina e o glutamato , e em várias regiões do cérebro, incluindo o córtex pré-frontal, o hipocampo, o hipotálamo e o corpo estriado.
Essas são grandes áreas no cérebro que estão associadas com muitas funções, incluindo o aumento da atenção e da vigilância, a recompensa, o prazer e outras diversas ações complexas. É provável que essa droga esteja melhorando alguns déficits em pacientes narcolépticos ao melhorar algumas funções cerebrais que já não estão funcionando bem nesses pacientes. No momento, não sabemos como isso afeta a pessoa saudável.
IHU On-Line – Podemos dizer que as “vantagens” que os usuários de modafinil atribuem à droga são efeitos placebo?
Ahmed Dahir Mohamed – Talvez, embora eu não esteja certo disso. O que eu sei, a partir da minha pesquisa, é que o modafinil é outra forma de psicoestimulante e que, pelo fato de aumentar a dopamina – que é um neurotransmissor produtor de recompensa –, o modafinil pode ter um efeito psicoestimulante e pode gerar uma sensação recompensadora para indivíduos saudáveis que o tomam, mesmo que, na realidade, ele não os torne melhores na realização de tarefas laboratoriais objetivas. Isso é o que demonstramos nos nossos estudos de pesquisa.
IHU On-Line – Qual é o funcionamento químico-cerebral desse tipo de medicamento?
Ahmed Dahir Mohamed – Vários estudos indicam que essas drogas aumentam diversos neurotransmissores no cérebro, incluindo a dopamina, a noradrenalina, a serotonina e o glutamato, em várias regiões do cérebro. Existem evidências de que essas drogas também têm um efeito sobre o corpo e, como sempre há uma conexão corpo e mente, não está claro como essas drogas têm um efeito sobre o corpo.
IHU On-Line – Que efeitos colaterais podem ser atribuídos ao uso desse tipo de drogas?
Ahmed Dahir Mohamed – Estudos experimentais mostraram que o modafinil, por exemplo, pode causar sérios efeitos colaterais, que incluem um prurido e reações alérgicas. Esses efeitos colaterais incluem boca seca, restrição do apetite, perturbações gastrointestinais, incluindo náuseas, diarreia, constipação e dispepsia, dor abdominal, taquicardia, vasodilatação, dor no peito, palpitações, dor de cabeça, incluindo enxaqueca, ansiedade, distúrbios do sono, tonturas, sonolência, depressão, confusão, parestesia, astenia, perturbações visuais, síndrome de Stevens-Johnson e necrólise epidérmica tóxica.
As contraindicações dessas drogas incluem problemas cardíacos e deficiências hepáticas. Além disso, se alguém estiver tomando outros medicamentos, poderá haver interações farmacológicas, que poderiam ser perigosas em alguns casos. É importante notar que a Ritalina, por exemplo, tem sido associada com o crescimento atrofiado e a impotência em homens. Por favor, é sempre importante consultar o Formulário Nacional Britânico e as bulas fornecidas pelos fabricantes. Elas vão dizer a você quais são os potenciais efeitos colaterais.
IHU On-Line – Até que ponto medicamentos como a Ritalina, dirigida aos vários tipos de déficit de atenção, também são considerados como drogas inteligentes?
Ahmed Dahir Mohamed – Eu já respondi à sua pergunta. Essas drogas são substâncias médicas. Não são, na minha opinião, “drogas inteligentes”. Elas são drogas médicas controladas que só podem ser acessadas através de um médico que tem a autoridade para prescrevê-las.
IHU On-Line – É a pessoa ou o modelo hegemônico de sociedade que, em última análise, precisa de medicamentos?
Ahmed Dahir Mohamed – Não tenho certeza se entendi a sua pergunta, mas, se você está perguntando se é o indivíduo ou a sociedade que está dirigindo esse novo fenômeno, então eu diria que tem a ver com ambos. Também há um potencial considerável para a coerção indireta resultante de uma “sociedade 24/7” [24 horas, sete dias por semana] altamente exigente, em que indivíduos saudáveis se sentem compelidos a tomar esses medicamentos, a fim de atender as demandas sociais e do trabalho. Por exemplo, estamos trabalhando mais horas. Temos filhos para criar e queremos fazer inúmeras coisas. Portanto, indivíduos saudáveis podem recorrer à automedicação por causa do sono inadequado ou do esforço excessivo no trabalho.
Por exemplo, 33% dos entrevistados de uma recente pesquisa feita pela prestigiada revista científica Nature indicaram que se sentiriam pressionadas a dar medicamentos para seus filhos se outras crianças na escola os estivessem tomando. Ainda pode haver pressões sociais para usar drogas médicas, particularmente entre os jovens. Uma recente pesquisa realizada nos EUA revelou que os estudantes universitários são mais propensos a tomar medicamentos se tais drogas forem eficazes e enquadradas como não ameaçadoras à sua individualidade, que as tomariam se elas os tornassem mais competitivos e lhes dessem uma vantagem. Portanto, isso levanta a questão ética que surge a partir do uso de medicamentos por causa da pressão social indireta da sociedade, que exige que constantemente nos demos bem em todas as tarefas em todas as áreas das nossas vidas. No entanto, o indivíduo ainda tem a escolha de participar ou não dessa cultura.
IHU On-Line – Há algo que você gostaria de acrescentar?
Ahmed Dahir Mohamed – Na Universidade de Cambridge, realizamos diversos ensaios clínicos controlados com placebo, randomizados, adequadamente potencializados e de efeito de tamanho para investigar os efeitos do modafinil em funções executivas, na memória de trabalho, na criatividade e na motivação em indivíduos “normais” saudáveis. Os resultados desses ensaios sugerem que o modafinil não melhora a cognição nesse grupo, mas faz com que eles respondam de forma mais lenta a tarefas que medem funções executivas (isto é, planejamento e tarefas de resolução de problemas) e de aprendizado por reforço motivacional.
Além disso, tomar modafinil parece reduzir a criatividade ou o pensamento “fora da caixa” em pessoas saudáveis que normalmente são criativas, ao mesmo tempo que aumenta a criatividade naquelas pessoas que são menos criativas. Tomados em conjunto, nossos resultados sugerem que o modafinil pode beneficiar pessoas que têm déficits cognitivos, mas pode prejudicar o funcionamento psicológico complexo naquelas que já são capazes. Como esses resultados são de uma única dose de ensaios de modafinil como medicamento psicoestimulante, o potencial aditivo do modafinil em pessoas saudáveis é desconhecido e precisa ser cuidadosamente investigado.
É importante notar que nós usamos algumas das mais sofisticadas e desafiadoras tarefas cognitivas e de criatividade disponíveis na neurociência. Os nossos resultados mostram que essas tarefas, que são altamente válidas e confiáveis, não foram impulsionadas pela administração do modafinil em indivíduos “normais” saudáveis. De fato, os nossos resultados mostram o oposto: que o modafinil prejudica a cognição e a criatividade em adultos jovens saudáveis. Também é importante notar que o modafinil é usado como medicamento substitutivo para pacientes com vício em cocaína, porque a droga ativa áreas do cérebro similares assim como a cocaína e possui propriedades semelhantes à cocaína. Portanto, os indivíduos saudáveis precisam ter cuidado e levar em consideração a sua segurança antes de tomá-lo. Dado esse ponto e a partir dos nossos resultados negativos, eu não recomendaria esse medicamento para pessoas saudáveis e não o rotularia como “droga inteligente”. ■