Hoje em dia, em que a psiquiatria está
tão voltada para as pesquisas químicas dos neurotransmissores cerebrais, é interessante
lembrarmos que bem recentemente, até meados dos anos 70, havia uma grande linha de
pesquisas sobre a influência da família na gênese das doenças mentais, especialmente
das psicoses.
Nos Estados Unidos, a partir da década de
40, Harry Stack Sullivan insistia na importância das primeiras relações do bebê com
seus pais como fatores determinantes em sua posterior patologia, especialmente a
esquizofrenia. Estabeleceu-se uma grande curiosidade em torno da "mães
esquizofrenogênicas", expressão cunhada em 1948 por Frieda Fromm-Reichman. Em
linhas gerais, a "mãe esquizofrenogênica" se caracterizaria por uma atitude
ambivalente com a qual simultaneamente superprotegeria e rejeitaria seu filho.
Muitos estudos foram feitos na década de
50 sobre esse tema, como mostra a abrangente revisão feita por Gordon Parker no artigo
RE-SEARCHING THE SCHIZOPHRENOGENIC MOTHER, (The Journal of Nervous and Mental Disease -
vol. 170 - 8 - 1982). Estes trabalhos se revelaram muito esclarecedores, mas foram
questionados em função de sua pobre metodologia, da ausência de grupos de controle, de
uma estatística deficitária, um problema, a meu ver, próprio da pesquisa psiquiátrica
quando se afasta de sua vertente mais orgânica
Trabalhos subsequentes deslocaram o eixo
da patologia, que estava centrado na mãe, para o relacionamento patológico do casal
parental e depois o estudo dos padrões de comunicação dos pais e da família dos
esquizofrênicos. Neste campo, os trabalhos de Bateson, Haley, Weakland e Laing , com a
teoria do "duplo vínculo", marcaram época
É compreensível a posição de John
Neill, em seu artigo WHATEVER BECAME OF THE SCHIZOPHRENOGENIC MOTHER? (American Journal of
Psychotherapy, vol. XLIV, 4, Oct. 1990), quando ataca o conceito de "mãe
esquizofrenogênica", considerando-o equivocado e extremamente danoso por
culpabilizar as mães, demonizando-as.
Esse é um problema muito sério. Em
primeiro lugar, se as mães são "esquizofrenogênicas" – ou seja, se
determinadas mães estabelecem relações especialmente patógenas com seus filhos,
posteriormente causadoras de psicoses ou outras perturbações - elas não devem ser
demonizadas e sim tratadas, entendidas em suas patologias. Em segundo lugar, o enfoque
familiar da doença mental implica numa grande mudança na prática psiquiátrica. Na
medida em que os recursos terapeuticos se descentram do "paciente" e se voltam
para a família, é de se esperar que isto gere efeitos e o mais imediato deles é o
aparecimento de culpa e ansiedade em pessoas que até então não se viam como
"pacientes". Isso causaria problemas logísticos incontornáveis, desde que a
demanda pelos serviços psiquiátricos aumentaria de forma dramática.
Apesar de praticamente abandonado o
obsoleto, parece-me que trabalhos mais recentes dão ao conceito de "mãe
esquizofrenogênica" uma formalização teórico-clínica mais acurada e pertinente
Refiro-me os trabalhos de Stoller com as
mães de transexuais (A EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL - Imago Editora), e as elaborações
teóricas de Piera Aulagnier sobre a gênese da psicose (OBSERVACIONES SOBRE LA ESTRUCTURA
PSICÓTICA - PSICOANALISIS DE LA PSICOSIS - CARPETA DE PSICOANALISIS 1 - LetraViva). É
interessante sublinhar que, apesar de partirem de corpos teóricos muito distantes - um
psicanalista americano, outra lacaniana - as conclusões às quais chegam têm grande
semelhança. Para estes autores, a relação patógena fica caracterizada uma ligação
narcísica da mãe com o filho, que não é rompida pela intervenção do pai enquanto
terceiro representante da lei. A psicose (ou travestismo) é decorrência da não
castração da mãe através da equação bebê (filho)-pênis.
Foi este o modelo que seguimos para
entender os enígmas do filme "CARÁTER". Joba poderia ser vista como um exemplo
de "mãe esquizofrenogênica", (aqui entendida como aquela que produz uma
relação patógena com o filho não necessariamente esquizofrênico) muito embora, como
ali fica também esclarecido, não existe apenas a problemática da mãe e sim toda uma
complexa e complementar relação com o pai de seu filho.
Essa linha de pesquisa sobre o
funcionamento familiar, que esteve em grande voga nos anos 70, teve continuidade com o
trabalho dos terapeutas de família, que usam hoje basicamente dois referenciais teóricos
mais importantes, o psicanalítico e o sistêmico.
Ainda hoje, lembro do grande impacto que
senti ao ler SANITY, MADNESS AND FAMILY, de Laing e Esterson. São transcrições de fitas
gravadas com entrevistas de esquizofrêncos e suas familias. É uma leitura que recomendo
aos mais entusiasmados com a "decada do cérebro".