Assimetria de poder na relação médico-paciente
“Talvez, se o objetivo da medicina for a diagnose e o tratamento da doença, a qualidade da comunicação entre o médico e o paciente faz pouca diferença, conquanto se obtenha um histórico médico adequado e a necessária cooperação do paciente, para fazer ou deixar de fazer certas coisas. Mas se o objetivo da medicina for interpretado mais amplamente, se a preocupação for com a pessoa que está doente, e o objetivo for aliviar, reassegurar e restaurar o paciente – como parece que deve ser o caso – então a qualidade da comunicação assume uma importância instrumental e tudo o que interferir com ela precisa ser observado, e se possível, removido.” Samora (1961)
Em um nível microssociolinguístico, a assimetria no discurso médico-paciente, por exemplo, resulta de diferenças de status socioeconômico, papéis, objetivos e expectativas, bem como de seus valores e atitudes. O discurso reflete, cria, dissemina e perpetua esta assimetria no discurso e através da fala dos participantes. No discurso institucionalizado, a assimetria pode ser mensurada por parâmetros interacionais, discursivos e lingüísticos.
- No nível interacional, por exemplo, há o controle da organização tática da interação. No caso da comunicação médico-paciente, o médico controla o turno da ala e as estruturas de participação dos outros participantes. Desta forma, é o médico quem decide não somente quem fala, mas também quando e como se fala.
- No nível discursivo, não somente o que se fala, i.e. o conteúdo, mas também em que ordem se fala, i.e., a seqüência tópica e a organização do discurso são decididas pelo médico que tem o poder hegemônico de conduzir a interação.
- No nível lingüístico, a especialização técnica do médico e o jargão técnico do seu vocabulário podem constituir uma causa adicional de discrepância e divergência na comunicação, tanto no nível conceitual quanto no nível lexical.
No discurso assimétrico, os participantes não compartilham do mesmo conhecimento, interesses, objetivos e estratégias conversacionais. Porque os médicos e os pacientes geralmente não compartilham das mesmas bases sócio-culturais para conhecer, dizer e entender, eles têm acesso diferenciado ao conhecimento.
No entanto, porque a comunicação face a face é reflexiva, i.e., mutuamente constitutiva, os participantes são conjuntamente responsáveis pelo fluxo de atividades.
No caso da comunicação médico – paciente, assim também como nas interações em sala de aula, os médicos operam como diretores do discurso, mantendo o controle durante a consulta, e conduzindo a interação, sinalizando o começo, o meio e o fim dos diferentes estágios ou atividades bem como o começo e o fim das falas. É dentro deste contexto interacional que o médico e o paciente tem que negociar o significado, i.e., fazer sentido um para o outro, por que a fala é ambígua e vaga e deve ser interpretada. Além do mais, a interpretação compartilhada depende do contexto compartilhado, mutuamente constituído pelos e para os participantes, e realizado interacionalmente.
Desta forma sua atenção aos aspectos orgânicos das queixas do paciente, sua paráfrase técnica da narrativa do paciente, seu uso recorrente de perguntas para solicitar informação específica são estratégias pelas quais a consulta é objetificada e enquadrada no modelo biomédico da doença.
Esta abordagem clínica ou orgânica distante, objetiva, “cautelosa”, do médico, é resultado do treinamento profissional. No seu treinamento pré – serviço é-lhes ensinado que o envolvimento com o paciente deve não ser só evitado mas é quase proibido e anti-ético. Porque eles vão ter que enfrentar a dor, o sofrimento e a morte dos seus pacientes, é-lhes ensinado que trabalhando neste esquema institucional eles vão ficar protegidos dos perigos do envolvimento e da compaixão e desta forma permanecer mais livres para agir e tomar decisões que às vezes podem ir contra seus sentimentos e emoções.
O seguinte trecho tirado do filme Golpe do Destino é ilustrativo:
Dr Mackee – Há perigo em se envolver com os seus pacientes. É muito perigoso. Cirurgia exige julgamento. E um juiz deve ser distante.
Aluno – Não é antinatural não se envolver com os pacientes?
Esta abordagem impessoal é também conseqüência da visão profissional da prestação do serviço médico como uma atividade burocrática de rotina, em que o paciente é apenas mais um em uma fileira de pacientes, mais uma doença em uma fileira de doenças.
Em resumo, durante a consulta médica, o médico que está no controle interacional, busca e
requer informação do paciente. Ele aborda a consulta dentro de um esquema clínico de referência enquanto o paciente a encara como uma oportunidade personalizada e experiencial para falar sobre suas mazelas. Este desencontro de estilos e estratégias conversacionais pode causar ansiedade, frustração e conflito; ele pode impedir os participantes de atingir um consenso sobre o significado da interação e/ou atingir os objetivos pretendidos. Em última instância, isto pode levar a mal entendidos e insatisfação interacional.
O fato de o paciente falar mais poderia nos induzir a concluir que o paciente domina a interação. Todavia a tabela 2, que indica quem introduziu os tópicos na conversação, deixa claro que é o médico que domina a conversação.
Em resumo, embora o médico fale menos, interacionalmente ele tem mais influência no desenho da estrutura do discurso. É ele quem abre e fecha a conversa (cf.Tabela 1:00 e 22); quem termina a discussão sobre um tópico, muda para um novo tópico conforme sua vontade; ou ignora as observações do paciente.
A fala do paciente é altamente avaliativa e envolvida, como se pode ver pelo número de intensificadores que abundam no texto, e.g. mal (09); sempre (20); pausas, hesitações, pedidos de confirmação e outros marcadores discursivo-conversacionais, e.g., cê vê(04);sabe? (08, 10,14); né (06). As queixas do paciente são vagas e difusas (e.g.13-16). O médico, então, tenta medicalizar estas queixas em sintomas, atendendo aos aspectos orgânicos ou clínicos da narrativa do paciente.
A reciclagem do tópico é uma estratégia que o paciente usa para enfrentar o controle da consulta pelo médico e para criar o máximo possível de oportunidades para falar sobre o tópico de seu interesse.
Neste trabalho, convergência e divergência referem-se respectivamente à unilateralidade ou bilateralidade na introdução de propostas, isto é, propostas que obtiveram consenso e propostas que foram do interesse de somente um dos participantes. Em outras palavras, convergência de interesse ou expectativas significa que os participantes estão sintonizados na mesma onda. Divergência, por outro lado, sinaliza que os participantes estão fora de sincronia um com o outro. Isto é, eles estão ou falando fora de turno ou fora do tópico.
No conjunto, os tópicos divergentes perfazem 38 por cento do total da fala da consulta. Estes tópicos foram trazidos principalmente pelo médico, através de perguntas que tencionavam coletar fatos para especificar a estória do paciente e informação biomédica que sugerisse sintomas que pudessem servir de base para o seu diagnóstico (=transformar em doença).
Este estudo demonstrou o modo como o significado é negociado entre o médico e o paciente na consulta médica. A análise quantitativa dos padrões de gestão de tópicos pelos participantes na consulta revelou que o médico detém o controle hegemônico da conversa. Embora ele fale menos em termos do tempo total da consulta, é o médico quem regula as estruturas de participação, o conteúdo e a organização seqüencial ou progressão temática dos tópicos na conversação. Embora o paciente fale mais que o médico em termos do tempo total da conversa, ele o faz somente em resposta às perguntas e tópicos impostos pelo médico, que estruturam não somente o que o paciente fala, mas também quando, como e em que ordem ele fala.
A análise qualitativa focalizou a evidência lingüística das estratégias conversacionais usadas pelos participantes na consulta. Porque o médico está interessado em obter informação biomédica relevante e suficiente para um diagnóstico preciso e tratamento adequado, a sua estratégia conversacional é atentar para os itens orgânicos ou biomédicos de informação e tratar os problemas de vida real do paciente como irrelevantes à consulta. Ele se apóia, principalmente em perguntas específicas na busca de sintomas para transformar em seu diagnóstico. O seu estilo de gestão de tópico pode ser caracterizado como o estilo falando sobre um determinado tópico, em vez de falando topicamente.
A estratégia do paciente, por outro lado, consiste em evitar falar sobre os tópicos que são introduzidos pelo médico. Para tanto, ele usa digressões, autodiagnose e associação de tópicos. Desta forma, ele evita não só falar sobre os tópicos escolhidos pelo médico, mas ele consegue reciclar e falar mais sobre os tópicos de seu interesse pessoal e assim comunicar o que ele acha relevante à consulta. Desta forma, embora semi-analfabeto, o paciente revela possuir as habilidades conversacionais necessárias para fazer uma exposição de sua doença. O seu estilo de gestão de tópico caracteriza-se por falar topicamente, isto é, falar centradamente sobre um tópico.
Como conseqüência desta divergência em estratégias conversacionais e estilo de gestão de tópicos, os tópicos introduzidos pelo médico são breves e permanecem sem avaliação, e são rapidamente descartados pelo paciente. Os tópicos bilaterais, ou convergentes, por outro lado, são amplamente desenvolvidos e avaliados, proporcionando assim, ao médico, uma oportunidade de coletar informação mais relevantes para a diagnose e o tratamento. Prestando atenção aos mecanismos lingüísticos de envolvimento e avaliação que o paciente usa, ele pode aprender não somente o que é de interesse para ele médico, mas o que preocupa o paciente.
Conclusão comum: a importância da qualidade da comunicação na relação que se estabelece entre o médico e o paciente na consulta e uma visão consoante com a qualidade em serviços de que a própria conversa já é parte do processo de cura, pois atender o cliente é, principalmente entender o seu pedido, o seu desejo e a sua necessidade. Quase sempre, ao fazer uma demanda, direta ou indireta, o cliente pede uma coisa, quer outra e precisa de uma outra. Desta forma, a melhor forma de garantir as condições para um bom atendimento é investir na qualidade da relação e dos vínculos com o cliente, pois a qualidade do atendimento é diretamente proporcional à qualidade do relacionamento que se estabelece.
Citamos aqui as palavras de um praticante da medicina da pessoa, em vez da medicina da doença: “As dificuldades na relação médico-paciente geralmente comprometem o êxito dos resultados das consultas e do tratamento, por duas razões. Primeiro, a inabilidade do médico de abordar o paciente e, segundo, a resistência do paciente em aceitar o que lhe é proposto.” Para resolver este problema, o autor sugere que “a consideração dada à receita é proporcional à preocupação do médico com as emoções do paciente”, observando ainda: “O bom médico deve se interessar pela estória do paciente, não somente de onde vem as suas dores, ou seja, o problema é descobrir o que é importante para a pessoa doente e não só para o médico.”
Sugere-se, então, que os profissionais médicos desenvolvam um conhecimento consciente das características e complexidades do discurso da cura. Isto demandaria que os médicos aprendessem mais a ouvir para aprender, do que ouvir para interrogar. Na verdade, sua habilidade de interrogar seria otimizada pela sua habilidade de ouvir e identificar pistas contextuais, tais como a avaliação e o envolvimento, que sinalizam os verdadeiros problemas de seus pacientes. Esta consciência os equiparia com ferramentas mais poderosas para apontar os problemas de seus pacientes mais facilmente. Todavia, como Shuy (1976) evidencia, as atitudes estão profundamente enraizadas na prática diária e não são muito fáceis de mudar. O autor do artigo para o jornal brasileiro mencionado acima afirma que a resistência dos médicos à mudança se deve principalmente a “... uma mistura de preconceito e falta de conhecimento sobre as mudanças”. De acordo com este mesmo autor, os médicos vão ter que enfrentar os seus próprios preconceitos e orgulho se eles quiserem melhorar a relação com os seus pacientes. O mero conhecimento do problema não garante a mudança.
Esta profunda mudança, porém, demandaria um projeto integrado de pesquisa em análise do discurso a longo prazo, envolvendo pesquisadores lingüistas e profissionais médicos na pesquisa colaborativa das suas culturas de trabalho e da natureza da interação médico- paciente. As descobertas de tais destas pesquisas serviriam de base para o treinamento de outros profissionais, tanto em programas de pré-serviço quanto em programas em-serviço.
Assim, sugere-se que, como pesquisadores da sua própria cultura de trabalho, os médicos comecem a estranhar o familiar e familiarizar o estranho em seu próprio contexto. Então, tendo chegado a esta atitude crítica através da visão perspectiva interna e externa da sua prática,eles poderão se tornar os principais agentes de transformação de sua própria prática social.