Coluna (Edição nº 24)
"Podemos falar em uma 'química da qualidade de vida'?", por Rogério Lopes Azize (*)
"Podemos falar em uma 'química da qualidade de vida'?", por Rogério Lopes Azize (*)
Os corpos contemporâneos carregam o peso de grandes expectativas e muitas ansiedades. Especialmente em uma cultura que pode ser chamada “de classe média urbana”, o corpo está cercado de regras e constrangimentos no que se refere à sua estética, formato, virilidade, desempenho físico, saúde adequada e performance social. As possibilidades técnicas de intervenção do indivíduo sobre o seu próprio corpo multiplicam-se em diversas frentes. Das salas de cirurgia às salas de musculação, passando pelas farmácias, busca-se aprimorar a performance do corpo em campos tão diferentes quanto a estética corporal, a sexualidade e a saúde psíquica.
Essa coluna propõe uma breve reflexão a respeito de um aspecto específico dessa cultura que reserva grande atenção ao corpo e à saúde: o consumo de medicamentos. Parto da percepção de que vivemos hoje uma “cultura medicamentosa” entre as classes médias urbanas, que justifica e incentiva o consumo de medicamentos. Vou me concentrar no discurso dos laboratórios farmacêuticos a respeito de certos medicamentos que foram reunidos sob um mesmo rótulo pelos meios de comunicação de massa: os “medicamentos do estilo de vida” ou “life-style drugs”. Apesar de terem funções muito diferentes, o discurso dos laboratórios farmacêuticos a respeito de medicamentos de grande sucesso comercial – destaco aqui pílulas como Viagra, Xenical e Prozac, que tratam, nessa ordem, da disfunção erétil, da obesidade e da depressão – possui pontos em comum que me chamaram atenção.
Essa coluna propõe uma breve reflexão a respeito de um aspecto específico dessa cultura que reserva grande atenção ao corpo e à saúde: o consumo de medicamentos. Parto da percepção de que vivemos hoje uma “cultura medicamentosa” entre as classes médias urbanas, que justifica e incentiva o consumo de medicamentos. Vou me concentrar no discurso dos laboratórios farmacêuticos a respeito de certos medicamentos que foram reunidos sob um mesmo rótulo pelos meios de comunicação de massa: os “medicamentos do estilo de vida” ou “life-style drugs”. Apesar de terem funções muito diferentes, o discurso dos laboratórios farmacêuticos a respeito de medicamentos de grande sucesso comercial – destaco aqui pílulas como Viagra, Xenical e Prozac, que tratam, nessa ordem, da disfunção erétil, da obesidade e da depressão – possui pontos em comum que me chamaram atenção.
Mais do que as marcas específicas, interessa-me a cultura que cerca o consumo destes medicamentos, o sentido atribuído ao seu consumo e o cruzamento desta prática terapêutica com outros hábitos que circulam no espaço urbano ocidental contemporâneo. Trabalho com a hipótese de que os usuários das pílulas Viagra, Xenical e Prozac dividem um campo semântico comum, um idioma que faz uso freqüente e peculiar das idéias de saúde e qualidade de vida. Nas fronteiras de uma cultura de classe média, percebe-se uma noção de saúde que já não mais ocupa o posto de contrário à idéia de doença; e uma noção de qualidade de vida que se tornou uma espécie de chave-mágica da sociedade contemporânea, uma palavra-chave que pode justificar mudanças no cotidiano, consumo, novos hábitos e mudanças marcantes no estilo de vida. Se uma ação qualquer vai trazer ao seu agente mais qualidade de vida, então esta ação é socialmente justificável; apesar da categoria apresentar um significado nebuloso, seu reconhecimento é imediato na cultura de classe média urbana e o seu uso é bastante freqüente.
Trago abaixo trechos de peças de marketing (anúncios, sites) dos laboratórios farmacêuticos a respeito das doenças citadas que ilustram essa percepção:
Conversar com um médico sobre desempenho sexual é mais fácil do que conviver com o problema. Quem já teve dificuldades de ereção sabe como isso pode prejudicar a qualidade de vida. (Trecho do texto de um anúncio da Pfizer, laboratório fabricante da pílula Viagra, veiculado na revista Veja)
Doença dispendiosa, de alto risco, crônica e reincidente, a obesidade afeta milhões de pessoas em todo o mundo, inclusive crianças. Embora não seja nova, ela assume agora proporções epidêmicas e está aumentando. Esta tendência é, sem dúvida, alarmante em virtude das doenças associadas à obesidade. (...) A obesidade é sinônimo de perda da qualidade de vida. (Trecho retirado do site www.obesidade.com.br, mantido pelo laboratório Roche, fabricante da pílula Xenical)
Diagnosticar com precisão e tratar adequadamente um estado depressivo são procedimentos fundamentais para evitar riscos decorrentes da doença, e devolver ao paciente uma boa qualidade de vida (...) À volta de um paciente deve haver a compreensão de que a depressão não é preguiça, nem falta de caráter ou de vontade. Não adianta pedir ao paciente que reaja, pois ele precisa de medicamentos. (Trechos retirados de informes publicitários que se propunham a prestar esclarecimentos sobre a depressão, parte de uma campanha do laboratório Wyeth, veiculados no Caderno Folha Equilíbrio da Folha de São Paulo)
O campo biomédico nos oferece, através de uma racionalidade própria, uma forma de encarar os sintomas considerados patológicos e o tratamento adequado para tais patologias. É verdade que muitas vezes o consumo de medicamentos responde a necessidades incontestáveis, se abordarmos a questão do ponto de vista biomédico. Mas a idéia que fica no ar aqui é a de que talvez possamos falar sobre um outro uso possível dos medicamentos, como o que pode ser percebido no caso das “drogas do estilo de vida”. A medicalização da vida tornou o consumo de remédios ato bastante corriqueiro. No que se refere às “pílulas do estilo de vida”, o marketing dos laboratórios farmacêuticos parece agregar ao discurso a respeito de “doenças” um novo argumento que não somente o da “saúde”. Não se trata mais simplesmente de combater “doenças”, mas de manter ou conquistar mais “qualidade de vida”, expressão bastante utilizada, mas cujo significado permanece pouco claro no caso do uso feito pelos laboratórios farmacêuticos. O público leigo de classe média, demandante de bens de saúde, não ignora, por certo, esta forma de falar a respeito de certas doenças e da justificativa para o tratamento. Não estaríamos, então, frente a uma espécie de “química da qualidade de vida”?
(*) Rogério Lopes Azize é doutorando em Antropologia Social (Museu Nacional-UFRJ), mestre em XX Congresso Antropologia Ibero-AmericanaSocial (UFSC).
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