O poder da psiquiatria
O que está por trás do DSM-5 e sua tentativa de transformar a experiência do sofrimento em patologia a ser tratada
Quando confrontados a categorias como 
“saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, a maioria dos psiquiatras 
atuais tenderá a aceitar que tais definições são, basicamente, objetos 
de um “discurso científico”. Isso significa, grosso modo, que a
 pretensa objetividade de suas distinções deve estar assegurada por um 
discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e 
claramente diferenciáveis através de um conjunto finito e operacional de
 caraterísticas de base. Esta seria a melhor maneira de impedir que tais
 metaconceitos fossem tragados por uma interminável discussão 
ideológica, com suas querelas sem fim de escolas a respeito da natureza 
do que orienta nossa atividade na clínica do sofrimento psíquico.
Foi com essa crença em vista que a 
psiquiatria dos últimos quarenta anos desenvolveu um dos mais 
impressionantes esforços de classificação de doenças e homogeneização de
 diagnósticos que se tem notícia. Desde o advento do DSM-3, a 
psiquiatria teria, enfim, encontrado o caminho em direção a sua 
segurança ontológica, deixando para trás décadas de imprecisão. Uma 
imprecisão que seria fruto do uso de vocabulários extremamente 
valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da fascinação 
por etiologias fantasistas. Pois, ao invés de se preocupar com a 
definição de causas dificilmente observáveis (como, por exemplo, afirmar
 que certa fobia de animal é resultado de conflitos inconscientes com a 
figura paterna), melhor seria privilegiar um pensamento categorial que 
organiza distinções a partir de uma certa lógica de conjuntos no qual o 
esforço clínico fundamental consiste em definir sintomas e condições 
que, se colocados em relação, podem individualizar um comportamento 
patológico. Desta forma, nasceria o milagre de um saber, para além de 
disputas teóricas, observável, imune aos juízos subjetivos do 
médico-observador e, acima de tudo, eficaz.
Esta história da marcha irresistível da 
psiquiatria em direção à ciência é normalmente contada em tons 
edificantes. A partir do início dos anos 1970, vários psiquiatras 
começaram a fazer testes, demonstrando a incrível variação de 
diagnósticos entre os profissionais. Por outro lado, a própria 
psiquiatria era bombardeada de todos os lados por aqueles irresponsáveis
 que tentavam demonstrar que categorias clínicas eram mitos ou, no mais 
das vezes, mecanismos de exclusão e controle social. Neste ambiente 
hostil, psiquiatras como Robert Spitzer e John Feighner teriam sido 
capazes de tirar a psiquiatria da defensiva por meio de uma profunda 
reforma metodológica que, em um curto espaço de tempo, modificou 
radicalmente o que entendíamos até então por “clínica”.
Pois tal reforma metodológica teria sido 
acompanhada pelo desenvolvimento exponencial do saber neurológico, assim
 como do desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com 
eficácia aquilo que, erroneamente, entendíamos fluidamente por “impasses
 existenciais” capazes de afetar nossa performance no trabalho,
 nossos papéis sociais e nossa autonomia do desejo. A clínica aparecerá,
 então, cada vez mais submetida a uma farmacologia em vias irresistíveis
 de aprimoramento. Neste sentido, não haveria razão alguma para se 
inquietar do fato de que por volta de 70% dos experts que 
trabalharam para o DSM-5 terem, em sua carreira recente, vínculos 
financeiros com a indústria farmacêutica. A comunidade entre indústria 
farmacêutica e comunidade psiquiátrica seria exclusivamente fundada nas 
promessas abertas pelo progresso da ciência.
Também não haveria razão alguma para se 
perguntar se não haveria uma articulação perversa entre o fechamento dos
 asilos, a redução dos gastos públicos em saúde mental e um triplo 
processo de reforço da posição da psiquiatria. Processo triplo marcado 
pela medicalização, pela institucionalização crescente das discussões 
através da hegemonia da American Psychiatry Association (APA) e pela 
tecnicização crescente dos diagnósticos.
Doença e política
Tudo isso poderia interessar apenas à uma
 comunidade limitada, composta por todos aqueles profissionais 
designados para tratar de problemas de saúde mental (psicólogos, 
psiquiatras, psicanalistas, entre outros). Mas talvez seja o caso de 
colocar algumas questões. Pois, e se categorias como “saúde”, “doença”, 
“normal” e “patológico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento 
psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas 
definições carregadas de forte potência política?  Por um lado, uma 
sociedade organiza seus modos de intervenção nas populações, nos corpos e
 nos afetos por meio da definição do campo das doenças e das patologias.
 No interior desses modos de intervenção, não é apenas a experiência 
subjetiva do sofrimento do paciente que orienta a clínica, mas também 
padrões esperados de conduta social de forte conotação moral (ou mesmo 
estética e política). Por exemplo, quando o DSM-4 descrevia o transtorno
 de personalidade narcísica, ele não temia descrever tal transtorno, 
apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles 
esperam ser adulados e ficam desconcertados ou furiosos quando isto não 
ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não precisam esperar na 
fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes 
deveriam mostrar deferência e ficam irritados quando os outros deixam de
 auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O mínimo que se pode 
dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento psíquico, mas diz 
muito a respeito dos padrões disciplinares e morais que nossa sociedade 
tenta elevar à condição de normalidade médica.
Exemplo ainda mais caricato são os oito 
critérios fornecidos para definir o transtorno de personalidade 
histriônica: 1) desconforto em situações nas quais não se é o centro das
 atenções; 2) comportamento inadequado, sexualmente provocante ou 
sedutor; 3) superficialidade na expressão das emoções; 4) constante 
utilização da aparência física para chamar a atenção sobre si próprio; 
5) discurso excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressão 
emocional exagerada; 7) ser facilmente sugestionável; 8 ) considerar os 
relacionamentos mais íntimos do que realmente são. Em um manual que se 
vangloriava pela clareza de seus “critérios específicos”, impressiona 
exatamente a falta de especificidade de um quadro clínico tão amplo que 
poderia englobar praticamente qualquer pessoa com o mínimo de senso de 
autocrítica. Há de se perguntar se estamos diante de uma falha ou da 
exposição sintomática de uma lógica que perpassa, em maior ou menor 
grau, todo o poder psiquiátrico atual com sua tendência muda, como vemos
 no texto de Gilson Ianinni e Antonio Teixeira,  de “psiquiatrização da 
vida cotidiana”.
Se nos perguntarmos sobre a natureza de 
tal lógica, valeria a pena lembrar como a experiência da doença, ou 
seja, a experiência de se compreender como doente, não é apenas o 
resultado da descrição de variações em marcadores biológicos 
específicos. Nem é a doença a mera definição de situações de sofrimento.
 Há várias experiências de sofrimento que não vivenciamos como doença, 
mas como conflitos relativamente naturais em processos globais de 
transformação e de desenvolvimento. Na verdade, há uma dimensão na qual 
estar doente, no que diz respeito à saúde mental, aparece como o 
sofrimento advindo da limitação na capacidade de ação e da fixidez em 
certos comportamentos. O que não poderia ser diferente se aceitarmos que
 estar doente é, a princípio, assumir uma identidade com forte força 
performativa. Ao compreender-se como “neurótico”, “depressivo” ou 
portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito nomeia a
 si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente 
efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia 
mental não descreve uma espécie natural (natural kind), como 
talvez seja o caso de uma doença orgânica, como câncer ou mal de 
Parkinson. Como nos lembra Ian Hacking, ela cria performativamente uma 
nova situação na qual os sujeitos se veem inseridos.
Neste sentido, há de se perguntar o que 
está por trás dessa tendência de psiquiatrização da vida cotidiana 
levada a cabo pelo DSM-5. Tendência que realiza uma progressão presente 
na própria base dos DSMs. A partir de agora, o número de patologias 
mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3, 
lançado em 1980, e 182 no DSM-2, de 1968.
De fato, com modificações, como as que 
diminuem o luto patológico de dois meses para 15 dias ou que cria 
categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de 
humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o 
transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por 
conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório 
psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com 
sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa equivocada de 
transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser 
tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é
 uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do 
especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa 
que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar 
decidida em laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e 
incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações 
necessárias. Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao 
final, o resultado social dessas modificações no campo da saúde mental 
patrocinadas pelo DSM. Há de se perguntar também a quem tal situação 
interessa.
Por Vladimir Safatle, professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP
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