O uso do "Você sabe com quem está falando?" é antigo. Já Lima Barreto, em dois livros clássicos publicados no início do século XX - Recordações do escrivão Isaías Caminha e sua notável e atrevida etnografia da "República dos Estados Unidos da Bruzundanga", Os bruzundangas - ,revela a sofreguidão do uso e abuso dos títulos e formas hierarquizantes e de como os heróis deste país se movem dentro desse sistema contraditório, avesso à crítica honesta, ao estudo sério e à impessoalidade das regras universais sempre distorcidas em nome de uma relação pessoal importante. É uma descrição pormenorizada do mundo social brasileiro como nenhum outro escritor talvez tenha replicado com tal franqueza, seja sociólogo ou romancista. Uma descrição que viu com profundidade inigualável as contradições de uma sociedade com dois ideais antagônicos: o da igualdade e o da hierarquia.
Vale ouvir o que o diz o etnógrafo Lima Barreto, falando de nós mesmos: "Passando assim pelos preparatórios" [Lima Barreto se refere aos exames de entrada nas escolas superiores e escrevia em 1917], "os futuros diretores da República dos Estados Unidos da Bruzundanga acabam os cursos mais ignorantes e presunçosos do que quando lá entram. São esses tais que berram: 'Sou formado! Está falando com um homem formado!""
Em seguida, Lima Barreto registra que em Bruzundanga havia todo um exército para "organizar o entusiasmo". Algo assim como uma corporação especial destinada a homenagear as pessoas importantes, o que certamente impediria em Bruzundanga, como impede também no Brasil, essas exaltadas invectivas de esmagamento social e separação violenta pelo "Você sabe com quem está falando?", porque só seriam homenageados os grandes do local. É, pois, um hábito em Bruzundanga associar-se a uma aristocracia fictícia, tal como ocorre também entre nós, em que - após o primeiro sucesso - se esboça logo um ancestral nobre e uma genealogia. Diz Lima Barreto: "Um cidadão da democrática República da Bruzundanga chama-se, por exemplo, Ricardo Silva da Conceição. Durante a meninice e a adolescência foi assim conhecido em todos os assentamento oficiais. Um belo dia, mete-se em especulações felizes e enriquece. Não sendo doutor julga o seu nome muito vulgar. Cogita mudá-lo de modo a parecer mais nobre. Muda o nome e passe a chamar-se: Ricardo Silva de la Concépcion. Publica o anúncio no Jornal do Commercio local e está o homem mais satisfeito da vida."
Mas Lima Barreto viu ainda um traço formidável das camadas dominantes da Bruzundanga: os dois tipos de nobreza, a doutoral e a de palpite, estabelecidos. Na doutoral estavam os doutores em engenharia, direito e medicina. Na de palpite, os comerciantes que eram ricos, mas não tinham títulos nem de nobreza, nem universitário, nem militar. Como temos visto, não basta apenas a posição no mundo dos negócios - diríamos hoje, no mundo empresarial. Isso será suficiente na França ou nos Estados Unidos. No Brasil, é preciso traduzir e legitimar o poderio econômico no idioma hierarquizante do sistema. E esse idioma revela as linhas das classificações fundadas na pessoa, na intelectualidade e na consideração por meio de uma rede de relações pessoais.
É necessário então ser doutor e sábio, além de rico. E estar penetrado (ou "compenetrado", como falamos) por alguma instituição ou corporação perpétua, como as Forças Armadas ou algum órgão do Estado. Os "doutores", assim, substituíram - como nos mostra Gilberto Freyre (1962:304) - os comendadores, barões, viscondes e conselheiros do Império. Era, sugeri linhas atrás, o modo de manter a nobreza e as distinções hierárquicas, porém usando outros emblemas de diferenciação social.
É ainda outro grande analista da vida nacional quem confirma esses traços hierarquizantes do nosso sistema, percebendo a figura que, de certo modo, personaliza o "Você sabe com quem está falando?". Falo, evidentemente, de Machado de Assis e da sua desconhecida "Teoria do medalhão". Trata-se de um diálogo, publicado em 1882 em Papéis avulsos, entre um velho e experiente pai e seu filho de 21 anos. Ao completar o rapaz a maioridade, o pai não pode deixar de revelar ao rebento o supremo segredo do sucesso em nosso meio: tornar-se um medalhão. A "teoria do medalhão" é, pois, a fórmula indicada para a obtenção do sucesso num mundo social dominado pelo convencionalismo, pela ortodoxia das teorias e doutrinas, pela rigidez das práticas jurídicas, pelo modismo e conformismo que impedem as soluções originais e profundas. Numa palavra: pelo sistema hierarquizado, que põe tudo em seus lugares, sempre acha o lugar para todas as inovações, detesta examinar-se e, por meio de suas próprias forças e dinamismo, mudar o lugar das coisas que nele já existem. Diz, então, o pai:
Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e público, chama apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e descobrir. Neste ramo dos conhecimentos humanos tudo está acabado, formulado, rotulado, encaixotado (...). Em todo o caso, não transcendas nunca - completa o pai - os limites de uma invejável vulgaridade. [Logo em seguida, sugere ao rapaz o uso da expressão "filosofia da história"...] Uma boa locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc. etc.
Como se observa, são muitos os filhos desse zeloso pai.
Voltemos, porém, ao estudo sociológico do texto de Machado de Assis. Um dos seus méritos é a possibilidade de clarificar a relação entre o sistema de classificar as pessoas e, como consequência, o rito autoritário do "Você sabe com quem está falando?". Pois essa fórmula só deve ou pode operar funcionalmente numa sociedade de quem sabemos quem é, de pessoas que se lavam, de brancos, de boa gente - os medalhões, em contraste com a gentinha, o zé-povinho, a raia miúda, a gentalha, a massa. Numa palavra, os impuros em geral.
Trecho do livro Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro do antropólogo Roberto DaMatta.
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