"Está claro então que somos capazes de nos confrontarmos com anomalias. Quando algo é firmemente classificado como anômalo, o esboço do conjunto no qual ele não é considerado como membro se torna claro.
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Há várias maneiras de tratar as anomalias. Negativamente, podemos ignorá-las, não percebê-las, ou, percebendo-as, condená-las. Positivamente, podemos, deliberadamente, confrontar as anomalias, e tentar criar um novo padrão de realidade onde elas tenham lugar. Não é impossível um indivíduo rever seu próprio esquema pessoal de classificações. Mas nenhum indivíduo vive isoladamente e seu esquema terá sido parcialmente recebido de outros indivíduos.
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A cultura, no senso comum, padronizou os valores de uma comunidade, serve de mediadora da experiência dos indivíduos Prove, adiantadamente, algumas categorias básicas, um padrão positivo no qual as ideias e valores são cuidadosamente ordenados. E, acima de tudo, ela tem autoridade, uma vez que cada pessoa é levada a consentir porque outras assim o fazem. Mas seu caráter público torna suas categorias mais rígidas. Uma pessoa pode ou não rever seu padrão de pressupostos. É um assunto particular. Mas categorias culturais são assuntos públicos. Não podem ser tão facilmente sujeitas à revisão. Mas não podem negligenciar o desafio de formas aberrantes. Qualquer sistema dado de classificações deve dar origem a anomalias, e qualquer cultura dada deve confrontar os eventos que parecem desafiar seus pressupostos. Não pode ignorar as anomalias que seu esquema produz, a não ser com o risco de perder sua confiança. Suponho que seja por isso que encontramos em qualquer cultura, digna do nome, várias providências para lidar com eventos ambíguos ou anômalos.
Primeiro, decidindo-se por uma ou outra interpretação, a ambiguidade é frequentemente reduzida.
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Segundo, a existência da anomalia pode ser fisicamente controlada. Ou tomemos os gaios que cantam à noite. Se seus pescoços forem prontamente torcidos, eles não viverão para contradizer a definição de galo como uma ave que canta ao alvorecer.
Terceiro, a regra de se evitar coisas anômalas confirma e reforça as definições às quais elas não se ajustam. Logo, onde o Levítico abomina coisas rastejantes, deveríamos ver a abominação como o lado negativo de um padrão de coisas aprovadas.
Quarto, eventos anômalos podem ser classificados como perigosos. Admite-se que os indivíduos sentem-se ansiosos quando confrontados com anomalias. Mas, seria um erro tratar as instituições como se elas evoluíssem da mesma maneira que as reações espontâneas de uma pessoa. É mais provável que semelhantes crenças públicas sejam produzidas no decurso da redução da dissonância entre as interpretações individuais e as interpretações gerais. Conforme o trabalho de Festinger, é óbvio que uma pessoa, quando suas convicções diferem das de seus amigos, ou hesita ou tenta convencê-los de que estão errados. Atribuir perigo é uma maneira de se colocar um assunto acima da discussão. Também ajuda a reforçar a conformidade, como mostraremos no capítulo sobre moral (Cap. 8).
Quinto, os símbolos ambíguos podem ser usados em ritual para os mesmos fins que são usados na poesia ou na mitologia, para enriquecer o significado ou para chamar a atenção a outros níveis de existência. Veremos no último capítulo de que maneira o ritual, utilizando símbolos de anomalias, pode incorporar maldade e morte ao mesmo tempo que vida e bondade, num modelo único, grandioso e unificante. (p. 56)
Concluindo, se impureza é um assunto inoportuno, devemos investigá-lo através da ordem. Impureza ou sujeira é aquilo que não pode ser incluído, se se quiser manter um padrão."
Referência
Mary Douglas. Pureza e perigo.