Brasil Trocou os Manicômios Pelos Remédios Psiquiátricos?
Por Marie Declercq
Repórter
Da coluna 'O GUIA VICE PARA SAÚDE MENTAL'
Mesmo com um dos sistemas públicos mais progressistas na
saúde mental, os brasileiros dependem cada vez mais de medicamentos
psicotrópicos. O país iniciou sua reforma psiquiátrica no fim dos anos 70, a
partir do processo de redemocratização, substituindo a atuação dos hospitais
psiquiátricos por outras formas de atendimento a pacientes com transtornos, mas,
ainda assim, o uso de substâncias controladas segue crescendo entre a população
– e não são apenas os adultos.
Um fenômeno que exemplifica essa hipermedicação brasileira
pode ser facilmente identificado ao analisarmos o aumento considerável do
consumo de Ritalina por crianças. Segundo Walter Oliveira, médico com prática
em psiquiatria, professor na UFSC e vice-presidente da
Abrasme (Associação Brasileira de Saúde Mental), houve um crescimento considerável nos últimos cinco anos dos
diagnósticos de déficit de atenção. "Com isso,
começamos a prestar mais atenção e entender por que
isso está acontecendo. Será que existe mesmo uma epidemia de transtorno de
atenção? Acontece que, quando começamos a olhar o que está acontecendo nas
escolas, percebe-se uma pressão muito grande para pegar uma criança mais
agitada e que não se conforma com as regras
da escola, diagnosticá-la e medicá-la com um
remédio psiquiátrico", explica.
De fato, o
brasileiro
toma muito remedinho. Em 2013, nós gastamos R$ 1,8 bilhão com antidepressivos e estabilizadores de humor. E isso pode vir de maneiras diversas:
do lobby de indústrias farmacêuticas, da glamourização de doenças
psiquiátricas e também porque viver nas metrópoles deixa
a gente mais infeliz e abre mais possibilidades de incidências de transtornos psiquiátricos.
Um
artigo publicado em 2014
concluiu que, nas
cidades analisadas, o aparecimento de transtornos mentais são de 51,9%
no Rio de Janeiro, 53,3% em São Paulo, 64,3% em Fortaleza e 57,7% em Porto
Alegre.
Se você considerar de maneira geral, ainda estamos considerando o
atendimento psicossocial em segmentos do vasto território brasileiro. Há
ainda lugares em que amarram os pacientes no pé da cama, que o cara é
mandado para um hospital psiquiátrico, porque o CAPS não dá conta.
"Não estou dizendo de maneira alguma que não existem pessoas
com depressão ou ansiedade, mas sim que há um exagero de diagnóstico para
pessoas que não possuem transtornos graves e que estão tomando medicação controlada", frisa
Walter. "Hoje, a pessoa passa seis meses tomando
um remédio após ter passado por apenas uma consulta."
Assim como no resto do Ocidente, o Brasil participa do boom
de diagnósticos e do acesso a remédios
controlados para se tratar de problemas da vida
cotidiana. "Isso começou na década de 50 com os barbitúricos, ansiolíticos, e muita gente começou a tomar medicamentos para
tudo." Silvio acrescenta que a crescente procura por esse
tipo de remédios também se deve a uma tendência contemporânea de procurarmos
respostas mais rápidas para o que nos aflige.
O cenário da loucura no Brasil dos
anos 50 ainda era tomado pela única solução possível: internação
e medicação por parte da psiquiatria. O louco era um pária e, por isso, era internado
em manicômios onde os maus-tratos e tratamentos
duvidosos eram alguns dos meios que o Brasil da
época encontrava para retirar de circulação cidadãos indesejados. Um dos
maiores exemplos do tratamento manicomial do país é o
Hospital Colônia de Barbacena, onde ocorreu o
Holocausto Brasileiro, e também o
Hospital Psiquiátrico Juquery, localizado na
cidade de Franco da Rocha
. Tudo isso
começou a ser percebido após o lento e gradativo
processo de redemocratização nos anos 1970.
"Na época, o Brasil era, aos
olhos dos estudiosos do mundo, um país interessante de ser observado,
pois
tinha acabado de sair de uma ditadura", relembra Silvio Yasui, psicólogo
e professor da Unesp que também atuou na área da saúde mental pública.
Foram dois intelectuais que deram
força para a reforma da saúde mental no país: Foucault e, o mais
importante, o
italiano
Franco Basaglia. "Basaglia tinha a experiência de mudar o sistema de
saúde mental. Quando ele chegou aqui em 1977/78,
tinha acabado de aprovar uma lei italiana que determinava o encerramento de
hospitais psiquiátricos. A presença dele aqui falando que é possível fazer algo
do tipo foi bastante determinante para a reforma psiquiátrica no Brasil",
explica.
As visões de
Basaglia deram espaço para a criação de uma nova rede de saúde mental
com mecanismos mais progressistas e fundamentalmente contra a internação
em manicômios como primeira
opção. Com isso, foi criada a primeira unidade do CAPS (Centro de
Atenção
Psicossocial) em 1987, na Rua Itapeva, no município de São Paulo, onde
inicia-se na prática a nova postura do país com a saúde mental. O CAPS é
uma das soluções da rede de saúde mental (formalizada com a lei nº
10.216/2001) oferecidas pelo SUS.
Sofremos o preço de sermos jovens enquanto política.
Segundo o Ministério da Saúde, são 2.209 CAPS espalhados
pelo país, dos quais 201 são especializados em
crianças e adolescentes. As unidades fazem cerca de 44,9
milhões de atendimentos por ano que visam ao "atendimento
próximo da família, assistência médica e cuidado terapêutico conforme o quadro
de saúde do paciente". Para Silvio, a qualidade do atendimento nos CAPS depende
da região onde a pessoa está. "Você tem alguns lugares com ofertas
interessantes para a reinserção do sujeito na sociedade. Se você considerar de
maneira geral, ainda estamos considerando o atendimento psicossocial em
segmentos do vasto território brasileiro. Há ainda lugares em que amarram os
pacientes no pé da cama, que o cara é mandado para um hospital psiquiátrico, porque o CAPS não dá conta."
O psicólogo continua: "Atenção
psicossocial é um cuidado que se faz em rede e em território. O CAPS em Perdizes
vai ser diferente do de Itaquera, que vai ser diferente do CAPS de Parelheiros.
Se for pensar em outras regiões e em outras culturas, a abordagem terá a cara
do seu território. Cada lugar vai ter um jeito de lidar com a loucura e com o
sofrimento".
Já Walter Oliveira destaca que a função do CAPS acabou se
perdendo e se tornando um meio prioritário de atendimento. "O Brasil não
investe em uma rede de saúde mental no geral: o
CAPS foi a solução mais viável de se implantar, mas ainda não atende todas as
necessidades da população. Aqui em Florianópolis existe apenas uma unidade que
atende cerca de 1 milhão de pessoas."
É muito difícil falar em números de diagnósticos por conta do envolvimento do médico, do remédio com a indústria farmacêutica.
Os dois especialistas frisam que a própria contratação de
profissionais do CAPS é problemática, pois muitos carregam ainda a mentalidade
manicomial. Isso se deve principalmente pela política de saúde mental ainda ser
uma novidade e também pela formação acadêmica continuar
focada numa corrente mais tradicional. "Sofremos o preço de sermos
jovens enquanto política", conta Silvio.
Enquanto a rede de saúde
mental brasileira pena para se adaptar às novas tendências da psiquiatria,
resta saber se estamos mesmo mais infelizes e doentes,
ou se realmente usamos os medicamentos como válvula de escape para os problemas que não queremos enfrentar.
"É muito difícil falar em números de diagnósticos por conta do envolvimento do médico, do remédio com a
indústria farmacêutica. Há também uma ausência de posição por parte do governo sobre
essa questão", explica Walter. Por isso, o psiquiatra destaca
que sempre é preciso olhar para os números com muita cautela, justamente por
muitas
pesquisas no campo serem patrocinadas por indústrias farmacêuticas
.
"Temos um excesso de diagnósticos que patologizam a vida
cotidiana. Hoje, não existe mais uma criança
arteira, existe uma criança com DDA; da mesma
forma que não há mais pessoas tristes, mas sim depressivas", finaliza Silvio.
Resta saber se é pior ficar preso em um hospício ou preso em
nós mesmos por conta do excesso de medicamentos psiquiátricos.
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