Vendedores de (neuro)ilusões
Existem duas coisas que nunca deixam de 
me surpreender: 1) como é fácil enganar as pessoas e 2) como as pessoas 
se deixam enganar tão facilmente. Por toda parte onde olho, vejo 
picaretas e charlatões vendendo todos os tipos de ilusões e fantasias 
que se puder imaginar. E vejo também pessoas, muitas pessoas, comprando 
tais ilusões - e o pior: ficando contentes e satisfeitas de estarem 
sendo iludidas. Não digo que estou imune a isso. De forma alguma! Todos 
estamos sujeitos, em alguma medida, a sermos enganados. Mas o que me 
impressiona de fato é a facilidade com que algumas pessoas são seduzidas
 por discursos atraentes porém absurdamente inconsistentes e até 
ridículos. Desde minha adolescência observo, sempre com muita 
curiosidade e espanto, o bizarro mundo dos vendedores (e compradores) de
 ilusão. Vários anos mais tarde, no mestrado, pude me aproximar de um 
tipo específico de bobagens, as neurobobagens, e pude confirmar a visão 
de que é realmente muito fácil enganar as pessoas - o que me faz pensar 
que as pessoas, em alguma medida, desejam ser enganadas.
No caso das neurobobagens, a receita 
para enganar é simples - e extremamente eficaz. Em primeiro lugar, 
coloque a expressão "neuro" em tudo o que você disser - assim, vai 
parecer que o que você diz é baseado em estudos científicos (mesmo que 
você nunca tenha lido um artigo neurocientífico sequer e no máximo algum
 livro de divulgação da Suzana Herculano-Houzel ou do neurocirurgião do 
programa da Fátima Bernardes). Assim, se for falar em liderança, diga 
"neuroliderança"; se o assunto for inovação, diga "neuroinovação"; ao 
invés de educação prefira "neuroeducação" - ou "neuropedagogia" ou 
"neuropsicopedagogia". Da mesma forma diga "neuromarketing", 
"neurobusiness" e "neurocoaching"; se for dar uma dica, dê uma 
"neurodica"; no intervalo sirva "neurodrinks"; na despedida dê um 
"neurotchau" mandando "neurobeijinhos" para a "neuroplateia". As 
neuropessoas que assistirem sua neuroapresentação sairão neuroencantadas
 - e neuroconvencidas de que o que você diz é "verdadeiramente" 
neurocientífico - quando, de fato, tudo não passou de uma grade 
neurobobagem. Enfim, o segredo é dizer as mesmas coisas que você sempre 
diz ou que os vendedores de ilusão sempre disseram (faça exercícios 
físicos, se alimente de forma equilibrada, não se estresse, cultive 
amizades, tenha sempre pensamentos positivos, etc.) com uma roupagem 
"neuro". Não importa se o que você disser não tiver qualquer embasamento
 científico (e esqueça o fato de que a ciência, e, no caso, as 
neurociências, estão recheadas de controvérsias e dissensos). O que 
importa, no fundo, é que as pessoas acreditem que você passou horas e 
horas lendo complexos artigos e livros de neurociências quando, de fato,
 você "aprendeu" sobre o cérebro lendo livros ou vendo videos produzidos
 por outros neuropicaretas como você.
Em segundo lugar, em qualquer 
apresentação que você fizer, use e abuse de imagens coloridas do 
cérebro. As pessoas vão ficar simplesmente deslumbradas! Ignore o fato 
de que as imagens produzidas pelas ressonâncias magnéticas e tomografias
 computadorizadas não são, nem de longe, fotografias do cérebro, mas sim
 o resultado de complexo processo que envolve desde decisões técnicas e 
metodológicas, convenções visuais até cálculos matemáticos e testes 
estatísticos. Ignore tudo isso e aponte para as belas e pretensamente 
esclarecedoras "fotografias do cérebro" em seu slide do Power Point - 
ou, se você quiser parecer mais moderno, do Prezi. Se puder acrescente 
também tabelas e gráficos coloridos (que nem você nem sua neuroplateia 
precisam entender) e muitas, muitas muitas, imagens de cérebros e 
neurônios humanizados - de preferência escolha imagens animadas do tipo 
gif que retratem cérebros e neurônios dançando, andando de skate ou 
malhando. As pessoas vão rir e se divertir! (e, é claro, também vão 
esquecer da total falta de embasamento e coerência de sua apresentação, o
 que é absolutamente imprescindível). 
Não se esqueça também acrescentar as 
clássicas imagens do cérebro dividido em dois hemisférios (de 
preferência com o lado esquerdo colorido de azul e o direito
 de rosa). Então traga à tona a famosa teoria dos dois cérebros (ou 
teoria do cérebro duplo) segundo a qual o hemisfério direito corresponde
 ao cérebro emocional, criativo e visual, enquanto que o esquerdo ao 
cérebro racional, lógico e verbal. Ignore o fato de que grande parte dos
 neurocientistas contemporâneos considera esta teoria uma completa 
bobagem, e prossiga sua neuroapresentação extrapolando esta teoria para 
explicar o motivo de homens serem de marte e mulheres de vênus. Ignore a
 construção social dos papeis de gênero e a fundamental importância das 
expectativas na produção das masculinidades e feminilidades, e vomite 
para sua neuroplateia pseudoexplicações como a de que as mulheres são 
piores do que os homens em matemática em função de terem o lado esquerdo
 do cérebro menos desenvolvido ou em decorrência da atuação de hormônios
 "femininos". Enfim, sempre que puder, naturalize as diferenças entre 
homens e mulheres dizendo que possuem cérebros essencialmente 
diferentes. 
Finalmente, durante toda a sua 
neuroapresentação, exalte as neurociências como se elas já tivessem as 
respostas para todas as perguntas. Simplesmente desconsidere toda a 
enorme ignorância que ainda persiste sobre o funcionamento do cérebro 
humano, fingindo que todo o conhecimento almejado já está disponível. 
Além disso, faça continuamente afirmações pomposas e filosoficamente 
controversas como "entender o cérebro é entender a nós mesmos" ou "você é
 o seu cérebro". Ignore todas as reflexões do campo da filosofia da 
mente que problematizam sobre a relação entre a mente e o cérebro, e 
simplesmente reduza a mente ao cérebro. Na verdade, reduza tudo ao 
cérebro. Se puder, e isto aumentará consideravelmente sua credibilidade 
perante a neuroplateia, cite a famosa frase do Prêmio Nobel Francis 
Crick (aliás, é sempre bom, citar um prêmio Nobel, mesmo que você não 
tenha lido nada dele), segundo o qual "você, suas alegrias e tristezas, 
suas lembranças e ambições, seu senso de identidade pessoal e 
livre-arbítrio, não são mais do que o comportamento de um imenso 
conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas". Ignore o 
imenso e controverso reducionismo explícito nesta frase e siga adiante 
vomitando todo tipo de palavras "neuro", expressões pseudocientíficas e 
discurso de auto-ajuda. E pronto! Seguindo todas, ou pelo menos algumas,
 destas etapas você estará mais do que preparado para se tornar, 
oficialmente, um neuropicareta - para alegria dos neuroentusiastas 
ingênuos. Neuroabraços para você.





Nenhum comentário:
Postar um comentário