"Kanner nos instruiu, como estudantes de medicina, a nunca prescrever algo para a queixa principal sem conhecer bem o paciente e saber com segurança o que na verdade o perturba. O médico devotado à arte de curar não podia nem devia focar sua atenção exclusivamente na queixa principal, nem mesmo num órgão doente. Para que fôssemos capazes de ajudar os doentes, era necessário expor os aspectos da vida que mais estresse produzissem. Lamentavelmente, alguns médicos tratam da queixa principal. Mas concluiu o professor, esse método não é aconselhável.
Ouvi frequentemente pacientes que descrevem um mal-estar que produz dor, mas, depois de levantar minuciosamente toda a sua história médica, descobria um difícil problema social ou familiar que nada tinha a ver com sua queixa principal. "Doutor, na verdade, não vale a pena incomodar-se com isso." Muitas vezes encontrei-me a braços com problemas domésticos, de trabalho, questões psicológicas, assuntos de família e até problemas globais. Os problemas mais críticos são invariavelmente os de relações familiares conturbadas. Uma vez identificado o problema, é comum que o medicamento eficaz conste de palavras, em vez de drogas. Estou persuadido de que a maioria das receitas, cuja finalidade é aliviar queixas principais, é em grande parte irrelevante. Talvez seja por isso que tantos preparados receitados se demonstram inócuos, o que, sem dúvida, é fator de peso na elevação dos custos. O indivíduo com problema não resolvido continua buscando a solução e sai à cata de formulações. Além disso, muitos remédios prescritos para queixas principais podem causar efeitos colaterais nocivos. Desesperados, os pacientes acedem em submeter-se a procedimentos invasivos.
Em geral os médicos se concentram na queixa principal porque as escolas de medicina não lhes ensinam a arte de ouvir. Embora se dê ênfase à história médica, na verdade nem ensinam sua obtenção nem sua compilação. Entre os médicos circula um cínico aforismo: "Se tudo o mais falhar, fale com o paciente". Outro fator que concorre para essa situação é que a investigação que vai além da queixa principal leva tempo, e tempo é dinheiro. Acresce também que a história médica proporciona dados um tanto vagos, ao passo que os médicos querem fatos comprovados. Todavia, a tendência de recorrer à tecnologia não é fruto exclusivo da fome de certeza. A meu ver, o outro fator é ser a tecnologia encarada como legítimo substituto do tempo.
Limitar a obtenção da história médica à queixa principal amiúde inicia um vão processo de pesquisa de tópicos irrelevantes que, na melhor das hipóteses, são apenas tangenciais em relação ao problema maior."
Dr. Bernard Lown - A arte perdida de curar.
A queixa principal (p.30-32.)
Comentário: Enquanto a medicina física bem praticada considera o contexto da história de vida, os psiquiatras biológicos a desconsideram para imitar a medicina física e se legitimar como ciência. A psiquiatria biológica está imitando medicina ruim.
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