A reforma psiquiátrica e seus críticos:considerações sobre a noção de doença mental e seus efeitos assistenciais
[Artigo incrível resumido]
Além de desqualificar serviços sem prova empírica, essa afirmação se baseia na ideia de que os profissionais dos serviços de base comunitária pensam que o padecimento do paciente é apenas uma situação social. Os CAPS, de fato, levam muito em conta os aspectos sociais implicados no adoecimento psíquico, como os laços sociais e familiares, a relação com a vizinhança, os vínculos de trabalho e cooperação, as trocas amistosas e amorosas. A razão disso, ao lado da defesa da cidadania devida a todos, é que os laços sociais podem ser foco de tensão e desestabilização, mas também podem se tornar fatores protetores, evitando o agravamento, ajudando na recuperação e no cuidado. Entretanto, esse entendimento não desconsidera os aspectos individuais, sejam eles biológicos ou psicológicos do adoecimento.
Acreditamos que o debate sobre política de cuidados psiquiátricos no Brasil possui pressupostos sobre a noção de patologia mental que não estão explicitados.
Uma das questões centrais da crítica à reforma no Brasil baseia-se na ideia de que os hospitais psiquiátricos são imprescindíveis na composição da rede de saúde mental. Como o processo de reforma contesta essa ideia e vem gradativamente reduzindo o tamanho e o número de hospitais (BRASIL, 2011, p. 16), logo estaria havendo desassistência e “despsiquiatrização” (ABP, 2006, p. 21-23). Esse argumento é, por assim dizer, defensivo. Pretende defender uma estrutura de tratamento, visto como local privilegiado da terapêutica e do ensino. Essa defesa, em geral, se segue uma estratégia de ataque. O alvo desse ataque são os serviços que estão ocupando o posto estratégico na organização da rede assistencial e atendimento a casos graves, que antes da reforma seguiam para hospitais psiquiátricos, os centros de atenção psicossocial (CAPS).
A diferença fundamental com relação ao modelo centrado no hospital psiquiátrico é que a gravidade sintomática não é considerada um fator impeditivo para o uso de um serviço comunitário aberto, visando à reinserção social possível ao lado do tratamento farmacológico e psicológico disponível.
Estruturas hospitalares com grande número de leitos tendem a gerar exclusão, estigma, exposição à violência, longo tempo de internação e baixo potencial terapêutico (CFP; OAB, 2004). O foco da assistência concentra-se quase que exclusivamente na medicação, muitas vezes de forma excessiva, além do uso errático de estratégicas psicossociais e ausência de projetos terapêuticos individualizados e consistentes.2
Entretanto, a defesa do hospital psiquiátrico como local de atendimento, ensino e pesquisa é desprovida de justificativas científicas. Embora não haja estudos profundos sobre o tema, nada impede que os serviços de base comunitária possam suprir a demanda por formação, pesquisa e treinamento, e com maior capilaridade no território nacional. Mais importante que o hospital especializado é a equipe de trabalho coesa, a complexidade do ambiente terapêutico, a disponibilidade de medicamentos, a prontidão do acolhimento e o respeito integral aos direitos de cidadania que definirão a qualidade da assistência e do ensino.
Hoje, um dos principais problemas da psiquiatria concerne à validade de determinadas categorias diagnósticas, sendo um tópico discutido intensamente pelos profissionais sem obtenção de consenso. A acalorada discussão sobre o DSM-V demonstra a dificuldade. Associado a isso, estudos indicam a probabilidade muito grande de diagnósticos falso-positivos em testes de screening (rastreamento de diagnósticos), principalmente em crianças (HORWITZ; WAKEFIELD, 2009). O risco apontado é que muitos diagnósticos seriam equivocados, gerando estigma e medicalização sem nenhuma garantia de benefícios cientificamente reconhecidos. Esse risco seria ainda maior com questionários simplificados e padronizados na atenção primária. Em resumo, as propostas de mudanças do modelo assistencial preconizadas pela ABP mostram-se redundantes ou inconsistentes. Defende-se a manutenção de um local de tratamento que mostrou seu esgotamento, enquanto se aponta para a criação de serviços alternativos já existentes. Criticam-se equipes e serviços sem conhecer seu funcionamento efetivo. E afirmam-se pontos de vista sem justificá-los científica ou filosoficamente.
Os avanços nas pesquisas em neurociências são importantes para o conhecimento de aspectos fundamentais dos transtornos mentais e tem avançado rapidamente. Entretanto, a afirmação acima, defendida como um princípio contém problemas que necessitam ser explicitados, pois, caso contrário, corremos o risco de começarmos a fazer afirmações ideológicas, chamando-as inapropriadamente de científicas.
[Neurociências] É um campo de pesquisa novo, multiforme e ainda não coeso (MALABOU, 2004). Mesmo assim, os autores se referem às neurociências como um campo homogêneo, passando ao largo das dificuldades próprias dos pesquisadores da área.
Um dos princípios contido em “Diretrizes” afirma que a prática psiquiátrica deriva de “conhecimentos científicos que foram se construindo na base de estudos científicos rigorosos”, sendo que esses estudos “contrastam e se opõem às interpretações discursivas e impressionistas dos fenômenos psíquicos e dos problemas do funcionamento mental” (ABP, 2006, p. 7). Embora se afirme também que “é tarefa da Psiquiatria Científica e da sua pesquisa, bem como de outras especialidades médicas e de outras ciências da saúde e do homem, investigar suas causas, diagnósticos e tratamentos mais efetivos e seguros” (ABP, 2006, p. 7), as ciências do homem, contraditoriamente, estão excluídas do processo, pois seus estudos científicos são baseados em narrativas e interpretações discursivas. Não poderia ser de outro modo.
Da mesma forma, o que seria uma psiquiatria científica? Ela se oporia a uma psiquiatria discursiva? As pesquisas de causas de doenças mentais e seus tratamentos estariam restritas a uma única descrição dos fatos mentais? Os autores das “Diretrizes” não explicitam até que ponto a investigação da rede causal dos problemas psíquicos está sendo levada em conta. Se a causalidade considerada válida se concentra apenas no nível biológico ou se a rede causal deve ser ampliada a uma gama mais ampla de causalidades possíveis. Em resumo, os autores não deixam claro quais são suas próprias redes de crenças sobre o mental.
Existem duas questões embutidas na afirmação acima. A primeira diz respeito aos fatores determinantes dos transtornos mentais. A segunda questão é sobre a relação entre cérebro e psiquismo. Observemos melhor cada um desses pontos. Com respeito à primeira questão, quando falamos em doença, quando a descrevemos, catalogamos, explicamos suas origens e propomos tratamentos, estamos falando de uma experiência antropológica. Dentro dessa perspectiva, a doença é sempre uma produção humana, ela só existe sob descrição, como narrativa que visa a determinados fins em uma dada comunidade e em determinado contexto histórico.
A doença mental, nessa concepção (de Canguillhem), seria uma variação biológica e comportamental na experiência com o mundo e consigo mesmo que, sendo pouco normativa, impede o sujeito de variar suas respostas, empobrecendo seu repertório de ações e constrangendo a subjetividade na sua capacidade de ação. A experiência do adoecimento mental é, por assim dizer, o fiel da balança. É essa experiência que aponta para o pathos, em que a narrativa do paciente sobre seu adoecimento possibilita que a clínica se construa. Toda explicação científica repousa sobre essa experiência e sobre a relação clínica. É em função dessa experiência que as descrições psiquiátricas e as teorias causais se fundamentam. A enfermidade psíquica só é identificada como doença após a percepção da dificuldade normativa ter se estabelecido na consciência de quem sofre e devido à incapacidade de variar suas respostas comportamentais em decorrência da infidelidade do meio. Ela não é, portanto, nem uma entidade prévia à experiência de constrangimento vital de um indivíduo, nem um dado bruto da realidade independente da descrição realizada, descrição essa informada por valores e crenças.
O problema central, entretanto, repousa na concepção subjacente de que os únicos estudos válidos para a prática psiquiátrica são os que advêm da biologia molecular, da neuroimagem e da genética. Está implícita nessa ideia a crença de que podemos dispensar abordagens discursivas do sofrimento mental sem perdas significativas. Esse é um princípio propriamente fisicalista e reducionista, que defende que a única teoria psiquiátrica válida é aquela que descreve as patologias mentais como alterações cerebrais. Há nessa vertente um enfoque exclusivo no cérebro, não apenas como órgão privilegiado de estudos e intervenção, mas como entidade que explicaria todo e qualquer evento mental normal ou patológico. Está implicada nessa posição a crença de que podemos abrir mão da aproximação do sofrimento mental através da linguagem psicológica, fenomenológica, psicanalítica ou sociológica da causalidade baseada em narrativas, em prol de descrições puramente fisicalistas. Essa maneira de abordar o adoecimento mental caracteriza-se pela busca de explicações causais dos problemas mentais exclusivamente através da descrição de alterações neuronais e genéticas. Seu pressuposto é o de um materialismo ontológico e reducionista (Cf. SERPA JR, 1998; BRENDEL, 2006; GHAEMI, 2003; RAMBERG, 2008). Vejamos melhor por que diversos autores criticam essa abordagem.
O materialismo ontológico-reducionista na psiquiatria pressupõe que possamos reduzir a mente ao cérebro, isto é, preconiza que tudo o que podemos dizer sobre a subjetividade através do vocabulário psicológico-narrativo pode ser formulado através do vocabulário neuronal-científico, o único que realmente tem a chave explicativa para os fenômenos mentais. As abordagens baseadas em narrativas são consideradas descrições subalternas porque o que está em jogo, de fato, é o constituinte físico do comportamento. Nesse tipo de descrição fisicalista, se buscaria uma identidade tipo a tipo (identidade type-type) entre a descrição neuronal e a mental, isto é, eventos mentais se relacionariam a eventos cerebrais de maneira específica, circunscrita e unicausal. A mente, nas suas diferentes expressões, seria um efeito do cérebro. Portanto, as teorias sobre fenômenos psíquicos descritas no vocabulário subjetivo errariam o alvo, porque buscariam nessas expressões imprecisas e superficiais as causas patológicas que, na verdade, estariam no nível mais profundo, o nível neuronal, genético ou molecular.
Entretanto, para pensamentos, sentimentos, sensações e afetos tais como o prazer, dor, angústia, delírio ou depressão faltam eventos cerebrais delimitados correspondentes (BRENDEL, 2006, p. 87). Mesmo que observemos áreas cerebrais ativadas com determinada emoção ou cognição, não podemos afirmar que a causalidade é sempre cerebral, mas apenas que ela é concomitante ao evento. Existem evidências de eventos cerebrais alterando a subjetividade, assim como eventos interpessoais alterando padrões neuronais (FUCHS, 2012). Mas, em geral, o surgimento de emoções, sentimentos e pensamentos é contextual e relacional, ocorre com um indivíduo na relação com um meio que é específico, marcado por sua biografia (KIRMAYER; GOLD, 2012). Com isso podemos dizer que o cérebro é necessário e concomitante ao evento, mas não que ele explica ou causa o evento.
Como mostra Ramberg (2008), os vocabulários utilizados nas descrições da subjetividade e do cérebro são muito diferentes. Vocabulários são construídos diferentemente porque possuem propósitos diversos, suas proposições lidam com problemas que são descritos com mais eficácia naqueles termos e não em outros. Embora seja logicamente aceitável, e até provável, que eventos mentais sejam concomitantes a eventos cerebrais e vice-versa, descrever exclusivamente os problemas mentais como alterações cerebrais pode ser uma maneira de enfatizar o lado errado da equação. Pode ser apenas uma maneira de interromper o diálogo clínico, sendo que esse diálogo só poderá ser adequadamente construído sobre um contexto que se baseia em narrativas, interpretações e abordagens “impressionistas”.
É toda essa estrutura contextual e relacional que se perde ao reduzir a descrição mental à descrição neuronal. E essa perda implica uma psiquiatria amputada de suas características humanistas e uma equiparação indevida do indivíduo ao seu cérebro. Além disso, a abordagem fisicalista-reducionista dispensa a possibilidade de níveis hierárquicos de organização do mental, pelos quais diferentes estratos de organização possuiriam regras de causalidade próprias. Como mostram Kirmayer e Gold (2012) e Fuchs (2012), a base neuronal serve de apoio e precede cronológica e logicamente organizações mentais fenomenológicas, simbólicas e linguísticas, que por sua vez organizam formas de sociabilidade complexas. Os autores defendem, portanto, que a melhor maneira de compreender os fenômenos mentais deve englobar sistemas hierárquicos que envolvem o cérebro, a linguagem e a sociedade. Cada sistema emergindo com a complexificação do sistema anterior, com funcionamentos específicos e influenciando-os reciprocamente (KIRMAYER; GOLD, 2012; SERPA JR, 2011).
Essa maneira de estudar o fenômeno mental e a doença psiquiátrica leva em conta os vários níveis de complexidade e a forma como eles interagem. As dimensões genéticas e neuronais produzem a abertura para o simbólico e o social. Cada sistema opera num nível ontológico próprio, que descrevemos com mais ou menos acurácia pragmática. E cada sistema afeta o outro em algum nível de profundidade. Os processos epigenéticos, pelos quais o ambiente modula e altera a expressão dos genes, e os fatores sociais, culturais, familiares e simbólicos que expõem vulnerabilidades herdadas disparando processos psicopatológicos, são exemplos dessa inter-relação. Embora, evidentemente, existam processos que são descritos e manejados dentro de determinado nível com grau importante de clareza e perícia, de maneira suficiente e independente (KIRMAYER; GOLD, 2012). As patologias mentais envolveriam processos neurobiológicos (genes, moléculas e neurônios), corporais (fenomenológico-intencionais) e simbólicos (interpessoais e sociais) numa interação complexa e circular.
Nosso ponto de vista é que estudos neurobiológicos não se opõem às interpretações discursivas. É aceitável um materialismo metodológico, isto é, a redução, para estudo empírico e circunstancial, do sujeito humano a uma descrição fisicalista com vistas à produção de um discurso que vise estudar e manejar comportamentos com alto grau de sofrimento. A abordagem biológica, na perspectiva do materialismo metodológico, é uma possibilidade descritiva como qualquer outra. É um procedimento útil e interessante, mas que não elimina outras abordagens do fenômeno psíquico.
O materialismo não-reducionista pressupõe que sem a narratividade, sem a descrição do sofrimento em termos psicológicos, ocorreria uma indesejável restrição descritiva. Termos como “desejos”, “crenças” e “fantasias” são constitutivos da rede linguística que nos estrutura, mas são fundamentais não apenas porque sua eliminação levaria ao empobrecimento subjetivo, mas porque impossibilitaria fazer uma boa clínica.
No início deste trabalho, ressaltamos a frase crítica das “Diretrizes” dirigida à atual política de saúde mental, em que a palavra “realmente” era colocada no contexto de que alguns profissionais tratam mais do que outros, isto é, aqueles que “realmente” tratam. Esse, digamos, é um implícito não pensado, e pernicioso. Se tivermos seriedade na discussão sobre a rede causal dos problemas mentais, portanto, de influências complexas e circulares na produção dos transtornos mentais, deixa de fazer sentido a prioridade de um ramo de conhecimento e de investigação sobre outro. Quem trata? Todos que se inserem nas relações de um paciente com seu mundo subjetivo e objetivo produzindo alterações na ampla rede causal: neuronal, fenomenal, simbólica e social.
Finalmente, é fundamental considerar que, historicamente, a psiquiatria se constituiu como uma tentativa de nunca pronunciar a incurabilidade de um paciente (GAUCHET; SWAIN, 1999), de nunca renunciar ao potencial saudável da mente de cada indivíduo. A psiquiatria nasceu como um produto das melhores esperanças utópicas. Portanto, os serviços postos em marcha pela reforma, dentro dessa perspectiva, devem ser considerados os legítimos herdeiros da melhor tradição pineliana.
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