O papel extratécnico dos medicamentos diz respeito à extrapolação de sua ação farmacológica, associada ao Valor-de-uso', para usar uma categoria marxista e que ultrapassa, igualmente, o seu Valor-de-troca' (caráter de mercadoria de um bem qualquer, utilizando o mesmo referencial teórico). A lógica de mercado, atuante desde os primórdios da indústria farmacêutica moderna, estimula, intensivamente a extrapolação mencionada, agindo suas técnicas promocionais, com grande vigor, em uma outra dimensão, que poderia ser designada como Valor simbólico'. Sobre médico e paciente paira uma representação do processo saúde-doença e das estratégias para manejá-las que, de alguma maneira, inclui um caráter mágico, sendo este último pensado como o desejo de agir sobre algo, exercendo um domínio sobre ele ou sobre um de seus signos. Ao tomar um medicamento o que se quer é que o mesmo interfira sobre os sintomas ou sinais da doença (signo da fragilidade humana), sob a ilusão, mesmo que, aparentemente respaldada nos pressuspostos técnico-científicos os mais sólidos, de se está atuando sobre eles e, na medida do possível, dominando-os. Em uma sociedade em que, para quaisquer problemas, busca-se um 'remédio' oferecido pela ciência, os antigos instrumentos de dominação mágica do mundo foram substituídos por objetos técnicos. Tal como ressalta Dupuy & Karsenty (1980), em virtude das funções atribuídas aos fármacos, a expectativa é de que os mesmos tragam algum conforto moral, diminuam a sensação de insegurança, aliviem a angústia, preencham vazios, em suma, ajudem a viver.
Ao fazer uma análise do fenômeno da reificação e simbolização do fenômeno da saúde, dando ênfase à sua concretização através do medicamento, Lèfevre (1991), expõe mui apropriadamente, ao nosso ver, as relações no plano simbólico que médico e paciente entretêm com o mencionado produto. Até o século XVIII, o medicamento representava muito mais um recurso adicional disponibilizado aos médicos. Com o decorrer do tempo e, sobretudo, quando os produtos farmacêuticos passaram a requerer uma prescrição médica, a dimensão simbólica se intensifica mais ainda, tendo outras concepções assumido a condição de irracionais ou supersticiosas. A dimensão simbólica referida vai servir, igualmente, para escamotear o viés econômico que não se coaduna ao caráter sagrado, sacerdotal, inerente ao profissional que atua como agente da cura (como tal, a prescrição se justifica em função da vida e da saúde, não sendo cabível especulações sobre gastos) (Comelles, 1993). Os múltiplos aspectos socioculturais e comportamentais envolvidos na questão dos medicamentos têm sido objeto de diversos ramos das ciências sociais e sua aplicação à área da saúde, como é o caso da antropologia médica, sendo uma referência oportuna, com respeito, especificamente, aos medicamentos, a revisão feita por Nichter & Vuckovic (1994).
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