ENTREVISTA | ROBERT WHITAKER
A indústria do mal-estar
Por Grazieli Gotardo
Há mais de 25 anos, o jornalista norte-americano Robert Whitaker
escreve sobre medicina e ciência para diversas publicações. Em 1998, ao
fazer uma série investigativa para o Boston Globe (o mesmo jornal da
série de reportagens que deu origem ao roteiro do filme Spotlight),
observou que alguns estudos sobre a utilização de medicamentos
psiquiátricos apresentavam resultados que não condiziam com o
entendimento que se cristalizava na sociedade: de que doenças como
depressão, ansiedade e esquizofrenia seriam causadas por
desequilíbrios químicos no cérebro, que poderiam ser corrigidos pelas
novas drogas. A série de reportagens foi finalista do prêmio Pulitzer de
Serviço Público. Depois disso, ele mergulhou na investigação de estudos
científicos e constatou várias contradições e interesses de um mercado
bilionário, a indústria farmacêutica de drogas psiquiátricas. Seu livro
mais comentado Anatomy of an Epidemic – ainda sem tradução para o
português, a ser publicado no Brasil em 2017, pela Editora Fiocruz – foi
premiado como o melhor livro investigativo de 2010 por editores e
jornalistas norte-americanos. Desde então, ele vem sendo convidado para
apresentar seus dados em faculdades de Medicina, bem como tem sido
confrontado por psiquiatras. Nesta entrevista concedida por e-mail, o
jornalista detalha suas descobertas.
Extra Classe – Como teve início a sua pesquisa sobre as drogas psiquiátricas?
Robert Whitaker – Em 1998, fui coautor de uma série
para o jornal Boston Globe sobre abusos contra pacientes psiquiátricos
em ambientes de pesquisa. Naquela época, tive uma
compreensão completamente convencional das drogas psiquiátricas, de que
elas corrigiam os desequilíbrios químicos no cérebro e que seu
uso contínuo era essencial para as pessoas com diagnóstico de
esquizofrenia e outros transtornos mentais graves. Após isso, eu comecei
a observar que a ciência não sustentava esse entendimento convencional.
Foi isso que guiou minha curiosidade para investigar.
EC – O que o motivou a escrever contra essas drogas?
Whitaker – Ao pesquisar essa história para o Boston
Globe, deparei-me com dois estudos que me fizeram questionar esse
entendimento convencional. A primeira foi a pesquisa pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), que, por duas vezes, relatou que os
resultados de longo prazo para as pessoas diagnosticadas com
esquizofrenia eram muito melhores em “países em desenvolvimento” do que
nos países “desenvolvidos”. De fato, os pesquisadores da OMS concluíram
que quem vive em um país desenvolvido era um forte candidato a não ter
um bom resultado se diagnosticado com esquizofrenia. Isso me
surpreendeu, e depois eu descobri que, nos países pobres, onde
os resultados foram muito melhores, eram usados antipsicóticos
muito diferentes. Mantinham-se as pessoas com esses medicamentos
no curto prazo, e não por longos períodos. Apenas 16% dos pacientes eram
regularmente mantidos com os medicamentos. E assim eu me perguntei: por
que os resultados do tratamento da esquizofrenia seriam melhores em
países que não mantêm regularmente seus pacientes com as drogas que
eu entendi que seriam essenciais para a doença? Outro estudo, feito por
pesquisadores da Harvard, relatou, em 1994, que os resultados dos
tratamentos para pacientes com esquizofrenia estavam se reduzindo nos
últimos anos, estando inclusive abaixo dos índices de resultados do
primeiro terço do século 20, muito antes da chegada dos medicamentos
antipsicóticos. Isso desmentia o entendimento convencional de que a
chegada de antipsicóticos na medicina representou um grande avanço. Isso
me motivou a olhar mais a fundo sobre a literatura científica em
relação aos méritos dos medicamentos psiquiátricos. Eu não estava
motivado a favor ou contra as drogas. Só queria investigar mais sobre
seus efeitos, se as histórias que haviam sido divulgadas sobre esses
medicamentos, de que eles corrigiam desequilíbrios químicos no
cérebro, eram verdadeiras. E quando descobri que a literatura
científica realmente contou uma história diferente do que o que nós
acreditamos convencionalmente, me motivei a escrever sobre o assunto.
EC – Em que momento de suas pesquisas você percebeu que as
drogas psiquiátricas faziam parte de um mercado rentável e quem são os
interessados nesse mercado? Essa realidade se mantém nos dias de hoje?
Whitaker – Eu já sabia há algum tempo que as drogas
psiquiátricas eram parte de um mercado rentável. Em 1994, cofundei uma
editora, que publicou sobre o desenvolvimento da indústria de novas
drogas e o mercado crescente. Esta foi uma época em que antidepressivos
ISRS (Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina) estavam se
popularizando e os novos antipsicóticos atípicos (segunda geração)
estavam chegando ao mercado. Escrevi sobre essa comercialização na
investigação do Boston Globe em 1998. A indústria farmacêutica
continua muito interessada em vender drogas psiquiátricas, uma vez que
foi um mercado em franco crescimento nos últimos 30 anos.
EC – Como ocorreu esse crescimento da indústria farmacêutica de remédios psiquiátricos nos últimos anos?
Whitaker – Em 1987, os Estados Unidos gastaram cerca
de US$ 800 milhões com drogas psiquiátricas. Os EUA agora gastam mais
de US$ 35 bilhões em drogas psiquiátricas a cada ano. Isso é um
aumento de 40 vezes nos gastos. Não sei os números para o crescimento no
mercado global, mas o mercado tem se expandido drasticamente nos
últimos 30 anos.
EC – O senhor diz que as pesquisas comprovam que doenças como
a depressão e esquizofrenia não são causadas por
desequilíbrios químicos, como sustentam a indústria farmacêutica e a
classe médica. O que comprova isso?
Whitaker – A teoria do desequilíbrio químico surgiu a
partir de um entendimento de como as drogas psiquiátricas agem no
cérebro, e não a partir de investigações de pessoas diagnosticadas com
um determinado distúrbio. Por exemplo, os pesquisadores passaram a
entender que os antidepressivos aumentam a atividade serotoninérgica no
cérebro. Isso os levou à hipótese de que a depressão é devido à
pouca atividade serotoninérgica (pouca serotonina no cérebro). Mas
quando os pesquisadores estudaram se pacientes diagnosticados
com depressão antes de serem submetidos à medicação sofriam com baixos
níveis de serotonina, não encontraram nada. Os sistemas serotoninérgicos
estavam normais. Essa é a prova. Quando os pesquisadores analisaram se
os pacientes diagnosticados com depressão ou algum outro transtorno
mental tinham um desequilíbrio químico específico, eles não
encontraram nada. Em relação à saúde dos pacientes, isso significa que
muitos tomam antidepressivos e outras drogas psiquiátricas com base em
uma falsa compreensão. Eles acreditam que têm um desequilíbrio químico
que está sendo corrigido pela droga, e, assim, a droga é tal como a
insulina para o diabetes. Mas isso não é verdade. Na verdade, a biologia
dos distúrbios psiquiátricos permanece desconhecida, e psicofármacos
“trabalham” para perturbar o funcionamento normal dos
neurotransmissores no cérebro. As drogas são agentes que alteram as
funções do cérebro, em vez de agentes normalizadores. Assim, a
“medicalização” significa que a prescrição dessas drogas está sendo
feita em um contexto que dá às pessoas uma falsa compreensão de
seus próprios cérebros. Elas são levadas a acreditar que as suas
lutas contra a depressão, ansiedade ou algum outro problema são devido a
um problema químico conhecido, quando isso não é verdade. Na realidade,
o cérebro humano é incrivelmente complexo e muito do seu funcionamento é
um mistério. E quando ingerimos agentes que alteram a função do
cérebro, que é o que as drogas psicotrópicas fazem, isso pode ser um
problema para nossa saúde física e mental a longo prazo.
“A indústria farmacêutica quer convencer as
pessoas de que é melhor viver com drogas, já que isso constrói grandes
mercados para os seus medicamentos. E a psiquiatria é sua aliada: a
especialidade médica tem motivos para promover ouso das drogas de curto e
de longo prazo”
EC – O que está por trás do interesse em convencer as pessoas de que é melhor viver com drogas de uso contínuo?
Whitaker – Dois interesses: a indústria farmacêutica
quer convencer as pessoas de que é assim, já que isso constrói grandes
mercados para os seus medicamentos. E a psiquiatria é sua aliada. Pelo
menos nos Estados Unidos, grande parte dos psiquiatras deixa de lado a
terapia da conversa e manda seus pacientes para psicólogos e outros
terapeutas. Seu “produto” no mercado são as drogas. E assim a
especialidade médica tem motivos para promover o uso das drogas de curto
prazo e de longo prazo.
EC – O que comprova que as doenças mentais estão se
tornando muito mais crônicas atualmente do que na era
pré-drogas psiquiátricas?
Whitaker – Esta evidência é demonstrada em vários
estudos e eles estão todos no meu livro Anatomy of an Epidemic (em
tradução livre: anatomia de uma epidemia). Mas, por exemplo, na era
pré-antidepressivos, a depressão costumava ocorrer em episódios, e
uma alta porcentagem de pessoas que sofriam um primeiro episódio
de depressão grave o suficiente para ser hospitalizada jamais
teria outro. Apenas algumas poucas pessoas diagnosticadas com
um episódio depressivo inicial iriam se tornar cronicamente
doentes. Hoje, pelo menos nos Estados Unidos, um elevado número de
pessoas diagnosticadas com depressão torna-se depressivo crônico.
É possível ver esta mudança no curso da depressão na era moderna das
drogas no livro da Associação Psiquiátrica Americana (Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM). O livro diz que os estudos
apontavam que a depressão ocorria por episódios e que a maioria das
pessoas se recuperava desse episódio inicial. Agora, a publicação
afirma que a depressão segue um curso crônico. E hoje, se você estudar
o curso da depressão em pacientes não medicados e pacientes medicados, o
grupo de não medicados tem melhores resultados a longo prazo. Eles são
muito menos propensos a acabar cronicamente deprimidos.
EC – Por que é um mito que todas as pessoas com esquizofrenia precisam de medicação para toda a vida?
Whitaker – Estudos após estudos comprovam que uma
porcentagem significativa de pacientes com diagnóstico de
esquizofrenia pode ficar muito bem, a longo prazo, sem antipsicóticos, e
é este grupo sem medicação que tem os melhores resultados no longo
prazo. Isso foi mostrado no estudo de Martin Harrow (PhD em
Psiquiatria na Universidade de Illinois) com pacientes
esquizofrênicos nos Estados Unidos e em um estudo de Courtenay Harding
(PhD em Psiquiatria, especialista em esquizofrenia, com passagem
pelas principais universidades norte-americanas e hoje
consultora internacional para programas de reabilitação mental). Ambos
concluíram em suas pesquisas que era um “mito” que todas as pessoas com
diagnóstico de esquizofrenia precisavam estar em uso de antipsicóticos
por toda a vida e que, aparentemente, apenas uma minoria necessita usar
medicamentos no longo prazo.
EC – Qual é a relação entre o uso de drogas ilícitas e antidepressivos e o aumento dos casos de bipolaridade?
Whitaker – É bastante claro que os estimulantes e
antidepressivos aumentam o risco de uma pessoa sofrer um episódio
maníaco e ser diagnosticada com transtorno bipolar. Com pessoas
deprimidas, verifica-se que, quando se dá um antidepressivo, duplica
o risco de a pessoa se tornar bipolar. E existem drogas ilícitas
que aumentam o risco de uma pessoa ser diagnosticada como bipolar. Por
exemplo, adolescentes que fumam maconha regularmente aumentam
consideravelmente o risco de desenvolverem a bipolaridade. O problema
pode ser resumido da seguinte maneira: drogas psicotrópicas,
particularmente quando usadas de forma contínua, podem induzir
problemas de humor que levam a um diagnóstico bipolar.
EC – O que concluem os estudos sobre o uso de medicação para depressão ou déficit de atenção em crianças e jovens por longos períodos?
Whitaker – Estudos de longo prazo de jovens
diagnosticados com TDAH e tratados têm apontado que os medicamentos
não fornecem benefício em nenhuma área. O único resultado é que o uso
prolongado pode conduzir a problemas físicos e aumentar o risco de
desenvolver bipolaridade.
EC – Ao longo de suas pesquisas e matérias publicadas, você sofreu algum tipo de pressão ou represália?
Whitaker – Houve algumas coisas bastante negativas
escritas sobre mim por psiquiatras que são líderes em seu campo. O
meu comentário favorito foi o de Jeffrey Lieberman, ex-presidente da
Associação Americana de Psiquiatria, que disse a uma estação de rádio
canadense que eu era uma “ameaça para a sociedade”. Mas eu, realmente,
não tenho enfrentado retaliações, apenas críticas.
EC – Como vem sendo a inserção da sua investigação nas faculdades de Medicina?
Whitaker – Tenho sido chamado por um bom número de
escolas médicas para dar palestras e apresentar minhas pesquisas.
Ao mesmo tempo, acho que a maioria das escolas médicas
simplesmente ignora meus livros e investigações.
EC – Depois dessas constatações, você é contra a utilização de drogas para doenças mentais? Por quê?
Whitaker – Não sou nem a favor nem contra o uso de
drogas para transtornos mentais. Sou a favor de serem prescritas dentro
de um contexto, o que significa que a sociedade deve compreender que a
biologia das perturbações mentais permanece desconhecida, que as drogas
não corrigem desequilíbrios químicos no cérebro; que, em geral, a sua
eficácia a curto prazo é baixa; que estas drogas vão induzir alterações
no cérebro que podem provocar dependência do medicamento e que existem
evidências consideráveis de que, a longo prazo, os medicamentos aumentam
a cronicidade de distúrbios mentais e o risco de uma pessoa se tornar
funcionalmente prejudicada. Se as pessoas tiverem essa informação, então
a sociedade e os indivíduos podem usar esses agentes com
conhecimento, que, creio eu, envolveria muito mais cautela, e, em
geral, por curtos períodos de tempo.
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