Saúde, sem dúvida, custa. Mas é o produto que mais
desejamos. Ou seja, é um produto, e talvez o melhor de
todos. Não é uma atividade meio, é uma atividade fim.
No entanto, devemos distinguir o nível de saúde atingido
em termos de resultados e o processo que permite atingi-
-los. Como em qualquer processo produtivo, a setor deve
alcançar os melhores resultados com o mínimo de custos.
É o que se chama de produtividade da saúde. Nas últimas
décadas, o mundo ganhou uma sobrevida impressionante.
Antes, vivia-se tempo suficiente para criar os filhos. Hoje, as
pessoas vivem 80, 90 anos. O progresso é impressionante.
O Atlas Brasil 2013, na avaliação geral dos 5.565 muni-
cípios do país, mostra que, entre 1991 e 2010, o tempo
médio de expectativa de vida do brasileiro subiu nove anos,
passando de 65 para 74 anos. São resultados espetaculares. 13
As pessoas tendem a atribuir esses resultados aos pro-
dutos que vemos na publicidade, belos hospitais e novos
medicamentos. “Tomou Doril, a dor sumiu” e semelhantes.
Na realidade, o imenso avanço da humanidade em termos
de esperança de vida se deve essencialmente à vacina, ao sa-
bão, ao acesso à água tratada e ao saneamento básico. Mais
recentemente no Brasil, a redução da fome com os diversos
programas governamentais também operou milagres, o que
explica em grande parte os nove anos de vida que ganhamos.
Portanto, ainda que grande parte de mídia se preo-
cupe com o tratamento da doença, os grandes ganhos de
produtividade e de dias saudáveis se devem à saúde pre-
ventiva, ou seja, ao conjunto das medidas – muitas delas
fora do que consideramos normalmente setor de saúde –
que evitam que surjam as doenças. Prevenir é incompara-
velmente mais produtivo do que remediar.
A tensão gerada aqui, entre o conceito de serviços de
saúde e o conceito de indústria da doença, é evidente. O
sistema privado não tem interesse no sistema de prevenção
por duas razões: primeiro, porque são ações universalizadas
(como vacinas, água e saneamento etc.) que envolvem mui-
ta gente sem dinheiro para pagar e grandes esforços organi-
zacionais que resultam da capilaridade das ações universais.
A vacina tem de chegar a cada criança do país. Segundo,
porque, ao se reduzirem os problemas de saúde, reduz-se o
número de clientes. E o setor privado vive de clientes. Está
interessado em poucos que possam pagar bem. Necessida-
de e capacidade de pagamento são duas coisas diferentes.
A concentração dos recursos da saúde privada no sistema
curativo hospitalar e nas doenças degenerativas dos idosos é
um resultado direto dessa deformação.
No caso brasileiro, naturalmente, a característica bá-
sica é a desigualdade, o que faz com que se tenham gerado
dois universos de serviços de saúde: o público para a massa
de pobres e o privado para os ricos e a classe média. Na
medida em que o setor privado da saúde, com fins muito
lucrativos, tenta expandir o universo de cobertura paga, os
esforços de se generalizar o acesso a bons serviços públi-
cos e gratuitos de saúde passam a ser atacados. O fato de
a direita americana no congresso quase ter paralisado os
Estados Unidos na guerra contra a universalização desses
serviços dá uma ideia dos interesses envolvidos.
Na realidade, nos Estados Unidos a saúde representa
praticamente 20% do PIB, enquanto a indústria emprega
menos de 10% da mão de obra do país. O fato de esse se-
tor da saúde se agigantar, tornando-se o setor econômico
mais importante, ajuda a entender as articulações perver-
sas que são gerados. Os Estados Unidos gastam cerca de
US$ 7.500,00 por pessoa por ano em serviços de saúde,
e o Canadá quase exatamente a metade. No entanto, o
nível de saúde no Canadá, onde os serviços são públicos,
universais e gratuitos, é incomparavelmente superior. O
sistema americano, baseado no privado e no curativo, faz o
cidadão procurar os serviços quando o mal já aconteceu. E
os procura raramente, pois são caros. O resultado é muito
dinheiro e pouca saúde. Nas pesquisas de produtividade
dos gastos em saúde em países desenvolvidos, os Estados
Unidos aparecem em último lugar. 14
A base do raciocínio – usando de preferência o cérebro
e não o fígado, de onde os argumentos já vêm verdes e amar-
gos – é que saúde não é um produto como um chinelo, que
se produz em massa na China ou na Indonésia e se despacha
por contêiner. Uma sociedade saudável trabalha um con-
junto de frentes que incluem desde cuidados da primeira
infância até o ambiente escolar, as condições de habitação e
urbanismo, a qualidade de vida no trabalho, o controle de
agrotóxicos e semelhantes. A vida saudável resulta de um
conjunto complexo de fatores, todos densamente ligados
com a qualidade de vida em geral. Não é um produto pa-
dronizado que sai de uma máquina e resolve. Envolve, na
realidade, uma forma de organização social.
Quando pensamos em saúde, tendemos a pensar na
farmácia e no hospital, porque nos acostumamos a pensar
nela apenas quando a perdemos. E não há dúvida de que há
uma indústria da doença pronta para reforçar essa visão em
cada publicidade de um plano privado de saúde, de remé-
dios milagrosos e semelhantes. Mas, no básico, é importante
pensar que as políticas de saúde se agigantaram muito re-
centemente e constatar as diferentes formas de organização:
desde o out-of-pocket (saúde curativa paga no serviço pres-
tado) dos Estados Unidos até a medicina pública social e
universal da Inglaterra, do Canadá, dos países nórdicos e de
Cuba. No Brasil temos a convivência caótica do SUS com
os gigantes financeiros que controlam os seguros e planos de
saúde, passando por organizações sociais e sistemas coope-
rativos diversos.
É importante a visão de conjunto: temos um grande
acúmulo de experiência de gestão empresarial nos setores
produtivos tradicionais, como de automóveis, e também
na área de administração pública tradicional. Mas, no
desafio de assegurar um bom nível de saúde, que resulta
da convergência de numerosos atores, inclusive dos mo-
vimentos sociais, ainda estamos à procura de paradigmas
adequados de gestão. Os rumos mais significativos, o que
funciona efetivamente em diversos países que atingiram
excelência, apontam para sistemas dominantemente pre-
ventivos, com acesso universal e gratuito, baseados em
gestão pública mas fortemente descentralizados, com forte
capacidade de participação e controle por organizações da
sociedade civil.
Há uma dimensão ética aqui: a de que nenhum ser hu-
mano deve padecer e sofrer quando há formas simples de
resolver o problema. A indiferença é vergonhosa e injustifi-
cável. Em termos sociais e políticos, não há dúvida de que
uma das melhores formas de democratizar uma sociedade é
assegurar que todos tenham acesso à saúde, tanto preventi-
va como curativa, independentemente do nível de renda. É
uma forma essencial de redistribuição indireta de renda e de
se generalizar o bem-estar.
A falta de acesso a serviços básicos de qualidade, por
outro lado, gera um sistema quase de chantagem: as famílias
se sangram para pagar um plano privado de saúde, gastando
muito mais do que o custo dos serviços prestados, simples-
mente por insegurança, pela possível tragédia de um aciden-
te ou doença grave. Acabamos contratando um plano, e pa-
gando caro para ter um certo sentimento de tranquilidade, e
não pelos serviços de saúde efetivamente prestados. Quanto
mais inseguros, mais pagamos. A indústria da doença preci-
sa ser fortemente controlada, e um dos melhores caminhos
é a sistemática elevação da qualidade e acessibilidade dos
serviços públicos universais de saúde. 15
14. Avaliação de 2007 mostrou os Estados Unidos em último lugar entre países desenvolvidos
em eficiência de saúde: gastaram US$ 7.290,00 por pessoa. Em primeiro lugar ficou a Holanda,
apesar de gastar apenas US$ 3.837,00 (New Scientist, 26 jun.2010). Saúde privada, essencialmente
curativa e elitista, constitui um desperdício. O que não impede que os EUA sejam um destino
lógico para uma intervenção cirúrgica de ponta paga a preço de ouro.
Dowbor. O pão nosso de cada dia.
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