Mas há duas
aplicações do mecanismo conceitual de conservação do
universo que ainda resta discutir no contexto da teoria
geral: a terapêutica e a aniquilação.
A terapêutica acarreta a aplicação do mecanismo conceitual a fim de assegurar que os discordantes atuais
ou potenciais se conservem dentro das definições institucionalizadas da realidade, ou, em outras palavras, Impedir que os "habitantes" de um dado universo "emigrem". Realiza isso aplicando o aparelho legitimador aos
"casos" individuais. Desde que, conforme Vimos, toda sociedade enfrenta o perigo de dissidência individual, podemos admitir que a terapêutica, de uma forma ou de
outra é um fenômeno social global. Seus dispositivos
institucionais específicos, do exorcismo à psicanálise, da
assistência pastoral aos programas de aconselhamento
pessoal, pertencem naturalmente à categoria do controle
social. Aqui interessa-nos, porém, o aspecto conceitual
da terapêutica. Tendo a terapêutica de ocupar-se com
os desvios das definições "oficiais" da realidade, deve
criar um mecanismo conceitual para explicar esses desvios e conservar as realidades assim ameaçadas. Isto requer um corpo de conhecimento que inclui uma teoria
da dissidência, um aparelho de diagnóstico e um sistema conceitual para a "cura das almas".
Por exemplo, numa coletividade que institucionalizou
a homossexualidade militar, o indivíduo obstinadamente
heterossexual é um candidato seguro à terapêutica, não
somente porque seus interesses sexuais constituem evidente ameaça à eficiência de combate de sua unidade
de guerreiros-amantes, mas também porque seu desvio
é psicologicamente subversivo para a virilidade espontânea dos outros. Afinal de contas, alguns destes, talvez
"subconscientemente", podem ser tentados a seguir seu
exemplo num nível mais fundamental, a conduta do
dissidente desafia a realidade social como tal, pondo em
questão seus procedimentos operatórios cognoscitivos admitidos como certos ("os homens viris por natureza
amam uns aos outros"), e os procedimentos normativos "os homens viris devem amar uns aos outros"). De fato
,
o dissidente provavelmente representa um insulto vivo aos deuses, que amam
uns aos outros no
céu, assim como seus devotos na terra. Este desvio radical requer uma prática terapêutica solidamente fundada numa
teoria terapêutica. É preciso haver uma teoria do desvio (uma "patologia") que explica esta condição chocante (digamos, postulando a possessão demoníaca). É preciso haver um corpo de conceitos diagnósticos
(digamos, uma sintomatologia, com práticas apropriadas para aplicá-Ia em julgamentos por ordálio), que
não somente permita de maneira ótima
a precisa especificação das condições agudas mas também descobre a heterossexualidade latente"
e
a rápida tomada de medidas preventivas. Finalmente, deve haver uma conceituação do processo curativo (digamos, um catálogo de
técnicas de exorcismos, cada qual com adequada fundamentação teórica).
Este mecanismo conceitual permite sua aplicação terapêutica pelos especialistas adequados e pode também
ser interiorizado pelo indivíduo que sofre da condição
dissidente.
A interiorização em si mesmo terá eficácia
terapêutica. Em nosso exemplo, o mecanismo conceitual
pode ser organizado de tal maneira que desperte
a culpa
no indivíduo (digamos, um "pânico heterossexual"), façanha não demasiado difícil se sua socialização primária teve ao menos um êxito mínimo. Sob a pressão
desta culpa,
o indivíduo chegará
a aceitar subjetivamente a conceitualização. de sua condição com a qual
os profissionais terapêuticas·
o fazem defrontar-se. Cria
uma "visão interior", e'
o diagnóstico torna-se subjetivamente real para ele. O mecanismo conceitual pode ser
ainda mais desenvolvido
a fim de permitir
a conceitualização (e assim
a liquidação conceitual) de quaisquer
dúvidas
a respeito da terapêutica sentida ou pelo terapeuta ou pelo "paciente". Por exemplo, pode haver uma
teoria da "resistência" para explicar as dúvidas deste
último,
e uma teoria da "contra-transferência", para explicar as dúvidas do primeiro. A terapêutica eficaz estabelece uma simetria entre
o mecanismo conceitual
e sua
apropriação subjetiva pela consciência do indivíduo. Ressocializa o transviado, reintroduzindo-o na realidade objetiva do universo simbólico da sociedade. Evidentemente
existe uma grande satisfação subjetiva por motivo deste.
retorno
à "normalidade".
O indivíduo pode agora retornar ao amoroso abraço do comandante de seu pelotão com o feliz conhecimento de se ter "encontrado a si mesmo", c de mais uma vez estar certo aos olhos
dos deuses.
A terapêutica usa
o mecanismo conceitual para manter todos dentro do universo em questão. A aniquilação
por sua vez usa um mecanismo semelhante para liquidar conceitualmente tudo que está situado fora deste
mesmo universo. Este procedimento pode também ser
considerado uma espécie de legitimação negativa.
A legitimação conserva a realidade do universo socialmente
construído;
a aniquilação nega
a realidade de qualquer
fenômeno ou interpretação de fenômenos que não se
ajustam nesse universo. Isto pode ser realizado de duas
maneiras. Primeiramente,
é possível dar um status ontológico negativo aos fenômenos de desvio, com ou sem
intenção terapêutica.
A aplicação aniquiladora realizada pelo mecanismo conceitual é em geral mais usada
com indivíduos ou grupos estranhos
à sociedade em
questão
e por isso inelegíveis para
a terapêutica.
A
operação conceitual nesse caso
é bastante simples.
A
ameaça às definições sociais da realidade
é neutralizada
atribuindo-se um status ontológico inferior,
e com isso
um status cognoscitivo que não deve ser levado
a sério,
a todas as definições existentes fora do universo simbólico. Assim, a ameaça da vizinhança de grupos anti-homossexuais pode ser conceitualmente liquidada por
nossa sociedade homossexual considerando esses vizinhos
como seres inferiores aos homens, inatamente desnorteados a respeito da correia ordem das coisas, vivendo
em uma insanável obscuridade cognoscitiva.
O silogismo
fundamental
é
o seguinte: os vizinhos são uma tribo de
bárbaros. Os vizinhos são anti-homossexuais. Por conseguinte, sua anti-homossexualidade é um absurdo bárbaro, que não deve, ser tomado a sério por homens.
razoáveis. O mesmo procedimento conceitual pode sem
dúvida ser também aplicado aos transviados dentro da
sociedade. Quer se passe da aniquilação à terapêutica,
quer se empreenda a liquidação física do que se liquidou
conceitualmente, isto é apenas uma questão de política
prática. O poder material do grupo conceitualmente liquidado na maioria dos casos não será um fator insignificante. Às vezes, infelizmente, as circunstâncias nos..
forçam a manter relações cordiais com bárbaros.
Em segundo lugar, a aniquilação implica a tentativa
mais ambiciosa de explicar todas as definições dissidentes da realidade em termos, de conceitos pertencentes
ao nosso próprio universo. Num quadro de referência
teológico isto acarreta a transição da heresiologia à apologética. As concepções transviadas não recebem simplesmente um status negativo, são atacadas teoricamente
em detalhes. O objetivo final deste procedimento é incorporar as concepções dissidentes ao nosso próprio
universo, e com isso em última análise liquidá-Ias. As
concepções dissidentes devem portanto ser traduzidas em
conceitos derivados de nosso próprio universo. Desta maneira, a negação de nosso universo transmuta-se sutilmente na afirmação dele. Há sempre a pressuposição de
que o negador não sabe realmente o que está dizendo.
Suas afirmações só adquirem sentido quando são traduzidas em termos mais "corretos", isto é, em termos derivados do universo por ele negado. Por exemplo, nossos
teóricos homossexuais podem argumentar que todos os
homens são por natureza homossexuais. Os que negam
isto, em virtude de estarem possuídos por demônios ou
simplesmente por serem bárbaros, estão negando sua
própria natureza. Bem no fundo de si mesmos, sabem
que isto é assim. Basta, portanto, investigar cuidadosamente seus enunciados para descobrir o caráter defensivo e a má fé da posição deles. Seja lá o que for que
digam neste assunto, isso pode assim ser traduzido em
uma afirmação do universo homossexual, que eles ostensivamente negam. Num quadro de referência teológico
o mesmo procedimento demonstra que o demônio involuntariamente glorifica Deus, que toda descrença é apenas desonestidade inconsciente, até mesmo que o ateu é
realmente um crente.
As aplicações terapêutica e aniquiladora dos mecanismos conceituais são inerentes ao universo simbólico enquanto tal. Se o universo simbólico tem de abranger a
realidade, não é possível deixar que alguma coisa fique
fora de seu âmbito conceitual. Em princípio, de qualquer maneira suas definições da realidade devem abranger a totalidade do ser. Os mecanismos conceituais com os quais se tenta fazer esta totalização variam historicamente em grau de complexidade. In nuce aparecem logo que o universo simbólico cristalizou-se.
Do livro A construção social da realidade
Do livro A construção social da realidade
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