O mesmo ocorre nas passeatas (esses desfiles de protesto), pois o proposito da marcha é uma demonstração contra alguma atitude tomada como injusta pelos desfilantes, agora chamados de "manifestantes", palavra com conotações negativas no Brasil. esse reino do conformismo. Como nas procissões e nas paradas, o alvo do desfile é claro: comemora-se, protesta-se. Sabe-se, numa palavra, o sentido da festividade, da marcha, da reunião. É precisamente isso que provoca a congregação, a aglutinação e, finalmente, a incorporação. Pois, é preciso haver um alvo comum para que os individuos possam transformar-se num conjunto, numa associação. Ora, quando o rito tem um sujeito, ou um dono, é isso que forma o ponto focal da festa e da marcha. É o ponto-chave, o simbolo focal da reunião, o que lhe dá, ao mesmo tempo, um motivo, um sentido e uma unidade. Mas, no carnaval, quem é o dono da festa? Respondendo a essa questão, falamos que "cada qual brinca como pode", pois "o carnaval é de todos".
Realmente, essa talvez seja a única festa nacional sem um dono. Destaco que na inocência das expressões acima existe um alto conteúdo distributivo e, naturalmente, compensatório. Isso numa sociedade tão centrada na imposição de formas e fórmulas fixas, na sua maioria com um formato jurídico definitivo, nos modos de fazer, reproduzir, comemorar, ritualizar. Seja na "rua" ou em "casa", o brasileiro está normalmente sujeito a regras fixas sque demandam um relacionamento constante entre ele e o seu grupo. De fato, essas regras (e modos de fazer) atrelam o individuo ao grupo (ou a grupos), impedindo sua ação atomizada (como indivíduo) que sempre fica situada fora das normas e tende, como conseqüência, a ser vista e interpretada como ilegítima. Desse modo, o projeto da sociedade brasileira, com suas regras e ritos, é fazer dissolver e desaparecer o individuo. Entre sua vontade individual e um curso de ação ditado pelas normas e ritos, o brasileiro oscila, concilia e interpreta. Nunca é dono de si mesmo, mas, ao contrário, é possuido pelas leis, normas e portarias. Assim, em casa, o individuo está sujeito ao rigido código de amor e respeito à sua família, grupo visto como inevitavel e inescapável, do qual ele é um perpétuo dependente e no qual dissolve sua individualidade em muitas ocasiões. A esse grupo, conforme quer nossa ética social, "tudo se deve" pois e nele que se aprende a ser "alguém", a tornar-se uma pessoa. O mundo da "rua" porém, é o oposto. Nele, vemos o individuo desgarrado de seu grupo moral e, por isso mesmo, sujeito aos códigos impessoais do trânsito, da oferta e da procura, do municipio e do Estado . Não é, pois, por acaso que é precisanente nesse meio hostil e quase sempre carente de hierarquias e complementaridade que o brasileiro utiliza os ritos de afastamento e de reforço, como aquele implicado na expressão "sabe com quem está falando?", todas as vezes em que se sente esmagado pelas normas impessoais e deseja mostrar que, afinal, "é alguém", como veremos mais adiante, no Capitulo IV. No Brasil, então, a passagem da casa para a rua é sempre ritualizada. Preparar-se para sair de casa é não só uma expressao corrente, mas um modo de tomar consciência (ou seja, ritualizar ou dramatizar) essa passagem de um lugar seguro onde reina a complementaridade e a hierarquia, para outro muito mais individualizado, onde se é anônimo. Nessa passagem é preciso "arrumar o corpo", tornando-o publicamente apresentável. A roupa e a aparência (que inclui o modo de andar, falar e gesticular) ajudam a manter uma posição de membro de uma "casa", mesmo quando se está em plena "rua" ajudam a revelar que o interlocutor é "gente que se lava", "gente de berço", que obviamente tem "onde cair morto" pois isso é sinal indicativo de ter uma casa como propriedade permanente e estar sempre num mesmo local, onde pode ser encontrado e todos se conhecem. Inconcebível essa mobilidade extrema dos americanos, que nunca estão preocupados em ter uma casa e vivem, às vezes, em casas móveis! A roupa e a preocupação com a aparência, sobretudo no ato de ir (ou estar) na rua, demonstram que se deseja vestir um etiqueta social no corpo, como um sinal contra o anonimato. Tudo isso serve como instrumento para permitir - no universo individualizado da rua - o estabelecimento de hierarquias e
criar os espaços onde cada um possa perceber e saber "com quem está falando". Diríamos então que no Brasil todas as situações sociais têm algum "dono". Se este não é uma pessoa concreta, é um santo. Se não é um herói, é algum domínio. Sempre, e este é o ponto-chave, existe uma necessidade de impor um código qualquer, de modo que a situação possa ser hierarquizada. Mas no carnaval as leis são mínimas. É como se tivesse sido criado um espaço especial, fora da casa e acima da rua, onde todos pudessem estar sem essas preocupações de relacionamento ou filiação a seus grupos de nascimento, casamento e ocupação. Estando, de fato, acima e fora da rua e da casa, o carnaval cria uma festa do mundo social cotidiano, sem sujeição às duras regras de pertencer a alguém ou de ser alguém. Por causa disso, todos podem mudar de grupos e todos podem se entrecortar e criar novas relações de insuspeitada solidariedade. No carnaval, se o leitor me permite um paradoxo, a lei é não ter lei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário