CRIANÇAS COMO REFÉNS
[Polêmico, mas interessante]
O fato das crianças serem imensamente encantadoras está longe de ser uma justificação para as dar à luz: quem faz crianças faz também adultos – portanto, homens e mulheres. A maioria dos homens, porém, vive como adultos, no inferno. E a felicidade das mulheres é de tal forma primitiva e é conseguida de tal modo à custa de outrem que também não há para fazer mulheres. Não corresponderia à verdade afirmar-se que só as mulheres estão interessadas em gerar crianças. Também os homens as desejam, pois estas integram-se nas duas ou três desculpas com que podem justificar a sua submissão à mulher. A mulher, ao contrário, justifica com elas a sua preguiça, a estupidez e a falta de responsabilidade. Desse modo, abusam os dois da criatura para conseguir seus respectivos fins. Embora o mundo esteja repleto de órfãos meio esfomeados, cada casal procura sempre a sua própria descendência. Pois o homem tem que possuir um motivo para, mesmo mais tarde, quando o seu apetite sexual tiver diminuído, se escravizar a determinada mulher (à mãe dos seus filhos) e não a outra qualquer. Como a mulher é para ele, sobretudo, um álibi para a submissão, só pode utilizar num dado momento uma única (em todas as sociedades industriais o homem é monoteísta – quer dizer, monógamo), vários deuses (mulheres) torna-lo-iam inseguro, dificultariam a sua identificação consigo próprio e repeli-lo-iam para aquela liberdade da qual ele está continuamente em fuga. Semelhantes motivos não significam nada para a mulher. Como não pensa em abstrato, não tem, como já vimos, nenhum medo existencial e nenhuma necessidade de um deus que dê ao seu mundo um sentido superior. Basta-lhe um pretexto para justificar que seja precisamente esse homem (que já não vai muito interessado para a cama com ela) que deva trabalhar para ela, e, para isso, necessita de filhos desse mesmo homem. Admitindo que no nosso planeta existisse excesso de homens e a cada mulher coubessem, por exemplo, três homens, a mulher não teria nesse caso, evidentemente, quaisquer inibições em arranjar filhos de cada um desses três machos e fazê-los trabalhar a todos para as respectivas crianças (quer dizer, para si própria). Poderia, então, aproveitar-se da rivalidade entre esses homens e assim aumentar enormemente a sua capacidade de trabalho – e consequentemente o seu próprio conforto. Ao contrário da opinião corrente, ela seria mais predestinada para a poligamia do que o homem. Um homem que tem filhos de uma mulher, dá-lhe reféns para a mão e espera que ela o pressione com eles até a eternidade. Só assim é que ele terá um apoio no seu destino absurdo, e, a escravidão sem sentido, para a qual foi domado, uma justificação. Quando trabalha para a mulher e filho não trabalha só para dois seres humanos, um dos quais não quer fazer nada por ser feminino e o outro nada sabe fazer, por ser demasiado pequeno. Ele trabalha também para algo que é mais do que essa mulher e esse filho, trabalha para um sistema que abrange tudo que ao cimo da terra é pobre, desamparado e necessitado de proteção (a pobreza, o desamparo e a falta de proteção em si mesmo consideradas), sistema que – segundo crê – precisa dele. Com a mulher e o filho arranja um álibi para a sua escravatura, uma justificação artificial para a sua desconsolada existência, e chama a esse sistema, a esse grupo sagrado que voluntariamente originou, a sua “família”. A mulher aceita com alegria os seus serviços em nome da “família”. Ela aceita os reféns que ele lhe confia, e faz com eles o que ele deseja (amarra-o a si cada vez com mais força e submete-o até o fim da sua vida) –, tirando daí todo o proveito. Ambos (homem e mulher) só têm, pois, vantagem em ter filhos (caso contrário, não os procriariam). O homem tem a vantagem de dar, retroativamente, à sua vida um sentido mais elevado e de poder escravizar-se para sempre, e a mulher aufere todas as vantagens restantes. Essas vantagens devem ser enormes para ela, pois praticamente todas podem escolher entre a vida profissional e filhos e quase todas decidem-se pelos filhos. Poder-se-ia aqui objetar que as mulheres só se decidem por filhos e não pela profissão porque adoram crianças. A isso responder-se-ia que uma mulher nem é capaz de tão elevados sentimentos como os exigiria um amor puro por crianças. A prova é que quase todas as mulheres só se preocupam com os seus próprios filhos e nunca com os alheios. Só cuidam de uma criança alheia, quando, por motivos médicos, não podem ter as suas (e mesmo nesse caso quando falharam todas as tentativas, inclusiva fecundação com sêmen de um homem estranho). Embora orfanatos de todo o mundo estejam cheios de crianças encantadoras e necessitadas e embora a televisão e os jornais publiquem quase todos os dias números referentes a pequenos africanos, indianos e sul-americanos que morreram de fome, é mais fácil as mulheres levarem para casa um cão ou gato vadios – elas que pretendem amar as crianças – do que uma criança abandonada. [O próximo parágrafo (destacado em itálico) está disponível na edição de 1972, mas foi aparentemente removido em edições posteriores]: E embora todas as revistas possa ler-se a taxa elevada de monstros que são gerados todos os anos (crianças hidrocéfalas, com falta de membros, cegas, surdas, idiotas), elas não se deixam impressionar por isso e continuam pondo-os neste mundo, uns após outros, como se tivesse condenados a nascer por bruxedo. Quando acontece a uma delas dar, então, à luz uma dessas criaturas monstruosas, não se sente desmascarada no seu egoísmo e chamada à responsabilidade: – como a mãe de um monstro é venerada na nossa sociedade como uma mártir. Fala-se com o maior dos respeitos de uma mãe que deu à luz um filho idiota e se ainda não tiver um filho saudável, tratará de o obter o mais depressa possível, um “normal”, igual aos filhos das outras mulheres, para provar que é saudável (e obrigado assim esse filho normal a passar toda a sua juventude, toda a sua vida, na companhia dum idiota). É difícil desmascarar as mulheres, revelando que elas não amam as crianças e só abusam delas em seu proveito, porque a gravidez, o nascimento e os cuidados a ter um filho pequeno estão, de fato, ligados a alguns inconvenientes. Mas que insignificantes eles são comparados com aquilo que obtém em troca: segurança vitalícia, conforto e isenção de responsabilidade. O que teria um homem de suportar para alcançar para si algo de igualmente valioso? Já começou até a circular entre os homens que uma gravidez não é de longe tão desagradável como parece. Há mulheres que se sentem particularmente bem durante esse período e tornou-se recentemente moda confessá-lo abertamente. Escusam de se incomodar muito com o fato de todas ficarem feias e mal apresentadas, com uma figura maciça, rosto inchado, pele com manchas, cabelo áspero e pernas com varizes. Durante esse tempo não procuram homem, já tem um, e se ele é obrigado a assistir à transformação da sua mulher borboleta em lagarta só tem que se queixar de si próprio. É o seu filho que ela aguarda, é ele que a desfigurou tanto – que direito teria ele de achá-la pesadona e repugnante (além disso, ela está precisamente nessa altura a “oferecer-lhe a sua juventude”)? Acerca do processo do parto propriamente dito grassam ainda boatos atemorizantes, que o homem jamais poderá chegar à conclusão de que a mulher recebe filhos para sua própria vantagem e não para a dele. É certo que a expressão “ela deu-lhe um filho”, que aparecia antigamente nos romances, vai desaparecendo lentamente da literatura, mas, na consciência do homem ela ainda está suficientemente radicada para provocar neles, quando do nascimento da sua descendência, apenas sentimentos de culpa (sentimentos esses em relação à mulher, bem entendido, não ao recém-nascido!). Se um homem imaginasse que poderia ganhar uma pequena renda vitalícia graças a uma consulta no dentista que demorasse seis horas não o faria? Claro que, de vez em quando, também há partos difíceis (graças à anestesia são consideravelmente menos dolorosos), mas, em geral, o parto não é mais doloroso para uma mulher que uma demorada consulta no dentista. O que os homens sabem através das mulheres acerca do desenrolar do parto são, na maioria, exageros desavergonhados. Os gritos estridentes que, frequentemente, chegam até eles atravessando a porta das salas de parto, explicam-se melhor por falta de orgulho e deficiente auto-domínio (ambos foram explicados pormenorizadamente noutro capítulo). Há anos que existe o parto sem dor em que as mulheres dão à luz os seus filhos depois de um período de preparação, com ginástica e treino próprio, sem anestesia e sem se queixarem. As mulheres fariam bem em combinar umas com as outras se o parto faz ou não faz doer. Enquanto umas contarem isto e as outras aquilo, caem em descrédito e prejudicam a causa comum. Claro que a mulher tem mais algumas razões para gerar pequenos seres humanos além de dar-se ares de desamparo e passar assim os dias com trabalho fácil e sem obedecer a chefes. Ela descobre, por exemplo, um belo dia, que o seu corpo funciona como uma máquina automática na qual basta introduzir algo de modesta aparência para dele sair algo de fantástico. É natural que se entusiasme a experimentar um dia esse jogo maravilhoso. E depois de o ter jogado uma vez, gostaria de o continuar a jogar muitas e muitas vezes (quase sempre bate certo: – precisamente ao cabo de nove meses vem um ser humano), fica louca de entusiasmo e acha-se magnífica. É evidente que a utilização do autômato é, no fundo, tão natural como um homem partir a cabeça a outro (caindo este automaticamente), só porque isso é biologicamente possível. – Se cada um desses jogos com o seu corpo-autômato não significasse posteriormente um pequeno incômodo para si, ela seria insaciável. Assim, é forçada a estabelecer uma fronteira: aquela onde uma criança a mais significaria para ela apenas um aumento do programa de trabalho e não um acréscimo de segurança ou conforto. A fronteira é geralmente muito fácil de estabelecer e é condicionada, principalmente, pelo estágio de automatização do respectivo trabalho doméstico: em países altamente industrializados a mulher deseja dois ou três filhos. Para a norte-americana cujo trabalho doméstico está plenamente automatizado, o ótimo serão três; a europeia ocidental (a quem faltam ainda alguns aparelhos domésticos), preferirá dois. Raramente se deseja um filho único e mais que três filhos é considerado associal por causa do barulho e do cheiro da roupa suada. Um filho único não traz vantagens, apenas desvantagens. Uma mulher com um filho único nunca parece tão desamparada ou agrilhoada ao lar como devia ser. E podia também vir a acontecer qualquer coisa a esse filho – talvez até numa idade em que a mulher já não pudesse mais conceber – e deixaria de haver pretexto para levar uma vida mais cômoda que a do seu marido e ele já não teria pretexto para trabalhar precisamente para ela. Além disso, o filho único não teria companheiros de brincadeiras, a mulher teria talvez até de brincar com ele – e se alguma coisa existe que as mulheres detestam é brincar com os filhos. Enquanto que as crianças se interessam por tudo e perguntam tudo, a mulher fundamentalmente não se interessa por nada (além das imbecis possibilidades de divertimento que lhe proporcionam o governo do lar e o seu corpo). Por isso, é manifestamente difícil à mulher – mesmo quando tem a melhor boa vontade, – penetrar no mundo fantástico das crianças. É certo que ela possui um repertório de expressões pueris para entretenimento de crianças muito pequenas (“Ai, ai, ai, quem é que vem aí?”) mas logo que elas ultrapassam os dois anos e começam a pensar por si, acabou-se. Não existe a propósito da mãe e do filho, nem sequer a propósito da mãe e da filha, o proverbial “clichê” dos interesses comuns de pai e filho “o pai que não pode deixar de brincar com o trem elétrico do filho). Quando, porém, uma mulher consegue dominar-se e brincar meia hora por dia com seu filho (...mais do que isso também seria prejudicial para o desenvolvimento do seu espírito), conta isso em toda parte como se fosse uma façanha (e com razão, porque autodomínio em tal grau é de fato, no caso dela, uma façanha). Só dois ou três filhos é que garantem segurança material: fazem com que a mulher pareça desamparada e incapaz de angariar o seu sustento e diminui o risco de ficar na velhice sem filhos (sem netos), sem ninguém que lhe possa manifestar a sua reverência pelo cuidado maternal. Permite, além disso, que as crianças brinquem umas com as outras, enquanto a mulher se dedica aos seus prazeres “mais elevados”, tais como coser ou fazer bolos. A assistência maternal consiste, nesse caso, em fechar os filhos todos num quarto e voltar a entrar nele apenas quando algum se feriu ou berrou muito alto. Acresce que a educação e amestração de dois ou mais filhos é muito mais fácil de conseguir que de um filho único. Para conquistar a obediência de um filho único tem de fazer-se uma complicada propaganda, têm de inventar-se métodos para o enganar (“persuadir”, “levá-lo ao bom caminho”) ou é preciso castigá-lo (o que só maça a mulher, por isso deixa este trabalho para o marido). Pelo contrário, vários filhos educam-se por chantagem. Como todos dependem do elogio da respectiva mãe, basta favorecer ligeiramente um deles para que os outros façam imediatamente o que lhes é exigido. Cada filho vive num medo constante de que a mãe o possa privar do seu “amor” para o dedicar a outro, e se é certo que esse medo não permite, em regra, que haja simpatia entre irmãos (como se a mulher estivesse interessada nisso!), a verdade é que estimula a concorrência e, portanto, o rendimento do trabalho. E mais tarde também, quando esses filhos forem adultos, mais não desejarão, no fundo, que supervalorizarem-se mutuamente para mostrar essa eficiência aos olhos da mãe. Os filhos satisfazem a sua ambição na profissão, as filhas rivalizam mutuamente na acumulação de bens. E de tempos a tempos juntam-se todos à volta da mãe (que tem isso na conta de demonstração de simpatia e apoda o interesse de uns irmãos pelos outros de “sentido de família”) para mostrar a ela os seus últimos feitos. Todas essas vantagens, porém, só existem no caso de haver dois ou três filhos. Uma mulher com mais de três filhos (hoje em dia, na maioria dos casos, devido a um descuido ou a compromissos religiosos do homem) tem, é certo, durante alguns anos, bastante que fazer – se bem que podendo dividir o tempo à sua vontade, sem responsabilidade pelo sustento de sua vida (de resto, a responsabilidade por crianças é desconhecida da maioria das mulheres) e sem superiores hierárquicos. Mas essa atividade aumentada dura apenas até o filho mais novo atingir a idade do jardim de infância, e ainda lhe proporciona uma pequena vantagem: pode estar certa de que o seu marido, enquanto os filhos não forem crescidos, nunca a deixará. Sim, porque um homem que abandona uma mulher com quatro ou mais filhos (mesmo que seja, simplesmente para não a poder aturar mais) é considerado na nossa sociedade, praticamente como um criminoso. Seja como for, quando os filhos atingem a idade escolar ou pré-escolar, termina, mesmo para a mãe de muitos filhos, a maior parte do trabalho da sua vida. De novo passa a ter tempo – e já agora com mais dinheiro – para gozar a vida. Vai ao cabeleireiro, dispõe em jarras, pinta os móveis de cores seguindo as sugestões das revistas femininas e cuida do seu precioso corpo. Na maioria dos países ocidentais o ensino nas escolas dura quase todo o dia e nos poucos em eu ainda não existem escolas dessas, estão os homens construindo-as com o entusiasmo habitual. A partir das suas investigações, verificam que as crianças não submetidas à influência das respectivas mães durante meio dia, podem desenvolver melhor as suas faculdades intelectuais e por conseguinte serão mais produtivas posteriormente. A utilização prática desse conhecimento, que de forma alguma consideram humilhante (como não conhecem a “honra” dos homens, não podem ser atingidas dessa maneira) é feita, pois, duplamente, no interesse das mulheres.
O HOMEM Domado (1971) Esther Vilar
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