O que é "anormal"?
Já deveria ser evidente que a crise comportamental é um
resultado direto de processos de controle normais; conduta anormal,
também, é regida por leis. Assim como a pesquisa sobre reações
corporais normais a ataques virais levou à possibilidade de prevenir
a influenza, a pesquisa sobre ajustamentos comportamentais nor-
mais ao controle coercitivo tem levado à possibilidade de melhorar
algumas formas de doença mental.
Claramente, muitos fatores podem contribuir para a doença
mental e qualquer caso particular requer a consideração de todas as
possibilidades: sociais e individuais, internas e externas. Mas no
final, vemos doença mental na conduta. Compreender e fazer algo
sobre a anormalidade requer análise comportamental. Quando efe-
tuamos essa análise, freqüentemente descobrimos que as leis do
controle coercitivo, atuando por meio de contingências de punição,
fuga e esquiva, fornecem bases efetivas para tratamento.
Embora uma compreensão do caráter ordenado do comporta-
mento possa trazer a prevenção e a cura de muitas doenças men-
tais, muitos psiquiatras e psicólogos agem como se tal compreensão
não fosse possível. Para definir anormalidade eles não especificam
processos comportamentais mas, em vez disso, usam grosseiros cri-
térios estatísticos. Eles vêem com suspeita e tentam curar qualquer
ação que se desvie do usual.
Para onde nos teria trazido a medicina científica se tivesse
considerado a influenza anormal apenas porque era relativamente
rara? A lógica teria nos dito, então, que o problema da influenza
poderia ter sido resolvido do modo mais duro — livrando-se dela —
ou do modo mais fácil — passando-a para todo mundo e, assim,
tornando-a "normal". A doença mental, também, definida estatistica-
mente, poderia logicamente ser eliminada como um problema tor-
nando todo mundo mentalmente doente.
A definição estatística de anormalidade levanta mais do que
um problema simplesmente lógico. Vivemos em uma sociedade com-
plexa e o que uma comunidade admira ou tolera, uma outra conde-
na ou proíbe. Conduta que seria ricamente recompensada em Los
Angeles, envia os cidadãos de Boston para terapia. Sob a capa do
cuidado acadêmico, encontros universitários encorajam detalhismo
e sofisticação que não seriam tolerados em qualquer reunião de
negócios entre executivos; universidades e empresas atraem pessoas
que não poderiam aceitar ou sobreviver aos costumes uns dos ou-
tros. Quem deve dizer que ambiente, que grupo, é anormal — se
algum o é? Na prisão a sociedade releva e até mesmo encoraja a
mesma violência — pelos que a guardam e a habitam, igualmente —
que condena em todos os outros lugares; ações que são anormais
fora da prisão são normais dentro dela.
Porque não conseguimos nos conformar aos costumes de um
segmento particular da sociedade, isto torna nosso comportamento
doente? Precisamos de tratamento? Seguir estritamente este critério
eliminaria toda criatividade; por definição, criatividade é a produção
do não-usual. Infelizmente, a rotulação da criatividade como anor-
mal realmente ocorre mais freqüentemente na arte, literatura e ciên-
cias do que é comumente assumido. Isto também rotularia todo
desempenho superior como anormal. Mais uma vez, infelizmente, os
mais competentes são freqüentemente rotulados como anormais:
atletas excepcionais freqüentemente são vistos como estranhos, per-
formers para nosso divertimento; os mais capazes dentre os alunos
de segundo grau são colocados no ostracismo e até mesmo persegui-
dos por seus colegas menos intelectualizados; o gênio científico é
estereotipado como superespecializado, limitado na sua adaptabili-
dade geral — um tipo de sábio desligado e idiota.
Tentativas de quebrar o raciocínio circular não-produtivo.
que rotula qualquer coisa não-usual como anormal, têm levado a
outras definições de anormalidade. Algumas organizações profissio-
nais listam critérios absolutos para o que é normal. Usando seus
critérios, elas estabelecem padrões de saúde mental. Estes padrões
absolütos de normalidade, embora baseados nos vocabulários da
medicina e da psicologia, não são, freqüentemente, menos arbitrá-
rios que os critérios estatísticos. Eles quase sempre requerem con-
formidade a crenças que são pouco mais que preconceitos pessoais
sobre o que é e o que não é saudável. Embora banhados em respei-
tabilidade profissional, eles raramente têm validade científica ou
clínica.
Muitos psiquiatras estão descobrindo que suas teorias sobre
relações "normais" entre sexos, estão sendo desafiadas por mulheres
que se recusam a desempenhar papéis tradicionais. E assim, eles
rotulam o feminismo moderno como não-saudável, necessitando de
tratamento, precisando ser curado. A própria coerção que a socieda-
de coloca sobre as mulheres que seguem caminhos diferentes da-
queles que foram mapeados para elas é citada como prova da anor-
malidade feminista: "Elas estão apenas procurando problemas." Os
padrões absolutos de normalidade feminina são baseados em tradi-
ção cultural, não em análise científica.
Uma situação semelhante existe com relação à preferência
sexual. Muitos psicólogos, refletindo a hostilidade pública em rela-
ção à homossexualidade, a pronunciam como desviante e oferecem
curas. Tentativas de impor critérios absolutos de normalidade se-
xual não consideram que muitos homossexuais se sentem perfeita-
mente bem consigo mesmos e que muitos outros iriam se sentir bem
se não fosse pelas pressões coercitivas que são exercidas sobre eles.
Dizer que as fontes de todo comportamento, normal ou anor-
mal, são elas mesmas normais, não é negar a existência da anorma-
lidade. Algumas condutas chamadas de anormais, ou doentes, po-
dem ser valiosas para a comunidade, ou podem simplesmente ser
diferentes. Nesses casos, o rótulo "doença" mais provavelmente cau-
sará sofrimento, do que curará sofrimento. No entanto, muitas for-
mas incomuns de comportamento nos incomodam não apenas por-
que são diferentes, mas porque realmente causam sofrimento. Ainda
que elas sejam freqüentemente difíceis de classificar, não podemos
negar a realidade da depressão, das fobias e de outros "mecanismos
de defesa" e de vários tipos de esquizofrenia; todas elas precisam ser
tratadas tão efetivamente quanto saibamos.
E, algumas vezes, a segurança da comunidade está em jogo.
Assassinos de massa, espancadores de mulheres, molestadores de
crianças, criminosos sexuais e outros casos de violência patológica
são seguramente anormais com bases outras do que sua relativa
raridade. Também precisamos tratá-los, mesmo que eles não dese-
jem aceitar tratamento. Se não sabemos como chegar às fontes de
suas anormalidades, apenas podemos admitir nossa ignorância e
colocá-los onde eles não possam nos machucar.
Mas se uma anormalidade é desejável ou não, e se deveria
ser tratada, sempre envolve julgamentos de valor. E o mais efetivo
dos tratamentos sempre surgirá de uma compreensão do estado
normal. Na medicina, a definição de uma doença requer a identifica-
ção de processos internos que estão produzindo os sintomas exter-
nos. Na análise do comportamento, a definição de doença requer a
identificação de processos que estão produzindo e mantendo quais-
quer ações que consideremos como nos incomodando. Identificando
as contingências normais que sustentam o que decidimos ser um
comportamento-problema, abrimos a possibilidade de ir além de
nossos julgamentos de valor.
Coerção e suas implicações - Sidman
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